Losurdo: "A suposta 'não violência' do Dalai Lama é desmentida pela CIA"
A campanha anti-chinesa em curso nos nossos dias apresenta, e celebra, o Dalai Lama como um campeão da não-violência, verdadeiro herdeiro de Gandhi. Entretanto, a este respeito deve-se notar que o ocidente liberal durante longo tempo mostrou-se muito pouco simpático em relação a Gandhi. É com um soberano desprezo que Churchill fala deste "faquir sedicioso", deste "miserável pequeno velho, que é nosso inimigo desde sempre", deste "velho com os pés nus" (1), que pretende por a mão sobre "aquilo que nos pertence" e "quer expulsar a Inglaterra da Índia" (2). A incontornável arrogância imperial carrega-se por vezes de tons racistas, como se vê em particular numa tomada de posição de 1931:
"Também é alarmante e nauseabundo ver Gandhi, um advogado subversivo do Middle Temple , agora nesta atitude de faquir conforme um modelo bem conhecido no Oriente, subir, a grandes passos e meio nu, as escadarias do palácio do vice-rei para ir falar de igual para igual com o representante do rei-imperador quando ele ainda se dedica a organizar e conduzir uma campanha provocatória de desobediência civil" (3).
Em todo caso, contra o movimento independentista, quer seja violento ou não violento, sabe-se recorrer a todos os meios, e em 1932 Churchill saúda o lançamento na Índia de medidas "mais drásticas do que todas aquelas que se haviam verificado necessárias desde a época do Motim de 1857" (4), ou seja, desde a revolta dos Sepoys e da sangrenta repressão que no seu tempo provocará a indignação de Marx.
Já nos nossos dias, as ênfases caras a Churchill estão longe de terem desaparecido. Um jornalista historiador que, nas colunas dos órgãos de imprensa estado-unidenses e ocidentais mais autorizados, se dedica a celebrar o retorno do colonialismo (Colonialism's Back-and Not a Moment Too Soon — O colonialismo está de volta e não é demasiado cedo), exprime-se assim ao falar de Gandhi: ele "tinha um ano mais que Lenin, com quem tinha em comum uma abordagem de tipo quase religioso da política, mas sua excentricidade aproximava-o também de Hitler"(5).
Comparado a Lenin, o líder do movimento independentista indiano sofre o destino reservado ao bolchevismo que, do ponto de vista dos historiadores e jornalistas da corte, não é senão o irmão gêmeo do nazismo.
Hoje, entretanto, a tendência principal da ideologia dominante é bem diferente. Desde os primeiros anos da guerra fria, uma vez abandonados o ódio e o desprezo alimentados em particular por Churchill para com o "subversivo" e "oriental" inimigo do império britânico e da civilização ocidental, Gandhi é promovido ao papel de apóstolo da não-violência: não-violência que se vai opor a estes movimentos revolucionários de emancipação dos povos coloniais que se desenvolvem na Ásia e no mundo inteiro. É assim que inopinadamente Gandhi torna-se a antítese de Mao, de Ho Chi Minh, Castro e Arafat. Virá a seguir uma manobra de réal-politique ulterior e decisiva: uma campanha multi-mediática martelando que a herança de Gandhi enquanto campeão da não-violência seria hoje assumida pelo Dalai Lama, como que por acaso designado em 1989 Prêmio Nobel da paz.
Contudo, a realidade não é difícil de verificar. Ela se revela claramente nos dois livros que têm por autor único, ou coautores, dois funcionários (de nível mais ou menos elevado) da CIA. O primeiro, que colaborou durante décadas com o Dalai Lama e exprime sua admiração e sua devoção para com o "líder budista que se votou à não-violência", relata nestes termos o ponto de vista expresso pelo seu herói: "Se não há alternativa à violência, a violência está autorizada". Mais uma razão porque é preciso saber distinguir entre "método" e "motivação": "Na resistência tibetana contra a China o método era o assassinato, mas a motivação era a compaixão, e isto justificava o recursos à violência".
De modo análogo o Dalai Lama, citado e admirado pelo funcionário da CIA, justifica e até mesmo celebra a participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial e na guerra da Coreia, pois tratava-se de "proteger a democracia e a liberdade". Estes nobres ideais iriam continuar a inspirar Washington por ocasião da guerra do Vietnam, mesmo se, neste caso, os resultados infelizmente não estiveram à altura das intenções(6). Compreende-se que, sobre tais bases, a sintonia se revele perfeita com o funcionário da CIA, que se faz fotografar com o Dalai Lama numa postura amiga e afetuosa. Ele chega mesmo a declarar que também, exatamente como seu venerável mestre budista, não gosta das "armas de fogo" mas que se resigna a aprovar e promover o seu emprego somente quando isto se torna inevitável(7). Assim pois, reinterpretada à luz dos ensinamentos do prémio Nobel da paz, a não-violência parece ter-se tornado a doutrina inspiradora da CIA!
São exatamente os funcionários desta agência temida no mundo inteiro que acabam por fazer um retrato dessacralizante do Dalai Lama. Em 1959 ele foge de Lhassa: é a realização de um "objetivo da política americana desde há pelo menos uma década". No momento da sua passagem da fronteira entre a China (Tibet) e a Índia, o Dalai Lama nomeia general um dos tibetanos que o haviam ajudados na sua fuga, enquanto dois outros, sem perderem tempo, com o rádio que lhe havia sido fornecido pela CIA, transmitem a esta última uma mensagem urgente: "Enviem-nos por via aérea armas para 30 mil homens" (8). Apesar do equipamento refinado fornecido aos guerrilheiros, a colocação à sua disposição de um "implacável arsenal no céu" (as armas lançadas em paraquedas pelos aviões estadunidenses) e da possibilidade de beneficiar de retaguardas seguras para além da fronteira chinesa, e em particular nas bases do Mustang (no Nepal), a revolta tibetana, preparada desde 1959 pelo lançamento de armas e de equipamentos militares nas zonas mais inacessíveis do Tibet (9), fracassa. Os comandos infiltrados a partir da Índia acusam resultados "geralmente decepcionantes"; "eles não encontram senão apoios raros na população local". Em resumo: a tentativa de "alimentar uma guerrilha numa vasta escala por via aérea revelou-se um fracasso lamentável"; "em 1968, as forças da guerrilha no Mustang envelhecem" sem serem capazes de "recrutar novos elementos". Os EUA são obrigados a abandonar o caso, provocando então uma grande desilusão junto ao Dalai Lama; "ele observa com amargura que em 1974 Washington havia anulado seu apoio ao programa político e paramilitar"(10).
Assim, é bastante difícil ver no Dalai Lama o herdeiro de Gandhi! A única vaga analogia é com o Gandhi da Primeira Guerra Mundial, que se dedica a recrutar soldados indianos para o exército britânico e espera assim ganhar o reconhecimento de Londres. Da Grã-Bretanha, a Índia herda a aspiração de destacar, de uma maneira ou de outra, o Tibet da China: enquadrados num corpo especial (Special Frontier Force), os guerrilheiros tibetanos combatem sob o comando do exército de Nova Delhi durante a breve guerra de fronteira sino-indiana de 1962, depois no decorrer da guerra indo-paquistanesa de 1971. É neste contexto que se insere o apoio fornecido pelo Dalai Lama à política indiana de armamento nuclear.
A colaboração com os EUA vai desempenhar uma papel ainda mais importante: somando-se o terrível embargo imposto por Washington e às operações persistentes de sabotagem ou de terrorismo promovidas a partir de Formosa, a revolta tibetana estava destinada, nos planos da CIA, a "constranger Mao a pulverizar seus recursos já escassos" e a provocar o estrangulamento da República Popular da China. É verdade que o objetivo principal não será prosseguido. Mas em todo o caso, além do facto de que eles enfraquecem o grande país asiático, os Estados Unidos "tiram beneficio das informações recolhidas pelas forças da resistência" tibetana. Mais: a CIA e o exército estadunidense podem experimentar "novos tipos de equipamentos, por exemplo aviões e paraquedas" e "novas técnicas de comunicação", e acumular experiências preciosas; "as lições aprendidas no Tibet" encontram sua aplicação "em lugares como o Laos e o Vietnam"(11).
Como se pode ver, a não-violência do Dalai Lama não é senão um mito. Em duas fotos de 1972 pode-se vê-lo mesmo, com o general indiano Sujan Singh Uban, passar em revista e arengar a Special Frontier Force, à qual ele havia dado o seu "consenso" a fim de que fosse empregada na guerra contra o Paquistão, alguns meses antes(12). Mas como explicar o mito? Mais uma vez, quem vai nos ajudar a dar uma resposta é o funcionário da CIA que manteve contatos durante décadas com o líder independentista tibetano. Em 1950, quando explode a guerra da Coreia, a agência recebe instruções para que sejam conduzidas contra a China não só "operações paramilitares" como também uma "guerra psicológica"(13). O projeto verá aperfeiçoamentos ulteriores na sequência da revolta de 1959; o "grupo de estratégia psicológica" convida a administração Eisenhower a "alimentar a rebelião o mais longo tempo possível e dar-lhe a maior ênfase nos meios de informação"; "a CIA paga a uma sociedade de public relations para ajudar os tibetanos a publicitarem a sua causa"(14). A orientação de fundo desta guerra psicológica já fora definida nos primeiros anos da guerra fria: tratava-se de "apelar à reunião dos budistas da Ásia contra a expansão dos comunistas chineses". Ao comunismo sinónimo de violência era preciso opor o budismo sinônimo de não-violência. Não é de espantar que nessa altura o écran da não-violência comece a aureolar a figura do Dalai Lama. Será não só a transfiguração de uma personalidade singular como também do mundo que esta personalidade representa: o Tibet pré-moderno e pré-revolucionário vai-se tornar um lugar encantado, de onde se esvaneceram a escravidão, a servidão, a violência da classe dominante, em mesmo a violência enquanto tal. Na realidade, bem longe deste idílio, a Lhassa destes bons velhos tempos assemelhava-se à "Florença dos Borgia". Mas a guerra psicológica, as empresas de public relations e Hollywood (que já desempenhava um papel central na Guerra Fria) sabem fazer milagres: o Dalai Lama e o budismo tibetano tornam-se a encarnação da não-violência.
Reclamando-se de Gandhi e do Dalai Lama, círculos que se dizem de esquerda e mesmo radicais — pense-se, no que se refere à Itália, ao "Partito radicale transnazionale", dirigido por Marco Pannella — não só estigmatizam como sanguinários os movimentos de libertação nacional (como por exemplo a resistência palestina), mas vão ainda mais longe: ignorantes das lições da não-violência e dominados por pulsões homicidas e totalitárias, os ditos "radicais", que se opõem a estes movimentos de libertação nacional, apoiam regularmente as guerras lançadas por Washington para a exportação da "democracia" e, com uma ênfase muito particular, as guerras desencadeadas por Israel contra seus vizinhos árabes: em primeríssimo lugar, contra o povo palestino. O apoio às guerras israel-estadunidenses está em contradição com o princípio da não-violência? Os "radicais" não têm nenhuma dificuldade em se referirem ao Gandhi que, durante a Primeira Guerra Mundial, apoiava o esforço de guerra do império britânico e fazia calar seus adversários acusando-os de serem covardes e mesmo "efeminados".
Neste ponto, a "não-violência" transformou-se numa ideologia da guerra (por enquanto fria).
Escrito por Domenico Losurdo
Notas
(1) Ferguson 2004, p. 276 et Chada 2000, p. 387 et 390.
(2) Chada 2000, p. 384 et 300.
(3) Chada 2000, p. 298.
(4) Chada 2000, p. 319
(5) Johnson 1989, p. 521 ; dans Paul Johnson cf. Losurdo 2006, chap. III § 9
(6) Knaus 1999, p. X et 313.
(7) Knaus 0999, p. X et 274.
(8) Knaus 1999, p. 178 ; Conboy, Morrison 2002, p.93.
(9) Knaus 1999, p. 225 et 154-155.
(10) Knaus 1999, p. 281, 235, 292 et 293.
(11) Knaus 1999, p. 215 et 316 ; Conboy, Morrison 2002, p.IX.
(12) Conboy, Morrison 2002, p. 247-48.
(13) Knaus 1999, p. 63.
(14) Knaus 1999, p. 204 et 181.
Referências bibliográficas
Yogesh Chada 2000 - Rediscovering Gandhi (1997), tr. it., di Mario Prayer, Gandhi. Il rivoluzionario disarmato (1998), Mondadori, Milano
Kennet Conboy, James Morrison 2002 - The CIA's Secret War in Tibet, University Press of Kansas, Lawrence
Niall Ferguson 2004 - Empire. The Rise and the Demise of the British World Order and the Lessons for Global Power (2002), Basic Books, New York
Paul Johnson 1989 - A History of the Modern World from 1917 to the 1980s ; (1983) ; tr. it., di Elisabetta Cornara Filocamo, Storia del mondo moderno (1917-1980), Mondadori, Milano
John Kenneth Knaus 1999 - Orphans of the Cold War: America and the Tibetan Struggle for Survival , PublicAffairs, New York
Domenico Losurdo 2006 - Le révisionnisme en histoire. Problèmes et mythes , Albin Michel, Paris