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Stalin: "Sobre o Marxismo na Linguística"


Um grupo de jovens camaradas dirigiu-se a mim para me propor que opinasse pela imprensa sobre os problemas da linguística, principalmente no que diz respeito ao marxismo na linguística. Não sou linguista e não posso, evidentemente, satisfazer de todo aos camaradas. Quanto ao marxismo em linguística, do mesmo modo que nas outras ciências sociais, trata-se de um assunto com o qual eu tenho relação direta. Aí está porque aceitei responder a uma série de perguntas colocadas por esses camaradas.


Pergunta: — É exato que a língua seja uma super-estrutura sobre uma infra-estrutura?


RESPOSTA: — Não, não é exato.


A infra-estrutura é o regime econômico da sociedade numa etapa determinada de seu desenvolvimento. A super-estrutura são as opiniões políticas, jurídicas, religiosas, artísticas, filosóficas da sociedade e as instituições políticas, jurídicas e outras que lhes correspondem.


Toda infra-estrutura tem sua superestrutura correspondente. A infra-estrutura do regime feudal tem sua super-estrutura, suas opiniões políticas, jurídicas e outras, e as instituições a elas correspondentes; a infra-estrutura capitalista tem sua super-estrutura e a infra-estrutura socialista a sua. Se a infra-estrutura se transforma e desaparece, ela acarreta a transformação e o desaparecimento de sua super-estrutura; se nasce uma infra-estrutura nova, ela acarreta o nascimento da super-estrutura que lhe corresponde.


Sob esse aspecto, a língua se diferencia radicalmente da super-estrutura. Tomemos por exemplo a sociedade russa e a língua russa. Durante os últimos trinta anos, na Rússia, a velha infra-estrutura capitalista foi liquidada o foi construída uma nova, socialista. Em consequência, a super-estrutura da infra-estrutura capitalista foi liquidada e criou-se uma nova super-estrutura correspondente à infra-estrutura socialista. As velhas instituições políticas, jurídicas e outras foram, por consequência, substituídas por instituições novas, socialistas, Mas, apesar disso, a língua russa continuou, no essencial, o que ela era antes da Revolução de Outubro.


O que foi que mudou na língua russa durante esse período? O vocabulário da língua russa mudou em certa medida; mudou no sentido de que enriqueceu com uma quantidade importante de novas palavras e expressões nascidas com a nova produção socialista, com o novo Estado, a nova cultura socialista, a nova sociedade, a nova moral, e enfim com o desenvolvimento da técnica e da ciência; o sentido de uma série de palavras e expressões modificou-se, adquirindo um novo significado; certo número de palavras antiquadas desapareceram do vocabulário. No que diz respeito ao léxico fundamental e ao sistema gramatical que são a base da língua, não somente não foram liquidados e substituídos depois da liquidação da infra-estrutura capitalista por um novo léxico fundamental e por um novo sistema gramatical da língua, mas foram conservados na sua integridade e não sofreram nenhuma modificação séria: mantiveram-se exatamente como base da língua russa moderna.


Prossigamos. A super-estrutura é gerada pela infra-estrutura, mas isso não significa absolutamente que ela seja apenas o reflexo da infra-estrutura, que seja passiva, neutra, que permaneça indiferente ao destino de sua infra-estrutura, ao destino das classes, ao caráter do regime. Ao contrário depois de ter vindo à luz, ela se toma uma imensa força ativa, ajuda ativamente sua infra-estrutura a se formar e consolidar, recorre a todos os meios para auxiliar o novo regime a dar o golpe de graça na velha infra-estrutura e nas velhas classes, e a liquidá-las.


E não pode ser de outro modo. A super-estrutura é criada pela infra-estrutura exatamente para servi-Ia, para ajudá-la ativamente a se formar e consolidar, para lutar ativamente a fim de liquidar a velha infra-estrutura caduca e sua velha super-estrutura. Basta que a super-estrutura renuncie a esse papel de auxiliar, basta-lhe passar de uma posição de defesa ativa de sua infra-estrutura para uma posição de indiferença relativamente a esta, basta adotar uma atitude idêntica em face de todas as classes, para que perca sua qualidade e deixe de ser uma super-estrutura.


Sob esse aspecto, a língua difere radicalmente da super-estrutura. A língua não é gerada por tal ou qual infra-estrutura, velha ou nova, no interior de uma determinada sociedade, mas por todo o transcurso da história da sociedade e da história das infra-estruturas ao longo dos séculos. Ela não é criada por uma só classe, mas por toda a sociedade, por todas as classes da sociedade, pelos esforços de centenas de gerações. Ela não é criada para satisfazer às necessidades de uma só classe, mas de toda a sociedade, de todas as classes da sociedade. Ela é criada justamente como língua única para toda a sociedade e comum a todos os membros da sociedade, como língua de todo o povo. Por isso, o papel auxiliar desempenhado pela língua, como meio de os homens se comunicarem entre si, não consiste em servir a uma classe em detrimento das outras classes, mas em servir indiferentemente a toda a sociedade, a todas as classes da sociedade. É isso exatamente que explica que a língua possa servir indiferentemente tanto ao velho regime agonizante, como ao novo regime ascendente, tanto à velha infra-estrutura como a nova. tanto aos exploradores como aos explorados.


Não é um segredo para ninguém que a língua russa serviu tanto ao capitalismo russo e à cultura burguesa russa antes da Revolução de Outubro, como serve hoje ao regime socialista e à cultura socialista da sociedade russa.


Deve-se dizer a mesma coisa do ucraniano, do bielorusso, do uzbeque, do kazakh, do georgiano, do armênio, do estoniano, do letão, do lituano, do moldavo, do tártaro, do azerbaijano, do bachkir, do turcomano e das outras línguas das nações soviéticas que tanto serviram ao velho regime burguês dessas nações como servem hoje ao novo regime socialista.


E não pode ser de outro modo. É para isso que a língua existe, para isso ela foi criada: para servir à sociedade em seu conjunto, de instrumento que permita aos homens comunicar-se entre si; para ser comum aos membros da sociedade e única para a sociedade, para servir igualmente aos membros da sociedade, independentemente de sua situação de classe. Basta que a língua abandone essa posição de instrumento comum a todo o povo, basta que a língua se ponha a preferir e a apoiar um grupo social qualquer em detrimento dos outros grupos sociais, para que ela perca sua validade, para que deixe de ser o meio de os homens se comunicarem entre si, para que se transforme numa gíria de um grupo social qualquer, se degrade e se condene a desaparecer.


Desse ponto de vista, distinguindo-se fundamentalmente da super-estrutura, a língua não se distingue, porém, dos meios de produção, das máquinas por exemplo, que são tão indiferentes às classes como a língua e que podem servir indiferentemente tanto ao regime capitalista como ao regime socialista.


Prossigamos. A super-estrutura é o produto de uma época durante a qual vive e age uma infra-estrutura econômica determinada. Eis porque a super-estrutura não vive muito tempo; é liquidada e desaparece ao mesmo tempo que a infra-estrutura determinada.


A língua, ao contrário, é o produto de toda uma série de épocas durante as quais se forma, se enriquece, se desenvolve e ganha brilho. Eis porque a língua vive incomparavelmente mais tempo do que qualquer infra-estrutura ou qualquer super-estrutura. É justamente o que explica que o nascimento e a liquidação, não somente de uma infra-estrutura e de sua super-estrutura, mas de muitas infra-estruturas e de suas super-estruturas correspondentes não conduzem, na história, à liquidação de uma língua determinada, à liquidação de sua estrutura e ao nascimento de uma língua nova com um vocabulário novo e um sistema gramatical novo.


Mais de cem anos são transcorridos depois da morte de Puchkin. Desde então, na Rússia, o regime feudal e o regime capitalista foram liquidados e nasceu um terceiro, o regime socialista. Portanto, duas infra-estruturas, suas super-estruturas foram liquidadas e uma nova infra-estrutura socialista nasceu com sua nova super-estrutura. Contudo, se consideramos a língua russa, por exemplo, durante esse longo período ela não sofreu nenhuma transformação fundamental e a língua russa moderna difere pouco da de Puchkin por sua estrutura.


O que mudou na língua russa desde aquela época? O vocabulário da língua russa se enriqueceu notavelmente nesse lapso de tempo; grande quantidade de palavras antiquadas desapareceu do vocabulário; mudou o sentido de um número considerável de palavras; o sistema gramatical foi melhorado. No concernente à estrutura da língua de Puchkin, ela se conservou em toda a sua essência, com seu sistema gramatical e seu léxico fundamental, como base da língua russa moderna.


E isso é perfeitamente compreensível. De fato, de que serviria que depois de cada convulsão, a estrutura existente da língua, seu sistema gramatical e seu léxico fundamental fossem destruídos e substituídos por outros novos, como acontece habitualmente com a super-estrutura? De que serviria que “água”, “terra”, “montanha”, “floresta”, “peixe”, “homem”' “andar”, “fazer”, “produzir”, “comerciar”, etc., não se chamassem mais água, terra, montanha, etc., mas outra coisa? A quem aproveitaria que as variações das palavras na língua e a disposição das palavras na frase não se fizessem segundo a gramática existente, mas segundo uma outra, inteiramente diferente? Que proveito tiraria a revolução de semelhante transformação radical nas línguas? Via de regra a história não faz nada de essencial sem que haja para isso uma necessidade particular. Cabe perguntar para que seria necessária uma tal transformação radical na língua, uma vez que está provado que a língua existente, com sua estrutura, satisfaz perfeitamente, no essencial, às necessidades do novo regime? Pode-se e deve-se destruir a velha super-estrutura e substituí-la por uma nova em alguns anos, para deixar o campo livre ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, mas como destruir a língua existente e criar em seu lugar uma língua nova em alguns anos, sem provocar anarquia na vida social, sem ameaçar a sociedade de desagregação? Quem, pois, além dos don Quixotes, pode atribuir-se uma tal tarefa?


Enfim, há ainda uma diferença radical entre a super-estrutura e a língua. A super-estrutura não está ligada diretamente à produção, à atividade produtiva do homem. Ela só está ligada à produção indiretamente, por meio da economia, por meio da infra-estrutura. Eis porque a super-estrutura não reflete as mudanças no nível de desenvolvimento das forças produtivas imediata e diretamente, mais depois das mudanças na infra-estrutura, por refração das mudanças da produção nas mudanças da infra-estrutura. Isso quer dizer que a esfera de ação da super-estrutura é estreita e limitada.


A língua, ao contrário, está ligada diretamente à atividade produtiva do homem e não somente à sua atividade produtiva, mas também a qualquer outra atividade do homem em todas as esferas de seu trabalho, desde a produção até a infra-estrutura, desde a infra-estrutura até a super-estrutura. Eis porque a língua reflete as mudanças da produção imediata e diretamente, sem esperar as mudanças na infra-estrutura. Eis porque a esfera de ação da língua, que engloba todos os domínios da atividade do homem, é muito mais vasta e mais variada que a esfera de ação da super-estrutura. Mais ainda, ela é quase ilimitada.


É isso que explica, sobretudo, que a língua, seu vocabulário propriamente dito, se encontre em estado de modificação quase ininterrupta. O desenvolvimento ininterrupto da indústria e da agricultura, do comércio e dos transportes, da técnica e da ciência, exige da língua que ela enriqueça seu vocabulário com novas palavras e expressões indispensáveis a seu trabalho. E a língua, que reflete diretamente essas necessidades, enriquece seu vocabulário com novas palavras, aperfeiçoa seu sistema gramatical.


Portanto:


a) um marxista não pode considerar a língua como uma super-estrutura sobre uma infra-estrutura;


b) confundir a língua com uma super-estrutura é cometer um erro.


Pergunta: — É exato que a língua sempre teve e conserva um caráter de classe, que não existe uma língua comum e única para a sociedade, uma língua que não tenha um caráter de classe mas que seja a de todo o povo?


RESPOSTA: Não, não é exato.


Não é difícil compreender que numa sociedade sem classes, não pode haver uma língua de classe. O regime do comunismo primitivo não conhecia classes, por conseguinte, nele não podia haver língua de classe, nele a língua era comum, única para toda a coletividade. A objeção segundo a qual deve-se entender por classe toda a coletividade humana, inclusive a coletividade comunal primitiva, não é uma objeção, mas um jogo de palavras que não merece ser refutado.


Quanto ao desenvolvimento posterior das línguas, — das línguas dos clãs às línguas das tribos, das línguas das tribos às línguas dos povos, e das línguas dos povos às línguas nacionais — em toda parte, em todas as fases de seu desenvolvimento, a língua, como meio de os homens se comunicarem entre si na sociedade, era comum e única para a sociedade, servindo do mesmo modo aos membros da sociedade, independentemente de suas condições sociais.


Não me refiro aqui aos impérios do período da escravidão e da Idade Média, como, por exemplo, o império de Ciro e de Alexandre o Grande ou ainda o império de César e de Carlos Magno que não tinham base econômica própria e eram formações militares-administrativas, efêmeras e instáveis. Estes impérios não somente não tinham, como não podiam ter uma língua única para o império e inteligível para todos os membros do império. Representavam conglomerados de tribos e de povos que tinham sua própria vida e sua própria língua. Por isso, não me refiro a estes impérios ou a outros que lhes são semelhantes, mas às tribos e aos povos que faziam parte do império e que tinham sua base econômica e sua língua formada há muito tempo. A história mostra que as línguas destas tribos e destes povos não tinham um caráter de classe, que eram línguas de todo o povo, comuns às tribos e aos povos, e inteligíveis para eles.


Certamente havia, ao lado dos dialetos, modismos locais, mas eram dominados e subordinados pela língua única e comum, da tribo ou do povo.


Mais tarde, com o aparecimento do capitalismo, a liquidação do desmembramento feudal e a formação de um mercado nacional, os povos se transformaram em nações e as línguas dos povos em línguas nacionais. A história mostra que essas línguas nacionais não são línguas de classe, mas línguas comuns ao conjunto do povo, comuns a todos os membros da nação e únicas para a nação.


Foi dito acima que a língua como meio de os homens se comunicarem entre si na sociedade, serve paralelamente a todas as classes da sociedade e manifesta sob esse aspecto uma espécie de indiferença relativamente às classes. Mas as pessoas, os diferentes grupos sociais, as classes estão longe de ser indiferentes à língua. Elas se esforçam para utilizar a língua no seu interesse, para impor-lhe seu vocabulário particular, sua terminologia particular, suas expressões particulares. As camadas superiores das classes possuidoras, que se isolaram do povo que odeiam o povo; a aristocracia dos nobres, as camadas superiores da burguesia, — se distinguem especialmente sob esse aspecto. Vemos criar-se gírias, dialetos de “classe”, “línguas” de salão. Na literatura, esses dialetos e gírias são às vezes erroneamente considerados como línguas: “a língua nobre”, “a língua burguesa”, em oposição à “língua proletária, à “língua camponesa”. Por estranho que isso possa parecer, é por essa razão que certos de nossos camaradas chegaram à conclusão de que a língua nacional é uma ficção, que somente as línguas de classe existem na realidade.


Creio não haver nada mais errôneo do que essa conclusão. Podemos considerar esses dialetos e gírias como línguas? Por certo que não. Não podemos fazer isso, em primeiro lugar: porque esses dialetos e essas gírias não possuem seu sistema gramatical nem seu léxico fundamental, tomam-nos emprestado à língua nacional. Em segundo lugar, porque essas línguas e essas gírias têm uma esfera de aplicação estreita entre os membros das camadas superiores desta ou daquela classe e não são absolutamente válidas como meio de os homens se comunicarem entre si, para a sociedade em seu conjunto. Que têm eles, então? Têm um certo número de palavras específicas que refletem os gostos específicos da aristocracia ou das camadas superiores da burguesia; certo número de expressões e de ditos que se distinguem por seu caráter rebuscado, precioso e isento das expressões e ditos “grosseiros” da língua nacional; finalmente, certo número de palavras estrangeiras. Quanto ao essencial, isto é, a maioria esmagadora das palavras e o sistema gramatical, é tomado emprestado à língua de todo o povo, à língua nacional. Por conseguinte, os dialetos e gírias representam ramificações da língua nacional de todo o povo, são privados de qualquer independência linguística e destinados a vegetar. Pensar que os dialetos e gírias possam se transformar em línguas independentes, capazes de afastar e de substituir a língua nacional, é perder a perspectiva histórica e abandonar as posições do marxismo.


Alude-se a Marx, cita-se uma passagem de seu artigo “São-Max” em que ele diz que os burgueses têm sua “língua própria”, que essa língua “é produto da burguesia”, que ela é marcada pelo espírito do mercantilismo, da venda e da compra. Por meio desta citação, certos camaradas querem demonstrar que Marx afirmava por assim dizer “o caráter de classe da língua”, que ele negava a existência de uma língua nacional única. Se esses camaradas abordassem a questão objetivamente, deveriam ter citado uma outra passagem desse mesmo artigo “São-Max”, em que Marx, tratando da questão dos caminhos da formação da língua nacional única, fala da “concentração dos dialetos numa língua nacional única, em função da concentração econômica e política”.


Marx reconhecia, portanto, a necessidade de uma língua nacional única como forma superior à qual os dialetos estão subordinados como forma inferior.


Que pode ser, nesse caso, a língua dos burgueses que, segundo Marx, “é, o produto da burguesia”? Marx a considerava como uma língua semelhante à língua nacional, possuindo uma estrutura linguística própria?


Podia ele considerá-la como uma língua assim? Não, certamente! Marx queria dizer simplesmente que os burgueses infestaram a língua nacional única com seu vocabulário de mercadores, que, por conseguinte, os burgueses têm sua gíria de mercadores.


Daí se conclui que aqueles camaradas desvirtuaram a posição de Marx. E a desvirtuaram porque citaram Marx, não como marxistas, mas como escolásticos, não indo ao fundo do problema.


Alude-se a Engels, cita-se palavras de Engels na sua obra “A situação da classe operária na Inglaterra”:


“...A classe operária tornou-se aos poucos um povo inteiramente diferente da burguesia inglesa”; “os operários falam um outro dialeto, têm outras ideias e concepções, outros costumes e outros princípios de moral, outra religião e outra política diferente da burguesia”.


Na base dessa citação, certos camaradas deduzem que Engels negava a necessidade de uma língua nacional comum a todo o povo, que ele afirmava, por conseguinte, “o caráter de classe” da língua... A verdade é que Engels não fala aqui da língua, mas do dialeto, dando-se perfeitamente conta que o dialeto, como ramificação da língua nacional, pode substituí-la. Mas esses camaradas, visivelmente, não encaram com bons olhos a existência de uma diferença entre língua e dialeto...


É claro que essa citação é empregada fora de propósito, pois Engels não fala aqui em “línguas de classe”, mas sobretudo das ideias, das concepções, dos costumes, dos princípios de moral, da religião, da política de classe. É perfeitamente justo que as ideias, as concepções, os costumes, princípios de moral, a religião, a política sejam diametralmente opostas nos burgueses e nos proletários. Mas o que tem a ver com isso a língua nacional ou “o caráter de classe” da língua? Será que a existência de contradições de classes na sociedade pode servir de argumento a favor “do caráter de classe” da língua ou contra a necessidade de uma língua nacional única? O marxismo diz que a comunidade de língua é um dos traços essências da nação, sabendo perfeitamente, por outro lado, que dentro das nações existem contradições de classe. Aceitam estes camaradas esta tese do marxismo? Alude-se a Lafargue para dizer que na sua brochura “A língua francesa antes e depois da revolução”, Lafargue reconhece “o caráter de classe” da língua e que ele nega, por assim dizer, a necessidade de uma língua nacional comum a todo o povo. Não é exato. Lafargue fala, efetivamente, da “língua nobre”, ou “aristocrática”, e das “gírias” das diferentes camadas da sociedade. Mas esses camaradas esquecem que Lafargue, que se desinteressa pelo problema da diferença entre a língua e a gíria e que chama aos dialetos ora “língua artificial”, ora “gíria”, afirma claramente em sua brochura que a “língua artificial, que distinguia a aristocracia... era extraída do vulgar, falada pelos burgueses e pelos artesãos, a cidade e o campo”.


Lafargue reconhece, pois, a existência e a necessidade de uma língua de todo o povo, compreendendo perfeitamente o caráter subordinado e a dependência da “língua aristocrática” e dos outros dialetos e gírias em face da língua de todo o povo.


Daí se conclui que a referência a Lafargue não cumpre seu objetivo.


Alega-se como argumento que, num certo momento, na Inglaterra, os feudais ingleses falaram “durante séculos” a língua francesa, enquanto o povo inglês falava a língua inglesa, e pretende-se que esta circunstância seja um argumento a favor do “caráter de classe” da língua, e contra a necessidade de uma língua comum a todo o povo. Isso não é um argumento, mas uma simples anedota. Em primeiro lugar, não eram todos os feudais, mas um grupo estreito da aristocracia feudal inglesa na corte real e nos condados que falava então o francês. Em segundo lugar, eles não falavam uma língua “de classe”, mas a língua francesa comum, a língua de todo o povo francês. Em terceiro lugar, sabe-se que essa predileção pela língua francesa desapareceu mais tarde sem deixar sinal, dando lugar à língua comum a todo o povo inglês. Creem esses camaradas que os feudais ingleses e o povo inglês se tenham entendido “durante séculos” com a ajuda de tradutores, que os feudais ingleses não se serviam da língua inglesa, que não existia nessa época uma língua inglesa comum a todo o povo, que o francês era então na Inglaterra algo mais que uma língua de salão só tendo curso nos círculos estreitos das camadas superiores da aristocracia inglesa? Como se pode, na base de tais “argumentos” anedóticos, negar a existência e a necessidade de uma língua comum a todo o povo?


Durante algum tempo, os aristocratas russos, também, se entretiam falando francês na corte dos tzares e nos salões. Orgulhavam-se de balbuciar palavras francesas ao falar russo, de não saber falar russo sem o sotaque francês. Quer isso dizer que nessa época, na Rússia, não existia uma língua comum a todo o povo, que a língua comum a todo o povo era então uma ficção, e as “línguas de classe” uma realidade? Nossos camaradas cometem aqui pelo menos dois erros. O primeiro erro consiste em que confundem a língua com a super-estrutura. Pensam que se a super-estrutura tem um caráter de classe, a língua, também, não deve ser comum a todo o povo, mas deve ter um caráter de classe. Contudo, já disse acima que a língua e a super-estrutura são duas noções diferentes, que um marxista não pode admitir que se confundam.


O segundo erro consiste no fato de que esses camaradas consideram a oposição entre os interesses da burguesia e os do proletariado, sua encarniçada luta de classes, como a desagregação da sociedade, como a ruptura de todos os laços entre as classes hostis. Na sua opinião, já que a sociedade se desagregou e não existe mais sociedade única, mas somente classes, não é preciso uma língua única para a sociedade, não é preciso uma língua nacional. Que resta pois se a sociedade se desagregou e se não existe mais língua nacional comum a todo o novo? Restam as classes e as “línguas de classe”. Naturalmente, cada “língua de classe” terá sua gramática “de classe”: uma gramática “proletária”, outra gramática “burguesa”. É verdade que tais gramáticas não existem na realidade. Mas isso não importa a estes camaradas: eles creem que um dia haverá tais gramáticas.


Num dado momento, tivemos “marxistas” que afirmavam que as estradas de ferro que permaneceram em nosso país depois da Revolução de Outubro eram burguesas, e que não convinha a nós, marxistas, nos utilizarmos delas, que era preciso destruí-las e construir novas estradas ferro, “proletárias”. Isso lhes valeu o apelido de “trogloditas”...


É claro que essa visão primitiva, anarquista, da sociedade, das classes, da língua, nada tem de comum com o marxismo. Mas ela existe, sem nenhuma dúvida, e continua a viver na cabeça de certos camaradas nossos que se embrulharam nesse problema.


É evidentemente falso que, em consequência da luta de classes encarniçada, a sociedade se tenha desagregado em classes que não são mais ligadas economicamente uma à outra dentro da própria sociedade. Ao contrário, enquanto existir o capitalismo, os burgueses e os proletários estarão ligados entre si por todos os fios econômicos, como elementos da mesma sociedade capitalista. Os burgueses não podem viver e enriquecer sem ter assalariados à sua disposição; os proletários não podem continuar a existir sem empregar-se com os capitalistas. A ruptura de todos os laços econômicos entre eles significa cessar toda produção, e cessar toda produção leva à morte da sociedade, à morte das próprias classes. É claro que nenhuma classe quererá marchar para sua destruição. Eis porque a luta de classes, por mais violenta que seja, não pode levar à desagregação da sociedade. Somente a ignorância em matéria de marxismo e a incompreensão total da natureza da língua poderiam sugerir a certos camaradas nossos a fábula da desagregação da sociedade, das “línguas de classe”, das gramáticas “de classe”.


Alude-se, além disso, a Lenin e recorda-se que Lenin reconhecia a existência de duas culturas sob o capitalismo, a cultura burguesa e a cultura proletária, que a palavra de ordem de cultura nacional sob o capitalismo era uma palavra de ordem nacionalista. Tudo isso é exato e Lenin tinha nisso inteira razão. Mas o que tem a ver com isso o “caráter de classe” da língua? Referindo-se as palavras de Lenin concernentes às duas culturas sob o capitalismo, estes camaradas querem, visivelmente, persuadir o leitor de que a existência do duas culturas na sociedade — a cultura burguesa e a cultura proletária — significa que deve haver também duas línguas, porque a língua está ligada à cultura, que, por conseguinte, Lenin nega a necessidade de uma língua nacional única, que ele é, por conseguinte, pelas línguas “de classe”. O erro desses camaradas consiste aqui no fato de que identificam e confundem a língua com a cultura. Contudo, a língua e a cultura são duas coisas diferentes. A cultura pode ser burguesa ou socialista. A língua, esta, como meio de comunicação, é sempre uma língua comum a todo o povo e tanto pode servir à cultura burguesa como à cultura socialista. Não é um fato que as línguas russa, ucraniana, usbeque, servem hoje à cultura socialista dessas nações, do mesmo modo que serviam à sua cultura burguesa antes da Revolução de Outubro? Esses camaradas se enganam, portanto, redondamente ao afirmar que a existência de duas culturas diferentes leva à formação de duas línguas diferentes e à negação da necessidade de uma língua única.



Falando de duas culturas, Lenin partia exatamente da tese de que a existência de duas culturas não pode conduzir à negação de uma língua única e à formação de duas línguas, de que a língua deve ser única. Quando os homens do Bund se puseram a acusar Lenin de ter negado a necessidade de uma língua nacional e de considerar a cultura como “não-nacional, Lenin, como é sabido, protestou violentamente e declarou que lutava contra a cultura burguesa e não contra a língua nacional cuja necessidade era para ele indiscutível. É estranho que certos camaradas nossos tenham começado a seguir as pegadas dos homens do Bund.


Quanto à língua única, cuja necessidade se pretende que Lenin tenha negado, é preciso referir-se às seguintes palavras de Lenin:


“A língua é um meio essencial de comunicação entre os homens: a unidade da língua e seu desenvolvimento sem obstáculos são uma das condições essenciais para as trocas comerciais verdadeiramente livres e amplas, correspondentes ao capitalismo contemporâneo, para um agrupamento livre e amplo da população em todas as diversas classes”.


Daí se conclui que esses estimados camaradas desvirtuaram as ideias de Lenin.


Alude-se finalmente a Stalin. Cita-se as palavras de Stalin dizendo que “a burguesia e seus partidos nacionalistas foram e continuam sendo, durante este período, a principal força dirigente dessas nações”. Tudo isso é exato. A burguesia e seu partido nacionalista dirigem efetivamente a cultura burguesa, do mesmo modo que o proletariado e seu partido internacionalista dirigem a cultura proletária. Mas que tem a ver com isso o “caráter de classe” da língua? Ignoram esses camaradas que a língua nacional é uma forma da cultura nacional, que a língua nacional pode servir tanto à cultura burguesa como à cultura socialista? Ignoram esses camaradas a conhecida tese dos marxistas, segundo a qual as culturas atuais russa, ucraniana, bielorussa e outras são socialistas por seu conteúdo e nacionais pela forma, isto é, pela língua? Concordam eles com essa tese marxista?


O erro de nossos camaradas, reside em que não vêm a diferença entre a cultura e a língua e não compreendem que o contendo da cultura se modifica em cada período novo do desenvolvimento da sociedade, enquanto a língua permanece, no essencial, a mesma durante vários períodos e serve indiferentemente à nova cultura e à velha cultura.


Portanto:


· a língua, como meio de comunicação, sempre foi e continua sendo única para a sociedade e comum a todos os membros da sociedade;


· a existência dos dialetos e das gírias não prejudica, mas confirma a existência de uma língua comum a todo o povo, de uma língua da qual esses dialetos e gírias são ramificações e à qual estão subordinados;


· a tese sobre o caráter de classe da língua é uma tese errônea, não marxista.


Pergunta: — Quais são os traços característicos da língua?


RESPOSTA: — A língua faz parte dos fenômenos sociais que se manifestam ao longo da existência da sociedade. Ela nasce e se desenvolve com o nascimento e o desenvolvimento da sociedade. Ela morre ao mesmo tempo que a sociedade. Não há língua fora da sociedade. Eis porque não se pode compreender a língua e as leis de seu desenvolvimento senão estudando a língua em ligação indissolúvel com a história da sociedade, com a história do povo a que pertence a língua estudada e que é seu criador e portador.


A língua é um meio, um instrumento, com o auxílio do qual os homens se comunicam entre si, trocam seus pensamentos e chegam a se compreender mutuamente. Diretamente ligada ao pensamento, a língua registra e fixa em palavras e em arranjos de palavras, em frases os resultados do trabalho do pensamento, os êxitos do trabalho de conhecimento do homem e torna assim possível a troca de pensamentos na sociedade humana.


A troca de pensamentos é uma necessidade permanente e vital, porque sem essa troca é impossível coordenar as ações comuns dos homens na luta contra as forças da natureza, na luta pela produção dos bens materiais indispensáveis, é impossível obter êxitos na atividade produtiva da sociedade, e, por conseguinte, é impossível a própria existência da produção social. Portanto, sem uma língua inteligível para a sociedade e comum a todos os seus membros, a sociedade cessa a produção, se desagrega e deixa de existir como sociedade. Nesse sentido, a língua, sendo um instrumento de comunicação, é ao mesmo tempo um instrumento de luta e de desenvolvimento da sociedade.


É sabido que todas as palavras de que se compõe a língua formam no seu conjunto o que se chama o vocabulário. O essencial no vocabulário, é o léxico fundamental que tem por sua vez como núcleo todos os termos radicais. O léxico fundamental é muito menos vasto que o vocabulário, mas vive durante muito tempo, durante séculos, e serve de base à formação de palavras novas. O vocabulário reflete o estado da língua; quanto mais rico e variado é o vocabulário, mais rica e desenvolvida é a língua.


Entretanto, tomado isoladamente, o vocabulário não forma ainda a língua, é antes o material de construção da língua. Da mesma forma que os materiais de construção não formam o edifício, embora seja impossível construir sem eles, o vocabulário não constitui a própria língua, embora sem ele não seja concebível nenhuma língua. Mas o vocabulário se reveste da maior importância quando entra no domínio da gramática que fixa as regras da variação das palavras, as regras de sua disposição nas frases e dá assim à língua um caráter harmonioso e racional. A gramática (morfologia, sintaxe) é um conjunto de regras sobre a variação das palavras e sobre a disposição das palavras na frase. Em consequência, é precisamente graças à gramática que a língua pode dar ao pensamento humano um invólucro material: o da língua.


O traço característico da gramática, é que ela fornece as regras da variação das palavras, tendo em vista, não as palavras concretas, mas as palavras em geral privadas de todo caráter concreto; ela fornece as regras da formação das frases tendo em vista não determinadas frases concretas, por exemplo, um sujeito concreto, um predicado concreto, etc., mas, em geral, toda espécie de frases, independentemente da forma concreta de tal ou qual frase. Por conseguinte, fazendo abstração do particular e do concreto tanto nas palavras como nas proposições, a gramática toma daquilo que há de geral na base das variações das palavras e de sua disposição frases e tira disso as regras, as leis gramaticais. A gramática é o resultado de um longo trabalho de abstração do pensamento humano, o expoente de êxitos imensos do pensamento.


Sob esse aspecto a gramática lembra a geometria que determina suas leis, fazendo abstração dos objetos concretos, considerando os objetos como corpos privados de todo caráter concreto e estabelecendo entre eles relações que não são relações concretas entre determinados objetos concretos, mas relações entre corpos em geral privados de qualquer caráter concreto.


Ao contrário da super-estrutura que não está ligada à produção diretamente, mas por meio da economia, a língua está diretamente ligada à atividade produtiva do homem, bem como a toda e qualquer atividade em todas as esferas de seu trabalho, sem exceção. Assim, o vocabulário, como elemento mais sensível às transformações, encontra-se em estado de transformação quase perpetua; deve-se notar que diferentemente da super-estrutura, a língua não precisa aguardar a liquidação da infra-estrutura ela modifica seu vocabulário antes da liquidação da infra-estrutura e independentemente do estado desta última.


Todavia, o vocabulário da língua não se transforma, como a super-estrutura, por meio da supressão do antigo e da edificação do novo, mas enriquecendo o vocabulário existente com palavras novas que se formaram em ligação com as mudanças do regime social, com o desenvolvimento da produção, da cultura, da ciência, etc. Se bem que o vocabulário perca, via de regra, uma certa quantidade de palavras envelhecidas, ele se enriquece com uma quantidade muito mais elevada de palavras novas. No que diz respeito ao léxico fundamental, ele se mantém no essencial e é utilizado como base do vocabulário da língua.


Isto é compreensível. Não é absolutamente necessário destruir o léxico fundamental se ele pode ser utilizado com êxito durante vários períodos históricos, sem nem mesmo falar do fato de que a destruição do fundo principal do vocabulário, acumulado durante séculos, considerando-se a impossibilidade de criar num curto lapso de tempo um novo fundo principal do vocabulário, conduziria a paralisar a língua a provocar uma desorganização total das relações entre os homens.


O sistema gramatical da língua muda de modo ainda mais lento que o léxico fundamental. Elaborado ao longo das épocas e formando um todo único com a língua, o sistema gramatical muda ainda mais lentamente que o léxico fundamental. Certamente, ele sofre mudanças com o tempo, aperfeiçoa-se, melhora e precisa suas regras, se enriquece com novas regras, mas as bases do sistema gramatical se conservam durante muito tempo, porque, como a história demonstra, elas podem servir com êxito à sociedade durante épocas.


Assim, a estrutura gramatical da língua e seu léxico fundamental constituem a base da língua, a essência de seu caráter específico.


A história revela a grande estabilidade e a resistência imensa da língua à assimilação forcada. Em lugar de explicar esse fenômeno certos historiadores não fazem mais do que se espantar. Mas não há nisso nenhum motivo de espanto. A estabilidade da língua se explica pela estabilidade de seu sistema gramatical e do seu léxico-fundamental. Durante centenas de anos, os assimiladores turcos se esforçaram por mutilar, destruir e aniquilar as línguas dos povos balcânicos. Durante esse período o vocabulário das línguas balcânicas sofreu sérias modificações, adotou uma quantidade não desprezível de palavras e expressões turcas, houve “convergências” e “divergências”, mas as línguas balcânicas resistiram sobreviveram. Por que? Porque o sistema gramatical e o léxico fundamental dessas línguas conservaram-se no essencial.


Resulta de tudo isso que a língua, sua estrutura, não podem ser consideradas como o produto de uma determinada época. A estrutura da língua, seu sistema gramatical e o fundo principal do vocabulário são o produto de muitas épocas.


Deve-se compreender que os elementos da língua moderna se formaram na mais remota antiguidade antes da época escravagista. Tratava-se de uma língua pouco complicada, com um vocabulário muito pobre, mas com seu próprio sistema gramatical, primitivo é verdade, mas que não deixava de ser por isso um sistema gramatical.


O desenvolvimento posterior da produção, o surgimento das classes, o aparecimento da escrita; o nascimento do Estado, que necessitava para administrar de uma correspondência mais ou menos bem cuidada; o desenvolvimento do comércio, que precisava mais ainda de uma correspondência bem cuidada; o aparecimento da imprensa, o desenvolvimento da literatura, tudo isso trouxe grandes mudanças ao desenvolvimento da língua. Enquanto isso, as tribos e os povos se desmembravam e se dispersavam, confundiam-se e se mesclavam e, mais tarde, se deu o aparecimento das línguas nacionais e dos Estados nacionais, produziram-se convulsões revolucionárias, os velhos regimes sociais foram substituídos por novos. Tudo isso trouxe ainda maiores modificações à língua e ao seu desenvolvimento.


Mas seria um erro grosseiro pensar que o desenvolvimento da língua se deu do mesmo modo que o da super-estrutura: por meio da destruição do que existe e da edificação do novo. Na realidade, o desenvolvimento da língua se deu não por meio da destruição da língua existente e da formação de uma língua nova, mas pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento dos principais elementos da língua existente. Deve-se notar que a passagem de uma qualidade da língua a outra não se deu pela explosão, nem pela destruição brutal do velho e a criação do novo, mas por uma acumulação progressiva e prolongada de elementos, de nova qualidade, da estrutura nova da língua, através do desaparecimento gradual dos elementos da velha qualidade.


Diz-se que a teoria do desenvolvimento da língua por fases é uma teoria marxista, porque ela reconhece a necessidade de explosões bruscas como condição da passagem da língua, da velha qualidade à qualidade nova. Isso não é exato, certamente, porque seria difícil encontrar qualquer coisa de marxista nessa teoria. E se a teoria do desenvolvimento por fases reconhece, de fato, explosões bruscas na história do desenvolvimento da língua, pior para ela. O marxismo não reconhece nenhuma explosão brusca na história do desenvolvimento da língua, nenhum desaparecimento da língua existente nem qualquer formação súbita de uma língua nova. Lafargue não tinha razão ao falar “de uma brusca revolução da língua entre 1789 e 1794” na França. (“Ver a brochura de Lafargue: “A língua francesa antes e depois da revolução”). Não houve nessa ocasião nenhuma revolução da língua na França, e menos ainda revolução brutal. Certamente, durante aquele período o vocabulário da língua francesa enriqueceu-se com novas palavras e novas expressões, perdeu certa quantidade de termos envelhecidos, certas palavras mudaram de sentido, e acabou-se. Mas mudanças desse gênero não decidem absolutamente da sorte da língua. O principal numa língua é seu sistema gramatical e seu léxico fundamental. Mas o sistema gramatical e o léxico fundamental da língua francesa, ao contrário, conservaram-se sem modificações notáveis e não somente se conservaram, mas continuam a existir em nossos dias na língua francesa contemporânea.


Não preciso nem mesmo dizer que para liquidar a língua existente e para formar uma nova língua nacional (“revolução brutal na língua!”) um espaço de cinco, seis anos é ridiculamente curto, isso exige séculos.


O marxismo entende que a passagem de uma língua da velha qualidade a uma qualidade nova se produz não pela explosão, não pela destruição da língua existente e a constituição de uma língua nova, mas pela acumulação gradual dos elementos de uma nova qualidade, portanto, pelo desaparecimento gradual dos elementos da velha qualidade.


É preciso dizer, em intenção dos camaradas apreciadores de explosões, que a lei da passagem da velha qualidade à qualidade nova pela explosão, não somente não pode ser aplicada à história do desenvolvimento da língua, mas ainda que não é sempre aplicável aos outros fenômenos sociais, quer se trate das infra-estruturas ou das super-estruturas. Ela é obrigatória para uma sociedade dividida em classes hostis. Mas ela não é absolutamente obrigatória para uma sociedade sem classes hostis. Num período de oito a dez anos, realizamos na agricultura de nosso país, a passagem do regime burguês, do regime de exploração camponesa individual, ao regime socialista kolkhosiano. Foi uma revolução que liquidou o velho regime econômico burguês no campo e que criou um regime novo, socialista. Todavia, essa reviravolta radical não se produziu pela explosão, isto é, pela destruição do poder existente e a criação de um poder novo, mas pela passagem gradual do velho regime burguês no campo ao regime novo. Conseguimos fazê-lo, porque foi uma revolução vinda de cima, porque essa reviravolta radical foi realizada por iniciativa do poder existente com o apoio das massas essenciais do campesinato.


Diz-se que numerosos fatos de cruzamentos de línguas, que se produziram na história, permitem supor que durante esse cruzamento se vê formar uma nova língua por explosão, pela passagem brusca da velha qualidade à qualidade nova. Isto é absolutamente falso.


Não se pode considerar o cruzamento de línguas como ato único de um golpe decisivo cujos resultados se fazem sentir durante alguns anos. O cruzamento de línguas é um longo processo que se realiza durante centenas de anos. Eis porque não se trata aqui de nenhuma explosão.


Prossigamos. Seria completamente falso pensar que o cruzamento de duas línguas, por exemplo, gera uma terceira língua nova que não lembra nenhuma das línguas cruzadas e difere qualitativamente de cada uma delas. Na realidade, quando do cruzamento, uma das línguas ordinariamente obtém a vitória, conserva seu sistema gramatical, conserva seu léxico fundamental e continua a se desenvolver segundo as leis internas de seu desenvolvimento, enquanto a outra língua perde gradualmente sua qualidade e desaparece pouco a pouco.


Por conseguinte, o cruzamento não dá uma terceira língua, uma língua nova, mas conserva uma das línguas, conserva seu sistema gramatical e seu léxico fundamental, e permite que ela se desenvolva segundo as leis internas de seu desenvolvimento.


É verdade que isso enriquece de certo modo o vocabulário da língua que obteve a vitória às expensas da língua vencida, mas em lugar de enfraquecê-la, isso só faz reforçá-la.


Tal foi por exemplo, o caso da língua russa com a qual se cruzavam, durante o desenvolvimento histórico, as línguas de diversos outros povos, e que sempre obteve a vitória.


Certamente o vocabulário da língua russa enriqueceu-se durante esse tempo às custas do vocabulário das outras línguas, mas isso, longe de enfraquece-la, ao contrário, enriqueceu e reforçou a língua russa.


No referente ao caráter nacional da língua russa, ele não sofreu o menor prejuízo, porque, tendo conservado seu sistema gramatical e seu léxico fundamental, a língua russa continuou a progredir e a aperfeiçoar-se de acordo com as leis internas de seu desenvolvimento.


Não há nenhuma dúvida que a teoria do cruzamento não pode fornecer nada de sério à linguística soviética. Se é verdade que a linguística tem por tarefa essencial estudar as leis internas do desenvolvimento da língua, é preciso reconhecer que a teoria do cruzamento, não somente não resolve esse problema, mas nem mesmo o coloca: simplesmente ela não o nota ou não o compreende.


Pergunta: — A “Pravda” teve razão de abrir uma discussão livre sobre as questões de linguística?


RESPOSTA: — Teve razão.


Em que sentido as questões de linguística serão resolvidas? Isso tornar-se-á claro no fim da discussão. Mas podemos dizer, desde já, que a discussão foi de grande, utilidade.


A discussão mostrou, antes de tudo, que nas instituições de linguística, tanto no centro como nas repúblicas, reinava um regime incompatível com a ciência e os homens de ciência. A menor crítica sobre o estado de coisas na linguística soviética e mesmo as tentativas mais tímidas de criticar a pretensa “nova doutrina” em linguística eram objeto de perseguições por parte dos meios dirigentes da linguística e eram imediatamente sufocadas por eles. Por uma atitude crítica relativamente à herança de N. J. Marr, pela menor desaprovação da doutrina de N. J. Marr, demita-se ou rebaixava-se trabalhadores e pesquisadores de valor no domínio da linguística. Os linguistas chegavam à funções responsáveis, não em virtude do seu trabalho, mas de sua aceitação sem reservas da doutrina de N. J. Marr.


É um fato reconhecido por todos que nenhuma ciência pode se desenvolver e prosperar sem luta de opiniões, sem liberdade de crítica. Mas essa regra, geralmente admitida, era ignorada e pisoteada do modo mais arrogante. Criara-se um grupo fechado de dirigentes infalíveis que, depois de se terem protegido de qualquer crítica possível, só agiam por sua cabeça cometiam toda sorte de abusos.


Um exemplo entre outros: as conferências feitas por N. J. Marr em Baku e conhecidas sob o nome de “Curso de Baku”, curso que o próprio autor renegara e proibira de reeditar, foram todavia reeditadas por ordem da casta de dirigentes (o camarada Mochtchaninov os chama de”discípulos” de N. J. Marr) e inscritas na lista de manuais recomendados sem reserva aos estudantes. Isso quer dizer que se enganava aos estudantes, fornecendo-lhes um “Curso” desautorizado como manual de valor. Se eu não estivesse convencido da honestidade de Mechtchaninov e das outras personalidades da linguística, diria que uma tal atitude equivale à sabotagem.


Como pôde acontecer isso? Isso aconteceu por que o regime à moda de Araktcheev, instaurado na linguística, cultiva o espírito de irresponsabilidade e encoraja tais abusos.


A discussão foi perfeitamente útil, sobretudo porque ela lançou luz sobre esse regime autoritário e o reduziu a pedaços.


Mas a utilidade da discussão não fica nisso. Não somente a discussão espatifou o velho regime em linguística, mas fez surgir o confusionismo incrível que reina nas questões mais importantes da linguística nos dirigentes desse ramo da ciência. Antes que a discussão começasse calavam e silenciavam sobre o desassossego que existia na linguística. Mas quando a discussão começou e quando se tornou impossível calar, eles foram obrigados a exprimir-se nas colunas da imprensa. E então? Evidenciou-se que na doutrina de N. J. Marr há toda uma série de lacunas, de erros, de problemas imprecisos, de teses insuficientemente elaboradas. Pergunta-se por que os “discípulos” de N. J. Marr, só começaram a falar disso após a abertura da discussão? Por que não se preocuparam com isso mais cedo? Por que não falaram nisto aberta e honestamente no momento azado, como é próprio dos homens de ciência?


Depois de ter reconhecido “alguns” erros de N. J. Marr, os “discípulos” de N. J. Marr pensam, parece, que só se pode continuar a desenvolver a linguística na base da teoria “atualizada” de N. J. Marr, que eles consideram como uma teoria marxista. Eu vos peço por favor, deixemos de lado o “marxismo” do N. J. Marr. N. J. Marr quis realmente tornar-se marxista e procurou sê-lo, mas não o conseguiu. Não foi mais do que um simplificador e um vulgarizador do marxismo no gênero dos membros do “Proletkult” ou do “R. A. P. P.”.


N. J. Marr introduziu na linguística a tese falsa, não marxista, da língua como super-estrutura e embrulhou-se e embrulhou a linguística. É impossível, na base de uma tese falsa, desenvolver a linguística soviética.


N. J. Marr introduziu na linguística uma outra tese, igualmente falsa e não marxista, sobre “o caráter de classe” da língua e embrulhou-se e embrulhou a linguística. É impossível, na base de uma formulação falsa, em contradição com todo o transcurso da história dos povos e das línguas, desenvolver a linguística soviética.


N. J. Marr introduziu na linguística um tom de modéstia, suficiente e arrogante, que não pertence ao marxismo e que levada negar pura e simplesmente e sem reflexão tudo o que havia na linguística antes de N. J. Marr.


N. J. Marr denigre ruidosamente o método histórico comparativo tratando-o de “idealista”. E, contudo, é preciso dizer-se que o método histórico-comparativo, apesar de seus graves defeitos, é assim mesmo melhor que a análise, realmente idealista, dos quatro elementos de N. J. Marr, porque o primeiro leva ao trabalho, ao estudo das línguas, ao passo que o segundo só leva a consultar, pachorrentamente, a bola de cristal dos famosos quatro elementos.


N. J. Marr trata com arrogância toda tentativa de estudar os grupos (as famílias) de línguas e vê nisso a manifestarão da teoria da “língua-mãe”. E, contudo, não se pode negar que não há nenhuma dúvida sobre o parentesco linguístico de nações tais como os eslavos, por exemplo, e não há dúvida que o estudo do parentesco linguístico destas nações pode ser de grande proveito para a linguística no estudo das leis do desenvolvimento da língua. Inútil dizer que a teoria da “língua-mãe” não tem nenhuma relação com isso.


A dar-se ouvidos a N. J. Marr e sobretudo a seus “discípulos”, se poderia pensar que não existiu qualquer linguística antes de N. J. Marr, que a linguística surgiu com a “nova doutrina” de N. J. Marr. Marx e Engels eram muito mais modestos: julgavam que seu materialismo dialético era o produto do desenvolvimento das ciências, inclusive da filosofia, durante o período precedente.


Assim a discussão teve também o mérito de revelar as falhas ideológicas existente na linguística soviética.


Penso que quanto mais depressa nossa linguística se libertar dos erros de J. N. Marr, tanto mais depressa lhe será possível sair da crise que atravessa atualmente.


Liquidar o regime à moda de Araktcheev na linguística, renunciar aos erros de N. J. Marr, introduzir o marxismo na linguística: tal é, a meu ver, o caminho pelo qual se pode sanear a linguística soviética.

20 de Junho de 1950


Publicado na Problemas - Revista Mensal de Cultura Política nº 28 - Julho de 1950.

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