Mariátegui: "As contradições da reação"
Os ideólogos neotomistas [1] da Itália de da França que, na ânsia de edificar a teoria reacionária sobre as bases de uma intransigente negação do liberalismo, condenam a Reforma e pregam a restauração da ordem romana, entre outros riscos doutrinais e teóricos movem-se à heresia. Este é, sem dúvida, o perigo com o qual Henri Massis – tão profundamente convencido de que apenas o dogma é fecundo - mais terá que se preocupar.
Embora esses ideólogos tenham a filosofia escolástica como uma propriedade incontestável, a Igreja Romana, de autoridade inegável, se manifesta desfavorável à punição quanto ao uso que estes fazem da sua tradição e doutrina. A excomunhão do L'Action Française [2] não é o único sinal da resistência sagaz, mas firme da Igreja, a consentir em comprometer-se, sob o pretexto de defender a civilização europeia, com uma guerra profunda contra a democracia e o socialismo. O Vaticano, apesar das boas relações que cultiva com Mussolini, declarou repetidamente sua estrita desaprovação do conceito fascista do Estado. Conceito que descende, indubitavelmente, da filosofia idealista de Fichte (1762-1814), para que os estados protestantes ou liberais o utilizassem e conduzissem a divinização do Estado atribuindo-lhe, praticamente, todos os poderes, tanto espirituais como temporários.
A reação surpreendeu a Igreja em um período em que esta tomava francamente partido da democracia, incentivando a organização de partidos sociais-cristãos, apoiados em sindicatos de trabalhadores e camponeses, como o Partido Popular, fundado na Itália por Don Luigi Sturzo (1871-1959), com a bênção ostensiva do Vaticano. A concessões dadas, com inteligente oportunismo do governo de Benito Mussolini (1883-1945), às reivindicações do Partido Popular em matéria de educação, o que anulou a função desse grupo e obrigou o Papa a licenciar Don Sturzo, contudo, nas palavras de Missiroli: não foi o suficiente para suprimir a distância que separa o fascismo doutrinariamente da Igreja. O Vaticano aceitou o feito fascista; mas não sua teoria. Contra o feito e a teoria, Don Sturzo e muitos sobreviventes do Partido Popular, que havia se dissolvido, afrontaram, em alguns momentos - como no caso dos sacerdotes de Trieste, condenados a vários anos de prisão – a rigorosa repressão fascista.
Se a Igreja, em sua luta contra a Reforma e a laicidade, havia se sentido inimiga do liberalismo, não seria mais tarde, igualmente inimiga da democracia; sobretudo, desde que esta, passado o período de efervescência jacobina, se definiu como um sistema que superava o liberalismo, em que podia desenvolver-se uma sociedade socialista. Neste período, os católicos começaram a intervir, potencialmente, na política democrática, preconizando a fórmula social cristã, abraçando e sustentando na Alemanha e na Áustria, respectivamente, Karl Marx (1818-1883) e Ignaz Seipel (1876-1932) [3]. A Igreja considerou que suas diferenças com a ordem democrática-burguesa estavam parcialmente liquidadas, ainda que, em relação ao socialismo suas objeções eram mais de caráter filosófico que político, estando fundamentalmente direcionadas contra a concepção materialista da História, que resolve o espiritual no temporal, por ser este último, exclusivamente, o campo em que o primeiro se move. O liberalismo, absorvido pela democracia havia perdido, com exceção da França, seu caráter anticlerical; e o protestantismo, findada a sua trajetória revolucionária, se acomodava ao formalismo e ao dogmatismo, contra os quais se contrapunham inicialmente; negando a autocrítica, chegaram ao ponto de perseguir, inquisitorialmente, o ensino da teoria darwinista na América do Norte. As diferenças entre o protestantismo e catolicismo pareciam reduzidas e sua reconciliação se apresentava como um ideal que, pouco a pouco, se aproximava.
O fenômeno fascista interrompeu um processo de adaptação da democracia, onde o catolicismo se apresentou visivelmente melhor do que a restauração absolutista, abertamente patrocinada por alguns pensadores reacionários. A Igreja se reconheceu democrática. Suas querelas com as democracias, em particular, não significaram uma oposição ao princípio de democracia em geral. Não é um lugar comum que o germe da democracia está no Evangelho? O que a Igreja sempre combateu foi o Estado que absorve e assume todos os poderes, o Estado entendido como um fim e não como um meio, o Estado que agora está nas mãos dos fascistas. Seu adversário na ordem burguesa foi o liberalismo, não a democracia. Porque o liberalismo – salvo sua filiação protestante e “livre pensadora” – é uma doutrina, enquanto a democracia é um método. E concretamente a democracia na qual a Igreja acredita e concilia é a democracia burguesa, ou seja, o capitalismo.
O capitalismo, entretanto, ainda não decidiu – apesar das experiências na Espanha e na Itália – jogar fora a democracia. Outro fato que a Igreja, cautelosa e perspicaz, não pode negligenciar com a mesma facilidade que fez com os neotomistas a serviço da reação. As nações de capitalismo mais desenvolvido, como a Grã Bretanha, a Alemanha, a França, conservam ainda um sistema democrático. O capitalismo norte-americano adotou-o de tal ponto que nem sequer pensou, que algum dia, isso possa se tornar algo desconfortável e embaraçoso.
Nenhum interesse prático empenhou a Igreja em aprovar a doutrina fascista, mesmo que esta se intitule tomista e romana. A onda conservadora esbarra nos limites de uma estabilização capitalista que, até certo ponto, pode se caracterizar também como uma estabilização democrática.
Por outro lado, o nacionalismo – uma das paixões que a reação mais explora – não simpatiza com o universalismo de Roma. A ideia de nação esteve, em sua origem, intrinsecamente ligada a ideia liberal – e também, à Reforma – assim, a Igreja não deveria se esquecer das queixas que recebeu nas primeiras manifestações de nacionalismo. A nova ideologia nacionalista discorda mais da doutrina católica do que da concepção de Estado e Nação que surgiu com a Reforma.
Anticristianismo, pagã, herética, materialista, é esta ideologia que impulsiona, segundo a Igreja, Charles Maurras (1868-1952) em seu exaltado culto religioso à “Deusa França”. Maurras, no entanto, não excedeu em sua afirmação nacionalista à Mussolini: “Por sorte, apesar da fórmula Fascismo-Antirreforma, que alguns confundem com Fascismo-Contrarreforma, a antiga confissão do L’Action Française representa, de certa forma, a ex-confissão do fascismo como doutrina, não como governo.
O neotomismo teve que se contentar em ser apenas um dos elementos da reação. E se foi em vão a sua manobra para capturar a reação, sua pretensão de presidir a defesa do Ocidente é ainda mais inútil. As paixões políticas modernas, mesmo as mais exageradas e anti-históricas, tem uma característica em comum, como apontou Jullen Benda (1867-1956) em um estudo recente: seu realismo. Todas se colocam de acordo com o rumo da história. Lucien Romier (1885-1944), que tenta ajustar sua tese reacionária a um senso objetivo de realidade, atribui à França, cuja tradição nacionalista é o primeiro a proclamar, “a missão de propagar a ideia da coordenação dos Estados Unidos, a ideia que os Estados Unidos tem da Europa”. Hoje, mesmo entre os letrados, o realismo informado de Romier é preferido - sobrepondo-se ao dogmatismo intolerante de Maurras ou Massis -, como método contrarrevolucionário. Assim, Drieu La Rochele (1983-1945), cujas Confissões de um Europeu expressam intensamente, embora de forma incongruente, a esperança de uma geração desconsolada, onde “o capitalismo está ligado intimamente à civilização ocidental”. Um capitalismo herdado do liberalismo, protestantismo, materialismo, etc., não da filosofia escolástica nem da tradição romana.
Publicado em Variedades: Lima, 19 de novembro de 1927
Escrito por José Carlos Mariátegui
Traduzido por F. Fernandes
Notas
[1] Representantes do sistema filosófico de São Tomás de Aquino na modernidade.
[2] Jornal nacionalista francês, dirigido e fundado por Charles Maurras.
[3] Abade e político austríaco ligado ao Partido Social Cristão.