Fanon: "A Violência"
Libertação nacional, renascimento nacional, restituição da nação ao povo, Commonwealth, quaisquer que sejam as rubricas utilizadas ou as novas fórmulas introduzidas, a descolonização é sempre um fenômeno violento. Em qualquer nível que se estude: encontros entre indivíduos, composição humana dos cocktail-parties, da polícia, dos conselhos de administração, dos bancos nacionais ou privados, a descolonização é simplesmente a substituição de uma “espécie” de homens por outra “espécie” de homens. Sem transição, há uma substituição total, completa, absoluta. Na verdade, poderia mostrar-se igualmente o aparecimento de uma nova nação, a instauração de um novo estado, as suas relações diplomáticas, a sua orientação política e econômica. Mas desejamos falar precisamente dessa tábua rasa que define toda a descolonização do seu ponto de partida. A sua importância inusitada é que constitui, desde o primeiro momento, a reivindicação mínima do colonizado. Falando verdade, a prova do êxito reside num panorama social modificado na sua totalidade. A importância extraordinária dessa mudança torna-se desejada, reclamada, exigida. A necessidade dessa mudança existe em estado bruto, impetuoso e constrangido, na consciência e na vida dos homens e mulheres colonizadas. Mas a eventualidade dessa mudança é igualmente vivida na forma de um futuro aterrador na consciência de outra “espécie” de homens e mulheres: os colonos.
A descolonização, que se propõe mudar a ordem do mundo é, como se vê, um programa de desordem absoluta. Mas não pode ser o resultado de uma operação mágica, de uma agitação natural ou de um entendimento amigável. A descolonização, como se sabe, é um processo histórico: quer dizer que não pode ser compreendida e não resulta inteligível, translúcida em si mesma, senão na medida exata em que se distingue o movimento histórico que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagónicas que extraem precisamente a sua originalidade dessa espécie de substância que segrega e alimenta a situação colonial. O seu primeiro confronto desenrolou-se debaixo do signo da violência e a sua coabitação — mais precisamente a exploração do colonizado pelo colono — realizou-se com grande reforço de baionetas e de canhões. O colono e o colonizado conhecem-se há muito tempo. E, na realidade, tem razão o colono quando diz conhecê-los. Foi o colono que fez e continua fazendo o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial.
A descolonização não passa nunca despercebida, dado que afeta o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma os espectadores esmagados pela falta do essencial em atores privilegiados, amarrados de maneira quase grandiosa pelo correr da História. Introduz no ser um ritmo próprio, provocado pelos novos homens, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é realmente a criação de homens novos. Mas esta criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma força sobrenatural: a “coisa” colonizada converte-se, no homem, no próprio processo pelo qual ele se liberta.
Na descolonização há, pois, a exigência de uma entrega completa da situação colonial. A sua definição pode encontrar-se, se se quer descrevê-la com precisão, na frase bem conhecida: “os últimos serão os primeiros”. A descolonização é a prova exata dessa frase. Por isso, no plano da descrição, toda a descolonização é um êxito.
Exposta a sua nudez, a descolonização permite adivinhar, através de todos os seus poros, as balas e os cutelos sangrentos. Porque se os últimos devem ser os primeiros, não o podem ser senão através de uma afronta decisiva e mortífera entre os dois protagonistas. Essa vontade firme de fazer passar os últimos para a cabeça da fila, de fazer subir num ritmo (bastante rápido, dizem alguns) os conhecidos escalões que definem uma sociedade organizada, não pode triunfar enquanto não puser em ação todos os meios, incluindo, bem entendido, a violência.
Não se desorganiza uma sociedade, por mais primitiva que seja, com tal programa, se não se estiver decidido, desde o princípio, desde a formulação do próprio programa, a vencer todos os obstáculos que se encontrem no caminho. O colonizado que pensa realizar esse programa, toma-se no seu motor, está disposto a todo o momento para a violência. Desde o seu nascimento, ele sabe que esse mundo estreito, cheio de interdições, apenas pode ser remido pela violência absoluta.
O mundo colonial é um mundo compartimentado. Sem dúvida que é inútil, no plano da descrição, recordar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, assim como não adianta nada recordar o apartheid na África do Sul. Não obstante, se penetrarmos na intimidade dessa separação em compartimentos, poderemos pelo menos pôr em evidência algumas das linhas de força que ela comporta. Esta visão do mundo colonial, da sua distribuição, da sua disposição geográfica, permite-nos delimitar os ângulos a partir dos quais se reorganizará a sociedade descolonizada.
O mundo colonizado é um mundo dividido em dois. A linha divisória, a fronteira, está indicada pelos quartéis e pelos postos da polícia. Nas colónias, o interlocutor válido e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o polícia e o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino, religioso ou laico, a formação de princípios morais transmitidos de pais para filhos, a honestidade exemplar de trabalhadores condecorados após cinquenta anos de bons e leais serviços, o amor encorajado pela harmonia e pela prudência, essas formas estéticas do respeito à ordem estabelecida criam em redor do explorado uma atmosfera de submissão e de inibição que diminui consideravelmente as forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de “desorientadores”. Nas regiões coloniais, ao contrário, o polícia e o soldado, pelas suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contacto com o colonizado e aconselham-no, com golpes de coronha ou incendiando as suas palhotas, que não faça qualquer movimento. O intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não mitiga a opressão, nem encobre mais o domínio. Expõe e manifesta esses sinais com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.
A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos. Essas duas zonas opõem-se, mas não ao serviço de uma unidade superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao princípio de exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos está a mais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo estão sempre cheios de vestígios desconhecidos, nunca vistos, nem sonhados. Os pés do colono não se veem nunca, a não ser no mar, mas poucas vezes se podem ver de perto. Pés protegidos por fortes sapatos, apesar das ruas da sua cidade serem limpas, lisas, sem covas, sem pedras. A cidade do colono é uma cidade farta, indolente e está sempre cheia de coisas boas. A cidade do colono é uma cidade de brancos e de estrangeiros.
A cidade do colonizado, a cidade indígena, a cidade negra, o bairro árabe, é um lugar de má fama, povoado por homens também de má fama. Ali, nasce-se em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não se sabe nunca de quê. É um mundo sem intervalos, os homens estão uns sobre os outros, as cabanas dispõem-se do mesmo modo. A cidade do colonizado é uma cidade esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade agachada, de joelhos, a chafurdar. É uma cidade de negros, uma cidade de ruminantes. O olhar que o colonizada lança sobre a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de desejo. Sonhos de possessão.
Todos os modos de possessão: sentar-se à mesa do colono, deitar-se na cama do colono, com a sua mulher se possível. O colonizado é um invejoso. O colono não o ignora quando, surpreendendo o seu olhar à deriva, comprova amargamente, mas sempre alerta: “Querem ocupar o nosso lugar.” É verdade, não há um colonizado que não sonhe, pelo menos uma vez por dia, em instalar-se no lugar do colono.
Esse mundo em compartimentos, esse mundo dividido em dois, está habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida, não chegam nunca a esconder as realidades humanas. Quando se compreende no seu aspecto imediato o contexto colonial, é evidente que o que divide o mundo é sobretudo o facto de se pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colónias, a infraestrutura é igualmente uma superestrutura. A causa é efeito: se é rico porque é branco, se é branco porque é rico. Por isso, as análises marxistas devem modificar-se ligeiramente sempre que abordam o sistema colonial. Mesmo o conceito da sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, teria que ser de novo formulado. O servo é de uma essência diferente da do cavalheiro, mas é necessária uma referência ao direito divino para legitimar essa diferença de classes. Nas colónias, o estrangeiro impôs-se com a ajuda dos seus canhões e das suas máquinas. Apesar da domesticação empreendida e da apropriação, o colono continua a ser sempre um estrangeiro. Não são as fábricas, as propriedades nem a conta no banco que caracterizam principalmente a “classe dirigente”. A espécie dirigente é, antes de mais, a que vem de fora, a que não se parece aos autóctones, “aos outros”.
A violência que presidiu à constituição do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, que demoliu sem restrições os sistemas de referências da economia, os modos de aparência, a roupa, será reivindicada e assumida pelo colonizado desde o momento em que, decidida a converter a história em ação, a massa colonizada penetra violentamente nas cidades proibidas. Provocar um estalido no mundo colonial será, no futuro, uma imagem de ação muito clara, compreensível e capaz de ser assumida por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Desviar o mundo colonial não significa que depois da abolição das fronteiras se arranjará comunicações entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-la no solo mais fundo ou expulsá-la do território.
A impugnação do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto nacional de qualquer ponto de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada de uma originalidade formulada como absoluta. O mundo colonial é um mundo maniqueu. Não basta ao colono limitar fisicamente, quer dizer, com a ajuda da sua polícia e dos seus soldados, o espaço do colonizado. Como para ilustrar o carácter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quinta-essência do mal. A sociedade colonizada não se define apenas como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores o abandonaram, ou melhor, não habitaram nunca o mundo colonizado. O indígena declarou-se impermeável à ética, ausência de valores, mas também negação de valores. É, atrevemo-nos a dizê-lo, o inimigo dos valores. Neste sentido, é um mal absoluto.
Elemento corrosivo, destruidor de tudo o que o rodeia, elemento deformador, capaz de desfigurar tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas. E M. Meyer podia dizer seriamente à Assembleia Nacional Francesa que não havia que prostituir a República fazendo entrar nela o povo argelino. Os valores, com efeito, são irreversivelmente envenenados e infectados quando se põem em contacto com o povo colonizado. Os costumes do colonizado, as suas tradições, os seus mitos, principalmente os seus mitos, são mesmo a marca dessa indigência, dessa depravação constitucional. Por isso, deve pôr-se no mesmo plano o D. D. T., que destrói os parasitas transmissores de enfermidades, e a religião cristã, que extirpa de raiz as heresias, os instintos, o mal. O retrocesso da febre amarela e os progressos da evangelização fazem parte do mesmo balanço. Mas os comunicados triunfantes das missões informam realmente acerca da importância dos sintomas de alienação introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da religião cristã e ninguém tem direito a surpreender-se. A Igreja nas colónias é uma igreja de brancos, uma igreja de estrangeiros. Não chama o homem colonizado ao caminho de Deus, mas ao caminho do branco, do amo, do opressor. E, como se sabe, nesta história são muitos os chamados e poucos os eleitos.
Às vezes esse maniqueísmo chega ao extremo da sua lógica e desumaniza o colonizado. Propriamente falando, animaliza-o. E, na realidade, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem zoológica. Alude-se aos movimentos de réptil do amarelo, às emanações da cidade indígena, às hordas, à peste, ao pululamento, ao formigueiro, às gesticulações. O colono, quando quer descrever e encontrar a palavra justa, refere-se constantemente ao bestial. O europeu poucas vezes utiliza “imagens”. Mas o colonizado, que compreende o projeto do colono, o processo exato que se pretende fazer-lhe seguir, sabe imediatamente em que pensa. Essa demagogia galopante, essas massas histéricas, esses rostos dos quais desapareceu toda a humanidade, esses corpos obesos que já não se assemelham a nada, essa coorte sem cabeça nem cauda, essas crianças que quase não pertencem a ninguém, esses preguiçosos estendidos ao sol, esse ritmo vegetal, tudo isso faz parte do vocabulário colonial. O general De Gaulle fala das “multidões amarelas” e o senhor Mauriac das massas negras, pardas e amarelas que depressa vão rebentar. O colonizado sabe tudo isso e ri cada vez que se descobre como animal nas palavras do outro. Porque sabe que não é um animal. Ao mesmo tempo que descobre a sua humanidade, começa a polir as suas armas para as fazer triunfar.
Quando o colonizado começa a refletir sobre as suas amarras, a inquietar o colono, enviam-lhe almas boas que, nos “congressos de cultura”, lhe expõem as qualidades específicas, as riquezas dos valores ocidentais. Mas cada vez que se trata de valores ocidentais produz-se no colonizado uma espécie de endurecimento, de tetania muscular. No período de descolonização, apela-se para a razão dos colonizados. Propõem-se-lhes valores seguros, explica-se-lhes abundantemente que a descolonização não deve significar regressão, que deve apoiar-se em valores experimentados, sólidos, bem considerados. Mas sucede que quando um colonizado ouve um discurso sobre a cultura ocidental, puxa pelo seu sabre ou pelo menos assegura-se de que ele está ao alcance da sua mão. A violência com que se afirmou a supremacia dos valores brancos, a agressividade que impregnou o confronto vitorioso desses valores com os modos de vida ou de pensamento dos colonizados, fazem com que, por uma justa inversão das coisas, o colonizado os escarneça quando se evocam na sua presença esses valores. No contexto colonial, o colono não se detém no seu trabalho de desancar com violência o colonizado, mesmo quando este último reconheceu em voz alta e inteligível a supremacia dos valores brancos. No período de descolonização, a massa colonizada escarnece desses mesmos valores, insulta-os, vomita-os com todas as suas forças.
Esse fenómeno dissimula-se geralmente porque durante o período de descolonização certos intelectuais colonizados entabularam um diálogo com a burguesia do país colonialista. Durante esse período, a população autóctone é tomada como massa indistinta. As poucas individualidades autóctones que os burgueses colonialistas tiveram ocasião de conhecer, aqui e além, não pesam suficientemente sobre essa percepção imediata para dar origem a matizes. Pelo contrário, durante o período de libertação, a burguesia colonialista busca febrilmente estabelecer contatos com as elites. É com essas elites que se estabelece o famoso diálogo sobre os valores. A burguesia colonialista, quando adverte a impossibilidade de manter o seu domínio sobre os países coloniais, decide entabular um combate na retaguarda, no terreno da cultura, dos valores, das técnicas, etc. Mas o que não deve perder-se nunca de vista é que a grande maioria dos povos colonizados se considera impermeável a esses problemas. Para o povo colonizado, o valor mais essencial, por ser o mais concreto, é primordialmente a terra: a terra que deve assegurar o pão e, bem entendido, a dignidade da “pessoa humana”. Essa pessoa humana ideal, nunca ouviu falar dela. O que o colonizado viu na sua terra é que podia ser preso, espancado ou morrer de fome impunemente; e nunca nenhum professor de moral, nenhum padre, recebeu tais golpes em seu lugar ou repartiu com ele o seu pão. Para o colonizado, ser moralista é, muito concretamente, calar a atitude déspota do colono, quebrar a sua violência posta à prova, numa palavra, é expulsá-lo definitivamente do panorama. O famoso princípio que pretende que todos os homens sejam iguais, encontrará a sua ilustração nas colónias quando o colonizado estabeleça que é igual ao colono. Um passo mais, ele bater-se-á para ser mais que o colono. Na verdade, ele decidiu já substituir o colono, tomar o seu lugar. Como se vê, é todo um universo material e moral que se destrói. O intelectual que tem pelo seu lado, seguindo o colonialista no plano do universal abstrato, vai bater-se para que o colono e o colonizado possam viver em paz num mundo novo. Mas o que não vê, porque o pensamento do colonialismo infiltrou-se nele com todos os seus modos de pensar, é que o colono, quando desaparecer o contexto colonial, não tem já interesse em permanecer, em coexistir. Não é um perigo se, antes mesmo de qualquer negação entre o governo argelino e o governo francês, a minoria europeia chamada “liberal” fez já conhecer a sua posição: reclama, mais ou menos, a dupla cidadania. Acantonando-se no plano abstrato, quer condenar-se o colono a dar um salto muito concreto no desconhecido. Digamo-lo: o colono sabe perfeitamente que nenhuma fraseologia se substitui ao real.
O colonizado, portanto, descobre que a sua vida, a sua respiração, as pulsações do seu coração, são as mesmas que as do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais do que uma pele de indígena. Deve dizer-se que essa descoberta introduz uma agitação essencial no mundo. Toda a segurança nova e revolucionária do colonizado dimana disso. Se, com efeito, a minha vida tem a mesma importância que a do colono, o seu olhar já não me fulmina, já não me imobiliza, a sua voz não me petrifica. Já não me perturbo na sua presença. Praticamente, eu aborreço-o. A sua presença não me afeta nada, preparo-lhe tais emboscadas que em breve não terá outra saída a não ser a fuga.
O contexto colonial, temos dito, caracteriza-se pela dicotomia que inflige ao mundo. A descolonização unifica esse mundo, arrebatando-o de forma radical à sua heterogeneidade, unificando-o sobre a base da nação ou da raça. Conhecemos essa frase feroz dos patriotas senegaleses, ao evocar as manobras do seu presidente Senghor: “Temos pedido a africanização dos quadros e Senghor africaniza os europeus”. Isto quer dizer que o colonizado tem a possibilidade de perceber de forma imediata e absoluta se a descolonização tem lugar ou não: o mínimo exigido é que os últimos sejam os primeiros.
Mas o intelectual colonizado coloca variantes a esta petição e, na verdade, os motivos não parecem faltar-lhe: quadros administrativos, quadros técnicos, especialistas. Mas o colonizado interpreta esses salvo-condutos ilegais como outras tantas manobras de sabotagem e não é raro ouvir, aqui e além, o colonizado declarar: “Não valia a pena, então, ser independente...”
Nas regiões colonizadas, onde se levou a cabo uma verdadeira luta de libertação, onde o sangue do povo correu e a duração da fase armada favoreceu o refluxo dos intelectuais sobre as bases populares, assiste-se a uma verdadeira extirpação da superestrutura sacada por esses intelectuais nos meios burgueses colonialistas. No seu monólogo narcisista, a burguesia colonialista, por intermédio dos seus universitários, havia firmado profundamente no espírito do colonizado que as essências são eternas apesar de todos os erros imputáveis aos homens. As essências ocidentais, bem entendido. O colonizado aceitava a boa intenção destas ideias e em redor do seu cérebro podia descobrir-se uma sentinela vigilante encarregada de defender o pedestal greco-latino. Mas, durante a luta de libertação, quando o colonizado volta a estabelecer contacto com o seu povo, essa sentinela fictícia pulveriza-se. Todos os valores mediterrâneos, triunfo da pessoa humana, da claridade e da beleza, se convertem em adornos sem vida e sem cor. Todos esses argumentos parecem um conjunto de palavras mortas. Esses valores, que pareciam enobrecer a alma, revelam-se inúteis, porque não se referem ao combate concreto que o povo empreendeu.
E, em primeiro lugar, o individualismo. O intelectual colonizado aprendeu pelos seus mestres que o indivíduo deve afirmar-se. A burguesia colonialista introduziu a golpes de pilão, no espírito do colonizado, a ideia de uma sociedade de indivíduos, onde cada qual se encerra na sua subjetividade, onde a riqueza é a do pensamento. Mas o colonizado que tenha a oportunidade de se esconder no povo durante a luta de libertação, vai descobrir a falsidade dessa teoria. As formas de organização da luta vão propor-lhe um vocabulário inabitual. O irmão, a irmã, o camarada, são palavras proscritas pela burguesia colonialista porque, para ela, meu irmão é a minha senha, meu camarada é o meu entendimento. O intelectual colonizado assiste, numa espécie de auto-de-fé, à destruição de todos os seus ídolos: o egoísmo, a recriminação orgulhosa, a imbecilidade infantil daquele que sempre quer dizer a última palavra. Esse intelectual colonizado, atomizado pela cultura colonialista, descobrirá igualmente a consistência das assembleias das aldeias, a densidade das comissões do povo, a extraordinária fecundidade das reuniões de bairro e de célula. Os assuntos de cada um já não deixarão nunca de ser assuntos de todos, porque, concretamente, todos serão descobertos pelos legionários e assassinados ou todos se salvarão. A “indiferença”, essa forma ateia de salvação, está proibida neste contexto.
Fala-se muito, desde há tempos, da autocrítica: saber-se-á, porventura, que foi em princípio uma instituição africana? Seja nos djemaas da África do Norte ou nas reuniões da África Ocidental, a tradição quer que os conflitos que estalam numa aldeia sejam debatidos em público. Autocrítica em comum, sem dúvida, com uma nota de humor, porque todo o mundo está desarmado, porque todos queremos, em último caso, as mesmas coisas. O cálculo, os silêncios insólitos, as reservas, o espírito subterrâneo, o segredo, tudo isso o intelectual abandona à medida que mergulha no povo. E é verdade que, então, se pode dizer que a comunidade triunfa já nesse nível, segrega a sua própria luz, a sua própria razão.
Mas pode suceder que a descolonização se produza em regiões não ainda suficientemente sacudidas pela luta de libertação e ali se encontrem esses mesmos intelectuais hábeis, maliciosos, astutos. Neles se encontram intactas as formas de conduta e de pensamento recolhidas durante a sua ligação com a burguesia colonialista. Ontem, meninos mimados do colonialismo, hoje, da autoridade nacional, organizam a pilhagem de quaisquer recursos nacionais. Desumanos, sobem por combinações ou por roubos ilegais: importação-exportação, sociedades anónimas, jogos de bolsa, privilégios ilegais, sobre essa miséria hoje nacional. Demandam com insistência a nacionalização das empresas comerciais, isto é, a reserva dos mercados e das boas oportunidades somente para os nacionais. Doutrinalmente, proclamam a necessidade imperiosa de nacionalizar o roubo da nação. Nessa aridez do período nacional, na fase chamada de austeridade, o êxito dos seus roubos prova rapidamente a cólera e a violência do povo. Esse povo miserável e independente, no contexto africano e internacional atual, assume a consciência social num ritmo acelerado. As pequenas individualidades não tardarão a compreendê-lo.
Para assimilar a cultura do opressor e aventurar-se, o colonizado teve que dar garantias. Entre outras, teve de fazer suas as formas de pensamento da burguesia colonial. Isso se comprova pela inaptidão do intelectual para dialogar. Porque não sabe fazer-se desnecessário perante o objeto ou a ideia. Pelo contrário, quando milita no seio do povo ele maravilha-se continuamente. Vê-se, em parte, desarmado pela boa fé e pela honestidade do povo. O risco permanente que o espreita, então, é fazer-se populista. Transforma-se numa espécie de bendito seja, que responde a cada frase do povo, convertida para ele em sentença. Mas o fellah, o desempregado, o esfomeado, não pretende a verdade. Ele não diz que é a verdade, porque ela está em si mesmo.
O intelectual comporta-se objetivamente, nesta etapa, como um invulgar oportunista. As suas manobras, com efeito, não cessaram. O povo não pensa em aplaudi-lo ou acorrentá-lo. O que o povo exige é que tudo se tome comum. A inserção do intelectual colonizado na camada popular vai demorar-se devido à existência nele de um curioso culto pela divisão. Não é que o povo seja rebelde ao analisá-lo. O povo gosta que lhe expliquem, gosta de compreender as articulações de um raciocínio, gosta de ver até onde vai. Mas o intelectual colonizado, no princípio da sua coabitação com o povo, dá mais importância ao pormenor e chega a esquecer a derrota do colonialismo, o próprio objeto da luta. Arrastado no movimento multiforme da luta, tem tendência para se fixar em tarefas locais, realizadas com ardor, mas quase sempre demasiado solenes. Não vê nunca a totalidade. Introduz a noção de disciplinas, especialidades, campos, nessa terrível máquina de misturar e triturar que é uma revolução popular. Dedicado a alguns pontos precisos da frente, ele chega a perder de vista a unidade do movimento e, em caso de fracasso local, deixa-se dominar pela dúvida e pela decepção. O povo, ao contrário, adopta desde o princípio posições globais. A terra e o pão: que fazer para obter a terra e o pão? Esse aspecto do povo, aparentemente limitado, restrito, é o modelo operatório mais rico e eficaz.
O problema da verdade deve solicitar igualmente a nossa atenção. No seio do povo, desde sempre, a verdade apenas corresponde aos nacionais. Nenhuma verdade absoluta, nenhum argumento sobre a transcendência da alma pode destruir essa posição. À mentira da situação nacional, o colonizado responde com uma mentira semelhante. A conduta é aberta com os nacionais, crispada e ilegível com os colonos. A verdade precipita a deslocação do regime colonial, favorece o despertar da nação. A verdade é que protege os indígenas e perde os estrangeiros. No contexto colonial, não existe uma conduta regida pela verdade. E o bem é simplesmente o que eles fazem do mal.
Compreende-se, então, como o maniqueísmo primário que regia a sociedade colonial se conserva intacto no período da descolonização. É que o colono não deixa de ser nunca o inimigo, o antagonista, precisamente o homem a eliminar. O opressor, na sua zona, faz existir o movimento — movimento de domínio, de exploração, de pilhagem. Na outra zona, a coisa colonizada, enrolada, espoliada, alimenta como pode esse movimento, que vai sem parar desde os limites do território aos palácios e às docas da “metrópole”. Nessa zona fixa, a superfície está quieta, a palmeira agita-se frente às nuvens, as ondas do mar rebentam sobre os rochedos, as matérias-primas vão e vêm legitimando a presença do colono, enquanto que escondido, mais morto que vivo, o colonizado se eterniza num sonho sempre igual. O colono faz a história. A sua vida é uma epopeia, uma odisseia. É o princípio absoluto: “Esta terra, nós a temos feito”. É a causa permanente: “Se partimos, tudo está perdido, esta terra voltará à Idade Média”. Em face disso, os seres embotados, roídos de dentro pelas febres e os “costumes ancestrais”, constituem um marco quase mineral do dinamismo inovador do mercantilismo colonial.
O colono faz a história e sabe que a faz. E como se refere constantemente à história da metrópole, indica com clareza que está aqui como prolongamento dessa metrópole. A história que escreve não é, pois, a história do país que ele despoja, mas a história da sua nação onde ele rouba, viola e espalha a fome. A imobilidade a que está condenado o colonizado não pode ser impugnada, senão quando o colonizado decide pôr termo à história da colonização, à história da pilhagem, para fazer existir a história da nação, a história da descolonização.
Mundo compartimentado, maniqueu, imóvel, mundo de estátuas: a estátua do general que fez a conquista, a estátua do engenheiro que construiu a ponte. Mundo seguro de si, esmagando com as suas pedras as feridas abertas pelo chicote. Eis aí o mundo colonial. O indígena é um ser encurralado, o apartheid é somente uma modalidade da divisão em compartimentos do mundo colonial. A primeira coisa que o indígena aprende é a colocar-se no seu lugar, não passar dos seus limites. Por isso, os seus sonhos são sonhos musculares, de ação, agressivos. Sonho que salto, que nado, que corro, que brinco. Sonho que estalo de riso, atravesso o rio de um salto, me perseguem muitas viaturas e nunca me alcançam.
Durante a colonização, o colonizado não deixa de libertar-se entre as nove da noite e as seis da manhã.
Essa agressividade sedimentada nos seus músculos, o colonizado manifesta-a primeiro contra os seus. É o período em que os negros se colocam entre si e os polícias, os juízes de instrução não sabem o que fazer perante a criminalidade norte-africana. Mais adiante, veremos o que se deve pensar deste fenómeno. Frente à situação colonial, o colonizado encontra-se num estado de tensão permanente. O mundo do colono é um mundo hostil que rejeita, mas ao mesmo tempo é um mundo que faz inveja. Temos visto como o colonizado sonha sempre em instalar-se no lugar do colono. Não para converter-se no colono, claro, mas para substituí-lo. Esse mundo hostil, pesado, agressivo, porque rejeita com toda a sua força a massa colonizada, representa não o inferno de que devia afastar-se o mais rapidamente possível, mas um paraíso ao alcance da mão protegida por terríveis cães de guarda.
O colonizado está sempre alerta, decifrando dificilmente os múltiplos signos do mundo colonial; nunca sabe se passou ou não o limite. Frente ao mundo determinado pelo colonialista, o colonizado presume-se sempre culpado. A culpabilidade do colonizado não é uma culpabilidade assumida, é antes uma espécie de maldição, uma espada de Dâmocles. Mas, no mais fundo de si mesmo, o colonizado não reconhece nenhuma instância. Está dominado, mas não domesticado. Está inferiorizado, mas não convencido da sua inferioridade. Espera pacientemente que o colono descuide a sua vigilância para lhe cair em cima. Nos seus músculos, o colonizado está sempre em atitude de expectativa. Não pode dizer-se que esteja inquieto, se encontre aterrorizado. Na realidade, está sempre pronto a abandonar o seu papel de presa e a assumir o de caçador. O colonizado é um perseguido que sonha permanentemente transformar-se em perseguidor. Os símbolos sociais — polícias, clarins que soam nos quartéis, desfiles militares e a bandeira hasteada — servem simultaneamente de inibidores e de excitantes. Não significam: “Não te movas”, mas antes: “Prepara bem o teu golpe”. E, de facto, se o colonizado tivesse tendência para se deixar adormecer, esquecer, a altivez do colono e a sua precaução de experimentar a solidez do sistema colonial, recordar-lhe-iam a cada passo que o grande confronto não poderá ser indefinidamente adiado. Esse impulso de tomar o lugar do colono, mantém constantemente a sua tensão muscular. Sabemos, com efeito, que em certas condições emocionais a presença do obstáculo acentua a tendência do movimento.
As relações entre colono e colonizado são relações de massa. Ao número, o colono opõe a sua força. O colono é um exibicionista. O seu desejo de segurança, leva-o a recordar em voz alta ao colonizado que: “Aqui, o amo sou eu”. O colono alimenta no colonizado uma cólera que detém ao manifestar-se. O colonizado vê-se amarrado entre as malhas apertadas do colonialismo. Mas já temos visto como, no seu íntimo, o colono obtém apenas uma pseudo-petrificação. A tensão muscular do colonizado liberta-se periodicamente nas explosões sanguinárias: lutas tribais, lutas de çofs, lutas entre indivíduos.
Ao nível dos indivíduos, assistimos a uma verdadeira negação do bom-senso. Enquanto o colono ou o polícia podem, diariamente, golpear o colonizado, insultá-lo, pô-lo de joelhos, ver-se-á o colonizado puxar do seu cutelo ao mais pequeno olhar hostil de outro colonizado. Porque o último recurso do colonizado é defender a sua personalidade frente ao seu semelhante. As lutas tribais fazem apenas perpetuar velhos rancores não apagados da memória. Ao lançar com todas as forças a sua vingança, o colonizado convence-se de que o colonialismo não existe, que tudo caminha como anteriormente, que a história continua. Observamos com plena claridade, ao nível das coletividades, essas conhecidas formas de conduta e de prevenção, como se mergulhar no sangue fraterno não permitisse ver o obstáculo, adiar até mais tarde a opção inevitável que desemboca na luta armada contra o colonialismo. Autodestruição coletiva muito concreta nas lutas tribais, é, pois, um dos caminhos por onde se liberta a tensão muscular do colonizado. Todos esses compartimentos são reflexos de morte perante o perigo, condutas suicidas que permitem ao colono, cuja vida e domínio resultam mais consolidados, comprovar que esses homens não são racionais. O colonizado igualmente, através da religião, não toma em conta o colono. Pelo fatalismo, retira-se ao opressor toda a iniciativa, a causa dos males, da miséria e do destino está em Deus. O indivíduo aceita assim a dissolução decidida por Deus, rebaixa-se frente ao colono, frente à corte e, por uma espécie de equilíbrio interior, alcança uma serenidade de pedra.
Entretanto, a vida continua e é através dos mitos terríficos, tão prolixos nas sociedades subdesenvolvidas, que o colonizado extrai as inibições da sua agressividade: génios maléficos intervêm sempre que alguém se move, homens leopardos, homens serpentes, cães de seis patas, toda uma gama inesgotável de formas animais ou de gigantes cria em redor do colonizado um mundo de proibições, de barreiras, de impedimentos, muito mais terrível que o mundo colonialista. Esta superestrutura mágica que impregna a sociedade autóctone cumpre, dentro do dinamismo da economia devassada, funções precisas. Uma das características das sociedades subdesenvolvidas considera que a devassidão é principalmente uma questão de grupo, de família. Conhecemos esse sinal, bem descrito pelos etnólogos, de sociedades onde o homem que sonha ter relações sexuais com uma mulher que não é a sua, deve confessar publicamente esse sonho e pagar o imposto em espécie ou em dias de trabalho ao marido ou à família ofendida. Isto prova, de passagem, que as sociedades chamadas pré-históricas dão grande importância ao inconsciente.
A atmosfera de mito e de magia, ao provocar-me medo, atua como uma realidade indubitável. Ao aterrorizar-me, integra-me nas tradições, na história da minha terra ou da minha tribo, mas ao mesmo tempo assegura-me um estatuto, assinala-me num boletim de registo civil. O plano do segredo, nos países subdesenvolvidos, é um plano coletivo que depende exclusivamente da magia. Ao limitar-me dentro dessa rede inextricável, onde os atos se repetem com uma permanência cristalina, o que se afirma é a perenidade de um mundo meu, de um mundo nosso. Os zombis são mais aterrorizantes, acreditamos, do que os colonos. E o problema não está, então, em pôr-se de acordo com o mundo coberto de ferro do colonialismo, mas em pensá-lo três vezes antes de urinar, cuspir ou sair de noite.
As forças sobrenaturais, mágicas, são forças surpreendentemente moiques. As forças do colono são infinitamente diminuídas, resultam sem utilidade. Não se deve lutar realmente contra elas, dado que o que conta é a terrível adversidade das estruturas míticas. Tudo se resolve, como se vê, num permanente nivelamento no plano fantasmagórico.
De qualquer modo, na luta de libertação, esse povo antes repartido em círculos irreais, presa de um terror indizível, mas feliz por se perder num tormento onírico, desloca-se, reorganiza-se e inventa, com sangue e lágrimas, confrontos muito reais e imediatos. Dar de comer aos moudjahidines, colocar sentinelas, ajudar as famílias mais necessitadas, substituir o marido morto ou encarcerado: são essas as tarefas concretas que deve empreender o povo na luta pela libertação.
No mundo colonial, a afetividade do colonizado mantém-se à flor da pele como uma chaga que se não pode cicatrizar. E o psiquismo retrata-se, oblitera-se e descarrega-se em demonstrações musculares que levaram, homens muito inteligentes a afirmar que o colonizado é um histérico. Esta hiperafectividade, espiada por vigias invisíveis, mas que comunicam diretamente com o núcleo da personalidade, vai comprazer-se eroticamente nas dissoluções motrizes da crise.
Noutro ângulo, veremos como a afetividade do colono se esgota em danças mais ou menos tendentes ao êxtase. Por isso, um estudo do mundo colonial deve tentar compreender, forçosamente, o fenómeno da dança e do transe. O relaxamento do colonizado é precisamente essa orgia muscular no curso da qual a agressividade mais aguda, a violência mais imediata, se canalizam, se transformam, se escamoteiam. O círculo da dança é um círculo permissivo. Protege e autoriza. A horas determinadas, em datas fixas, homens e mulheres encontram-se num determinado lugar e, sob o olhar grave da tribo, lançam-se numa pantomina aparentemente desordenada, mas na realidade muito sistematizada, onde, por múltiplas vias, negações com a cabeça, inclinação da coluna vertebral, inclinação para trás de todo o corpo, se decifra abertamente o esforço grandioso de uma coletividade para se exorcizar, libertar e exprimir. No âmbito da dança... tudo é permitido. O montículo a que subiram está mais perto da lua, a ribanceira em que deslizaram, como para manifestar a equivalência da dança, a ablução, a purificação, são lugares sagrados. Tudo é permitido porque, na verdade, reúnem-se para deixar que surja vulcânica- mente a devassidão acumulada, a agressividade reprimida. Mortes simbólicas, cavalgadas figurativas, múltiplos assassinatos imaginários, tudo isso deve sair. Os maus humores derramam-se tumultuosos como torrentes de lava.
Um passo mais e caímos em pleno transe. Na realidade, são sessões de possessão-despossessão que se organizam: vampirismo, possessão pelos djinns, pelos zombis, por Legba, o deus ilustre de Vaudou. Estas triturações da personalidade, esses desdobramentos, essas dissoluções, cumprem uma função econômica primordial na estabilidade do mundo colonizado. Na ida, os homens e as mulheres estavam impacientes, excitados, “nervosos”. No regresso, volta à aldeia a calma, a paz, a imobilidade.
No decurso da luta de libertação, assistir-se-á a uma desafetação singular por essas práticas. Encostado ao muro, o cutelo sobre a garganta ou, para ser mais preciso, o eléctrodo sobre as partes genitais, o colonizado vê-se obrigado a não contar histórias.
Depois de anos de irrealismo, de se perder entre os fantasmas mais incríveis, o colonizado, empunhando a metralhadora, enfrenta por fim as únicas forças que negavam o seu ser: as do colonialismo. E o jovem colonizado que cresce numa atmosfera de ferro e fogo pode escarnecer — e não se recusa a fazê-lo — dos ultrapassados zombis, dos cavalos de duas cabeças, dos mortos que ressuscitam, dos djinns que se aproveitam de um bocejo para penetrar no nosso corpo. O colonizado descobre o real e transforma-o em movimento da sua prática, no exercício da violência, no seu projeto de libertação.
Temos visto que durante todo o período colonial esta violência, ainda que à flor da pele, gira no vazio. Vimo-la canalizada pelas descargas emocionais da dança ou do transe. Vimo-la esgotar-se em lutas fratricidas. Agora, coloca-se o problema de captar essa violência no caminho de se orientar. Enquanto anteriormente se expressava nos mitos e se esforçava em descobrir ocasiões de suicídio coletivo, é aqui que as condições novas lhe vão permitir mudar de orientação.
No plano da táctica política e da História, um problema teórico de importância capital se coloca na época contemporânea para a libertação das colónias: quando se poderá dizer que a situação está madura para um movimento de libertação nacional? Qual deverá ser a sua vanguarda? Como as descolonizações se revestem de formas múltiplas, a razão vacila e coíbe-se de afirmar o que é uma verdadeira descolonização e uma falsa colonização. Veremos que para o homem comprometido é urgente decidir os meios, a táctica, ou melhor, a conduta e a organização. Fora disso, há somente um voluntarismo cego com as eventualidades reacionárias que suporta.
Quais são as forças que, no período colonial, propõem à violência do colonizado novas vias, novos pólos de inversão? São primeiro os partidos políticos e as elites intelectuais ou comerciais. Mas o que caracteriza certas formas políticas é o facto de que proclamam princípios e se abstêm de dar palavras de ordem. Toda a atividade desses partidos políticos nacionalistas, no período colonial, é uma atividade de tipo eleitoral, uma série de dissertações filosófico-políticas sobre o tema do direito de os povos disporem de si mesmos, do direito dos homens à dignidade e ao pão, a afirmação contínua do princípio “cada homem — um voto”. Os partidos políticos nacionalistas não insistem nunca na necessidade da prova de força, porque o seu objetivo não é exatamente a transformação radical do sistema. Pacifistas, legalistas, partidários da ordem... nova, essas formações políticas colocam cruamente à burguesia colonialista o problema que lhes parece essencial: “Deem-nos mais poder.” Sobre o problema específico da violência, as elites são ambíguas. São violentas nas palavras e reformistas nas atitudes. Quando os quadros políticos nacionalistas burgueses dizem uma coisa, avisam sem rodeios que realmente a não pensam.
Deve interpretar-se essa característica dos partidos políticos nacionalistas quer pela qualidade dos seus quadros, como pela dos seus partidários. Os partidários dos partidos nacionalistas são partidários urbanos. Esses operários, esses mestres, esses pequenos artesãos e comerciantes que começaram — num nível menor, bem entendido — a aproveitar a situação colonial, têm interesses particulares. O que esses partidários reclamam é o melhoramento da sua vida, o aumento dos seus salários. O diálogo entre esses partidos políticos e o colonialismo nunca se rompe. Discutem-se as atitudes a assumir, representação eleitoral, liberdade de imprensa, liberdade de associação. Discutem-se reformas. Não deve ser surpresa, pois, ver-se um grande número de indígenas militar nas formações políticas da metrópole. Esses indígenas lutam por um lema abstrato: “o poder para o proletariado”, esquecendo que, na sua terra, devem fundar o combate assente, sobretudo, em lemas de carácter nacionalista. O intelectual colonizado inverteu a sua agressividade na sua vontade, apenas velada, de se assimilar ao mundo colonial. Colocou a sua agressividade ao serviço dos seus próprios interesses, dos seus interesses de indivíduo. Assim, surge facilmente uma espécie de classe de escravos forros: o que o intelectual reclama é a possibilidade de multiplicar e de organizar uma autêntica classe de escravos forros. As massas, pelo contrário, não pretendem o aumento das oportunidades de êxito dos indivíduos. O que exigem não é o estatuto do colono, mas o seu lugar. Os colonizados, na sua grande maioria, querem a solidez do colono. Não se trata de competir com ele. Querem de facto o seu lugar.
O campesinato é abandonado sistematicamente pela propaganda da maioria dos partidos nacionalistas. E é evidente que nos países coloniais somente o campesinato é revolucionário. Não tem nada a perder e tem tudo a ganhar. O camponês, o desclassificado, o esfomeado, é o explorado que depressa descobre apenas importar a violência. Para ele, não há compromissos, não há a possibilidade de arranjos. A colonização ou a descolonização são simplesmente uma relação de forças. O explorado compreende que a sua libertação exige todos os meios de ação e, em primeiro lugar, a força. Quando em 1956, depois da capitulação de Guy Mollet perante os colonos da Argélia, a Frente Nacional de Libertação, num célebre folheto, advertia que o colonialismo cede apenas com o cutelo sobre a garganta, nenhum argelino considerou realmente serem esses termos bastante violentos. O folheto expressava o que todos os argelinos sentiam no mais fundo de si próprios: o colonialismo não é uma máquina de pensar, nem um corpo dotado de razão. É a violência em estado primitivo e não pode submeter-se senão perante uma violência maior.
No momento de explicação decisiva, a burguesia colonialista que permaneceu até então no seu leito de plumas, entra em ação. Introduz esta nova noção que é, falando objetivamente, uma criação da situação colonial: a não- -violência. Na sua forma bruta, essa não-violência significa para as elites intelectuais e econômicas colonizadas que a burguesia colonialista tem os mesmos interesses, sendo, pois, necessário e urgente chegar a um acordo em favor da salvação comum. A não-violência é um propósito de ajustar o problema colonial em volta do pano verde de uma mesa de jogo, antes de qualquer gesto irrecuperável, qualquer efusão de sangue, qualquer ato lamentável. Mas se as massas, sem atenderem que as cadeiras sejam colocadas em redor da mesa de pano verde, ouvem apenas a sua própria voz e começam os incêndios e os atentados, vê-se então como as “elites” e os dirigentes dos partidos burgueses nacionalistas se precipitam sobre os colonizados para lhes dizerem: “Isto é muito grave! Ninguém sabe como tudo isto acabará. É necessário encontrar uma solução, é preciso encontrar um compromisso.”
Esta ideia do compromisso é muito importante no fenómeno da descolonização, está longe de ser simples. O compromisso, com efeito, refere-se tanto ao sistema colonial como à jovem burguesia colonial. Os defensores do sistema colonial descobrem que as massas correm o risco de tudo destruírem. A sabotagem de pontes, a destruição de herdades, as repressões, a guerra, tudo afeta duramente a economia. Compromisso igualmente para a burguesia nacional que, sem determinar muito bem as possíveis consequências do tufão, teme na verdade ser varrida por essa formidável borrasca e não deixa de afirmar aos colonos:
“Nós somos capazes, todavia, de deter o morticínio; as massas têm ainda confiança em nós, devemos preparar-nos para não comprometermos tudo.”
Um passo mais e o dirigente do partido nacionalista mede as distâncias em relação a essa violência. Afirma em voz alta não ter nada a ver com esses Mau-Mau, com esses terroristas, com esses degoladores. No melhor dos casos, entrincheira-se num no man’s land entre os terroristas e os colonos e apresenta-se de bom grado como “interlocutor”: isto significa que, como os colonos não podem discutir com os Mau-Mau, ele está disposto a facilitar-lhes as negociações. É assim que a retaguarda da luta nacional, essa parte do povo que nunca deixou de estar do outro lado da luta, se encontra situada, devido a essa ginástica, na vanguarda das negociações e do compromisso — porque precisamente se preocupou em não romper o seu contacto com o colonialismo.
Antes da negociação, a maioria dos partidos nacionalistas contenta-se, na melhor das hipóteses, em explicar e tolerar essa “selvajaria”. Não reivindicam a luta popular e não é raro que se deixem ir, nos círculos fechados, até condenar esses atos espetaculares declarados odiosos pela imprensa e pela opinião da metrópole. A preocupação de ver as coisas objetivamente, constitui a recusa legítima desta política de imobilidade. Mas essa atitude clássica do intelectual colonizado e dos dirigentes dos partidos nacionalistas não é realmente objetiva. Na verdade, não estão seguros de que essa violência impaciente das massas seja o meio mais eficaz para defender os seus próprios interesses. Além disso, estão convencidos da ineficácia dos métodos violentos. Para eles, não há dúvida: todo o propósito de quebrar a opressão colonial através da força é uma conduta desesperada, uma conduta suicida. É que, em seus cérebros, os tanques dos colonos e os aviões de caça ocupam um lugar enorme. Quando se lhes diz: é preciso atuar, veem as bombas sobre as suas cabeças, os tanques blindados avançando ao longo dos caminhos, a metralha, a polícia... eles permanecem sentados. Desde o princípio, consideram-se perdidos. A sua incapacidade para triunfar pela violência não necessitam de a demonstrar, pois que a assumem na sua vida quotidiana e nas suas manobras. Mantêm-se na posição pueril que Engels adoptava na sua célebre polémica com essa montanha de puerilidade que era Dühring:
“O mesmo que Robinson procurou numa espada, podemos admitir igualmente que “Sexta-feira” apareça um belo dia com um revólver carregado na mão e, então, toda a relação de “violência” se inverte: “Sexta-feira” manda e Robinson vê-se obrigado a trabalhar... Por conseguinte, o revólver vence a espada e mesmo o mais pueril amante de axiomas conceberá sem dúvida que a violência não é um simples ato de vontade, mas que exige, para se pôr em prática, condições prévias muito reais, especialmente instrumentos, o mais perfeito dos quais prevalece sobre o menos perfeito; que, além disso, esses instrumentos devem ser produzidos, o que significa também que o produtor de instrumentos de violência mais perfeitos, falando grosseiramente das armas, prevalece sobre o produtor dos menos perfeitos e que, numa palavra, a violência descansa na produção de armas e esta, por sua vez, na produção em geral, portanto... no “poder económico”, no Estado económico, nos meios materiais que estão à disposição da violência. Na verdade, os dirigentes reformistas não dizem outra coisa: “Como querem lutar contra os colonos? Com os vossos cutelos? Com as vossas espingardas de caça?”
É verdade que os instrumentos são importantes no campo da violência, dado que tudo descansa definitivamente sobre a divisão desses instrumentos. Mas sucede que, nesse terreno, a libertação dos territórios coloniais produz uma nova luz. Sabemos, por exemplo, que na campanha de Espanha, essa autêntica guerra colonial, Napoleão, apesar dos efetivos que alcançaram durante as ofensivas da Primavera de 1810 a enorme cifra de 400 mil homens, foi obrigado a retroceder. Não obstante, o exército francês fazia estremecer toda a Europa pelos seus instrumentos bélicos, pelo valor dos seus soldados, pelo génio militar dos seus capitães. Frente aos meios enormes das tropas napoleónicas, os espanhóis, animados por uma fé nacional inquebrantável, descobriram a famosa guerrilha que, vinte e cinco anos antes, as milícias norte-americanas experimentaram contra as tropas inglesas. Mas a guerrilha do colonizado não seria nada como instrumento de violência oposto a outros instrumentos de violência, se não fosse um elemento novo no processo global da competência entre trustes e monopólios.
No princípio da colonização, uma coluna podia ocupar territórios muito grandes: o Congo, a Nigéria, a Costa do Marfim, etc. Mas, hoje, a luta nacional do colonizado insere-se numa situação absolutamente nova. O capitalismo, no seu período de ascensão, viu nas colónias uma fonte de matérias-primas que, manufaturadas, podiam ser vendidas no mercado europeu. Depois de uma fase de acumulação de capital, modifica agora a sua concepção da rentabilidade de um negócio. As colónias converteram-se num mercado. A população colonial é uma clientela que compra. Se a guarnição deve ser eternamente reforçada, se o comércio diminui, quer dizer, se os produtos manufaturados e industrializados já não podem ser exportados, isso prova que a solução militar deve ser alargada. Uma dominação cega de tipo escravagista não é economicamente rentável para a metrópole. A fracção monopolista da burguesia metropolitana não apoia um governo cuja política é apenas a da espada. O que os industriais e financeiros da metrópole esperam do seu governo não é que dizime a população, mas que defenda, com a ajuda de convénios económicos, os seus “legítimos interesses”.
Existe, pois, uma cumplicidade objetiva do colonialismo com as forças violentas que estalam no território colonial. Além disso, o colonizado não está sozinho em face do opressor. Existe, bem entendido, a ajuda política e diplomática dos países e povos progressistas. Mas, sobretudo, ele tem a competição, a guerra desapiedada a que se entregam os grupos financeiros. Uma conferência de Berlim pode repartir a África despedaçada entre três ou quatro bandeiras. Hoje, o que importa não é que tal região africana seja território de soberania francesa ou belga: o que importa é que as zonas econômicas estejam protegidas. O bombardeio da artilharia, a política da terra queimada, deram lugar à sujeição econômica. Hoje, já não se dirige uma guerra de repressão contra qualquer sultão rebelde. A atitude é mais elegante, menos sanguinária e decide-se a liquidação pacífica do regime castrista. Procura estrangular-se a Guiné, suprime-se o Mossadegh. O dirigente nacional que tem medo à violência, engana-se, pois, ao pensar que o colonialismo nos vai “matar a todos”. Os militares, bem entendido, continuam a fazer de heróis como nos tempos da conquista, mas os meios financeiros apressam-se a reconduzi-los à realidade.
Por isso, pede-se aos partidos políticos nacionais razoáveis que exponham, o mais claramente possível, as suas reivindicações e procurem com a parte colonialista, com calma e sem paixão, uma solução que respeite os interesses das duas partes. Se essa reforma nacionalista, que se apresenta com frequência como uma caricatura do sindicalismo, se decide a agir, atuará por meios altamente pacíficos: greves nas poucas indústrias estabelecidas nas cidades, manifestações de massas para aclamar o dirigente político, boicotagem dos autocarros ou dos produtos importados. Todas estas ações servem por sua vez para fazer pressão sobre o colonialismo e evitar que o povo se consuma. Esta prática terapêutica, esta “cura de sono” do povo, pode ter êxito algumas vezes. Na discussão em volta da mesa de pano verde, surge a promoção política que permite a M. M’ba, presidente da república do Gabão, afirmar solenemente à sua chegada em visita oficial a Paris:
“O Gabão é independente, mas nada mudou entre o Gabão e a França, tudo continua como outrora.”
Na verdade, a única mudança é que M. M’ba é presidente da república gabonesa e é recebido pelo presidente da república francesa.
A burguesia colonialista é auxiliada no seu trabalho de tranquilizar os colonos pela inevitável religião. Todos os santos que ofereceram a outra face, perdoaram as ofensas, receberam sem estremecer os insultos, são referidos e apontados como exemplos. As elites dos países colonizados, esses escravos com alforria, quando se encontram à cabeça do movimento, acabam inevitavelmente por produzir um ersatz do combate. Utilizam a escravidão dos seus irmãos para provocar a vergonha dos escravagistas ou para dar um conteúdo ideológico de humanismo ridículo aos grupos financeiros adversários dos seus opressores. Nunca apelam realmente para os escravos, nunca os mobilizam concretamente. Pelo contrário, na hora da verdade, isto é, para eles, na hora da mentira, vibram com a ameaça de uma mobilização de massas como a arma decisiva que provocaria, como por encanto, o “fim do regime colonial”. Existe, evidentemente, no seio desses partidos políticos, entre os quadros, revolucionários que voltam, de forma deliberada, as costas à farsa da independência nacional. Mas em seguida as suas intervenções, as suas iniciativas, os seus movimentos de cólera molestam a máquina do partido. Progressivamente, esses elementos são isolados e logo separados de forma definitiva. Ao mesmo tempo, como se houvesse combinação dialética, a polícia colonialista cai-lhes em cima. Sem segurança nas cidades, evitados pelos militares, rejeitados pelas autoridades do partido, esses indesejáveis de olhar incendiário vão parar ao campo. Então, percebem, com certo delírio, que as massas campesinas compreendem imediatamente as suas palavras e, sem transição, colocam-lhes a pergunta, para a qual não têm qualquer resposta preparada: “Para quando?”.
Este encontro dos revolucionários vindos das cidades com os camponeses, chamará a nossa atenção mais adiante. Convém agora voltar aos partidos políticos para mostrar o carácter progressista da sua ação, apesar de tudo. Nos seus discursos, os dirigentes políticos “nomeiam” a nação. As reivindicações do colonizado recebem assim uma forma. Não há conteúdo, não há programa político e social. Há uma forma vaga, mas apesar disso nacional, um marco, o que chamamos a exigência mínima. Os políticos que tomam a palavra, que escrevem nos jornais nacionalistas, fazem sonhar o povo. Evitam a subversão, mas introduzem de facto terríveis princípios de subversão na consciência dos ouvintes ou leitores. Com frequência, utilizam a língua nacional ou tribal. Isto é também fomentar o sonho, permitir que a imaginação se liberte da ordem colonial. Às vezes, esses políticos dizem: “Nós os negros, nós os árabes” e esse apelo, carregado de sentido durante o período colonial, recebe uma espécie de consagração. Os políticos nacionalistas brincam com o fogo. Porque, como dizia recentemente um dirigente africano a um grupo de jovens intelectuais: “Reflitam antes de falarem às massas, elas entusiasmam-se rapidamente.” Existe, pois, uma astúcia da História, que atua terrivelmente nas colónias.
Quando o dirigente político convida o povo a um motim, pode dizer-se que há sangue no ar. Sem dúvida, o dirigente, com frequência, preocupa-se sobretudo em “mostrar” as suas forças... para não ter que as utilizar. Mas a agitação assim mantida — ir, vir, ouvir discursos, ver o povo reunido, os polícias vigiando, as demonstrações militares, as prisões, as deportações de dirigentes — tudo isso excita e dá ao povo a impressão de que chegou o momento de fazer alguma coisa. Nesses períodos de instabilidade, os partidos políticos dirigem à esquerda múltiplos apelos de calma, enquanto a direita esquadrinha o horizonte, tratando de decifrar as intenções liberais do colonialismo.
O povo utiliza igualmente, para se manter em forma e conservar a sua capacidade revolucionária, certos aspectos da vida da coletividade. O bandido, por exemplo, que se mantém no campo durante alguns dias frente aos polícias lançados em sua perseguição, aquele que, em combate singular, sucumbe depois de matar quatro ou cinco polícias, aquele que se suicida para não denunciar os seus cúmplices, são para o povo os fachos, os modelos de ação, os “heróis”. De nada serve dizer, evidentemente, que esse herói é um ladrão, um crápula ou um depravado. Se o ato por que esse homem é perseguido pelas autoridades colonialistas é um ato dirigido exclusivamente contra uma pessoa ou um bem colonial, a demarcação é clara, flagrante. O processo de identificação é automático.
É necessário assinalar igualmente o papel que desempenha, nesse fenómeno de maturidade, a história de resistência nacional à conquista. As grandes figuras do povo colonizado são sempre as que dirigiram a resistência nacional à invasão. Béhanzin, Soundiata, Samory, Abdel Kader revivem com singular intensidade no período que precede a ação. É a prova de que o povo se dispõe a retomar a marcha, a interromper o tempo morto introduzido pelo colonialismo, a fazer a História.
O ressurgimento da nação nova, a demolição das estruturas coloniais, são o resultado de uma luta violenta do povo independente, ou da ação, que separa o regime colonial da violência periférica assumida por outros povos colonizados.
O povo colonizado não está só. Apesar dos esforços do colonialismo, as suas fronteiras são permeáveis às notícias, aos ecos. Descobre que a violência é atmosférica, estala aqui e além e aqui e além varre o regime colonial. Esta violência que triunfa tem um papel não apenas informativo, mas também funcional para o colonizado. A grande vitória do povo vietnamita em Dien-Bien-Phu não é já, estritamente falando, uma vitória vietnamita. Desde julho de 1954, o problema que se colocou aos povos colonialistas foi o seguinte: “Que é necessário fazer para realizar um Dien-Bien-Phu? Como começar?”. Nenhum colonizado podia duvidar já da possibilidade desse Dien-Bien-Phu. O que constituía problema era a distribuição das forças, a sua organização, o momento de entrar em ação. Esta violência do ambiente não modifica somente os colonizados, mas também os colonialistas que tomam consciência de múltiplos Dien-Bien-Phu. Por isso, um verdadeiro pânico ordenado se apodera dos governos colonialistas. O seu propósito é tomar a dianteira, inclinar para a direita os movimentos de libertação, desarmar o povo: descolonizemos, rapidamente. Descolonizemos o Congo antes que se transforme numa Argélia. Votemos a lei fundamental para a África, formemos a Comunidade, renovemos esta Comunidade, mas, eu vos explico, descolonizemos, descolonizemos... Descoloniza-se a tal ritmo, que se impõe a independência a Houphouet-Boigny. À estratégia do Dien-Bien-Phu, definida pelo colonizado, o colonialista responde com a estratégia do enquadramento... respeitando a soberania dos estados.
Mas voltemos a essa violência atmosférica, a essa violência à flor da pele. Temos visto no desenvolvimento da sua maturidade como é empurrada para a saída. Apesar das metamorfoses que o regime colonial lhe impõe nas lutas tribais ou regionalistas, a violência encaminha-se, o colonizado identifica o seu inimigo, dá um nome a todas as suas desgraças e lança por essa nova via toda a força exacerbada do seu ódio e da sua cólera. Mas como passamos da atmosfera da violência a violência em ação? O que é que provoca a explosão da caldeira? Em primeiro lugar, está o motivo de que esse processo não deixa ilesa a tranquilidade do colono. O colono que “conhece” os indígenas, apercebe-se por diversos indícios de que alguma coisa está mudando. Os bons indígenas vão desaparecendo, faz-se silêncio quando o opressor se aproxima. Em certas ocasiões, os olhares endurecem-se, as atitudes e expressões são abertamente agressivas. Os partidos nacionalistas agitam-se, multiplicam os motins e, ao mesmo tempo, aumentam as forças policiais, chegam reforços do exército. Os colonos, os agricultores, sobretudo, isolados nas suas herdades, são os primeiros a alarmar-se. Reclamam medidas enérgicas.
As autoridades tomam, como efeito, medidas espetaculares, afastam um ou dois dirigentes, organizam desfiles militares, manobras, incursões aéreas. As demonstrações, os exercícios bélicos, o cheiro a pólvora que paira agora na atmosfera, não fazem, contudo, retroceder o povo. Essas baionetas e esses canhões fortalecem a sua agressividade. Uma atmosfera dramática instala-se, cada qual quer provar que está disposto a tudo. É nestas circunstâncias que a coisa estala, porque os nervos se debilitaram, instalou-se o medo e à mais pequena coisa há disposição para pôr o dedo no gatilho. Um incidente banal e a metralha começa: é Sétif, na Argélia, as Carrières Centrales, em Marrocos, é Moramanga, em Madagáscar.
As repressões, longe de quebrarem o ímpeto, favorecem o avanço da consciência nacional. Nas colónias, as hecatombes, a partir de certo estádio do desenvolvimento embrionário da consciência, fortalecem essa consciência, porque indicam que entre opressores e oprimidos tudo se resolve pela força. É preciso assinalar aqui que os partidos políticos não lançaram a palavra de ordem da insurreição armada, não prepararam essa insurreição. Todas essas repressões, todos esses atos provocados pelo medo, não são desejados pelos dirigentes. Os acontecimentos apanham-nos de surpresa. É então que o colonialismo pode decidir o afastamento dos dirigentes nacionalistas. Mas, hoje, os governos dos países colonialistas sabem perfeitamente que é muito perigoso privar as massas dos seus dirigentes. Porque o povo, já sem rédeas, lança-se à sublevação, aos motins e aos “assassinatos bestiais”. As massas dão plena liberdade aos seus “instintos sanguinários” e impõem ao colonialismo a libertação dos dirigentes, aos quais cumprirá a difícil tarefa de restabelecer a calma. O povo colonizado, que tinha investido espontaneamente a sua violência na tarefa grandiosa de destruição do sistema colonial, encontrar-se-á em pleno tempo perante a palavra de ordem inerte, infecunda: “Libertem X ou Y”. Então, o colonialismo libertará esses homens e discutirá com eles. Começou a hora das danças populares.
Noutro caso, o aparato dos partidos políticos pode permanecer intacto. Mas depois da repressão colonialista e da reação espontânea do povo, os partidos são devassados pelos seus militantes. A violência das massas opõe-se vigorosamente às forças militares do ocupante, a situação piora e apodrece. Os dirigentes em liberdade encontram-se numa situação difícil. Convertidos tão depressa em pedras inúteis, com a sua burocracia e o seu programa razoável, intentam, longe dos acontecimentos, a suprema impostura de “falar em nome da nação amordaçada”. Em regra, o colonialismo lança-se avidamente sobre essa oportunidade, transforma esses elementos inúteis em interlocutores e, em breves momentos, outorga-lhes a independência, encarregando-os de restabelecer a ordem.
Adverte-se, pois, que o mundo tem consciência dessa violência e que não se trata de responder sempre com uma maior violência, mas, sim, de resolver a crise.
Que é, portanto, essa violência? Já o temos visto: é a intuição que as massas colonizadas têm de que a sua libertação deve fazer-se e isso não pode acontecer senão pela força. Por que aberração do espírito esses homens sem técnica, esfomeados e debilitados, não conhecendo os métodos de organização, chegam a convencer-se, perante o poderio económico e militar do ocupante, de que apenas a violência poderá libertá-los? Como pode esperar o triunfo?
Porque a violência, e aí está o escândalo, pode constituir, como método, a palavra de ordem de um partido político. Os quadros podem chamar o povo à luta armada. É necessário refletir sobre esta problemática da violência. Que o militarismo alemão resolva os seus problemas de fronteiras pela força não nos surpreende, mas que o povo argelino rejeite qualquer método que não seja violento, prova que alguma coisa se passou ou está a passar. Os homens colonizados, esses escravos dos tempos modernos, estão impacientes. Sabem que apenas essa loucura os pode tirar da opressão colonial. Um novo tipo de relações se estabeleceu no mundo. Os povos subdesenvolvidos fazem saltar as suas cadeias e, o mais extraordinário, é que o conseguem. Pode afirmar-se que na época do sputnik é ridículo morrer de fome, mas para as massas colonizadas a explicação é menos lunar. A verdade é que nenhum país colonialista é capaz, hoje, de adoptar a única forma de luta que teria possibilidades de êxito: o estabelecimento prolongado de importantes forças de ocupação.
No plano interior, os países colonialistas enfrentam as contradições, as reivindicações operárias que exigem o emprego das suas forças policiais. Além disso, na atual conjuntura internacional, esses países necessitam das suas tropas para proteger o seu regime. Por último, é bem conhecido o mito dos movimentos de libertação dirigidos de Moscovo. Na argumentação do regime para causar pânico, isso significa: “se isto continua, existe o perigo dos comunistas aproveitarem estas perturbações para se infiltrarem nessas regiões”.
Na impaciência do colonizado, o facto de esgrimir contra a ameaça da violência, prova que tem consciência do carácter excepcional da situação contemporânea imediata, o colonizado, que tem a oportunidade de ver a penetração do mundo moderno até aos rincões mais afastados da selva, assume plena consciência do que não possui. As massas, por uma espécie de raciocínio... infantil, convencem-se de que todas essas coisas lhes foram roubadas. Por isso, em certos países subdesenvolvidos as massas caminham muito depressa e compreendem dois ou três anos depois da independência, que foram levadas, “não valia a pena” lutar porque a situação não mudou realmente. Em 1789, após a revolução burguesa, os pequenos agricultores franceses beneficiaram substancialmente dessa transformação. Mas é inútil comprovar a afirmar que na maioria dos casos, para 95 por cento da população dos países subdesenvolvidos, a independência não conduz a uma transformação imediata. O observador atento dá conta da existência de uma espécie de descontentamento larvar, como essas brasas que, depois da extinção do fogo, ameaçam sempre atear-se novamente.
Diz-se, então, que os colonizados querem caminhar muito depressa. Mas não devemos esquecer que não há muito tempo se lamentava a sua lentidão, a sua preguiça, o seu fatalismo. Já se percebe que a violência enfiada por estradas muito precisas no momento da luta da libertação, não se apaga magicamente após a cerimónia do içar da bandeira nacional. Ele extingue-se muito menos porque a construção nacional continua a inscrever-se, no quadro da competição decisiva, entre o capitalismo e o socialismo.
Esta competição dá uma dimensão quase universal às reivindicações mais localizadas. Cada motim, cada ato de repressão, repercute-se no plano internacional.
Os assassinatos de Sharpeville sacudiram a opinião mundial durante meses. Nos jornais, na rádio, nas conversas privadas, Sharpeville converteu-se num símbolo. Através de Sharpeville, homens e mulheres abordaram o problema do apartheid na África do Sul. E não pode afirmar-se que apenas a demagogia explica o súbito interesse dos grandes pelos pequenos problemas das regiões subdesenvolvidas. Cada rebelião, cada sedição no Terceiro Mundo, insere-se no quadro da guerra fria. Dois homens são massacrados em Salisbury e todo um bloco se comove, fala desses dois homens e, como consequência dessas mortes, coloca-se o problema particular da Rodésia — ligando-o ao conjunto de África e à totalidade dos homens colonizados. Mas o outro bloco mede igualmente, pela amplitude da campanha realizada, as debilidades locais do seu sistema. Os povos colonizados dão conta de que nenhum clã se desinteressa dos incidentes locais. Deixam de limitar-se aos seus horizontes regionais, agarrados como estão nessa atmosfera de agitação universal.
Quando, de três em três meses, nos inteiramos de que a 6.ª ou a 7.ª esquadra se dirige para esta ou para aquela costa, quando Khrushchev ameaça salvar Fidel de Castro com a cedência de foguetões, quando Kennedy, a propósito do Laos, decide recorrer a soluções extremas, o colonizado ou o recém-independente tem a impressão de que, de bom ou mau grado, é arrastado a uma espécie de marcha desenfreada. Na realidade, já está a marchar. Tomemos, por exemplo, o caso dos governos de países recentemente libertados. Os homens do poder passam dois terços do seu tempo vigiando à sua volta, prevendo o perigo que os ameaça, e o outro terço trabalhando para o seu país. Ao mesmo tempo, procuram apoios. Obedecendo à mesma dialética, as oposições nacionais afastam-se com desprezo das vias parlamentares. Procuram aliados que aceitem apoiá-los na sua empresa brutal de sedição. A atmosfera da violência, depois de impregnar a fase colonial, continua a dominar a vida nacional; porque, como temos dito, o Terceiro Mundo não está excluído. Está, pelo contrário, no centro do tormento. Por isso, nos seus discursos, os homens de estado dos países subdesenvolvidos mantêm indefinidamente o tom de agressividade e de exaltação que deveria ter desaparecido. Da mesma maneira se compreende a falta de cortesia tão frequentemente assinalada aos novos dirigentes. Mas o que menos se compreende é a extrema delicadeza desses mesmos dirigentes nos seus contatos com os seus irmãos ou camaradas. A descortesia é uma forma de conduta com os outros, com os ex-colonialistas que vêm ver e fazer perguntas. O ex-colonizado tem, com demasiada frequência, a impressão de que a conclusão dessas perguntas foi já redigida. A viagem do jornalista é somente uma justificação. As fotografias que ilustram o artigo são a prova de que se sabe do que se está a falar, de que se visitou o próprio local. A pergunta propõe-se comprovar a evidência: tudo caminha mal desde que nós lá não estamos. Os jornalistas queixam-se amiudadamente de que são mal recebidos, de que não podem trabalhar em boas condições, de que tropeçam com um muro de indiferença ou de hostilidade. Tudo isso é normal. Os dirigentes nacionalistas sabem que a opinião internacional se forja unicamente através da imprensa ocidental. Mas quando um jornalista ocidental nos interroga, nunca é para nos fazer um serviço. Na guerra da Argélia, por exemplo, os repórteres franceses mais liberais deixaram de utilizar títulos ambíguos para caracterizar a nossa luta. Quando se lhes reprova o que fizeram, respondem de boa-fé que são objetivos. Para o colonizado, a objetividade vai sempre dirigida contra ele.
Também se compreende esse novo tom que invadiu a diplomacia internacional na Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 1960. Os representantes dos países coloniais eram agressivos, violentos, excessivos, mas os povos coloniais não compreenderam que exageraram. O radicalismo dos porta-vozes africanos provocou o amadurecimento do abcesso e permitiu ver melhor o carácter inadmissível dos vetos, do diálogo dos “grandes” e, sobretudo, do papel ínfimo destinado ao Terceiro Mundo.
A diplomacia, tal como foi iniciada pelos povos recém-independentes, não está já nos matizes, nos subentendidos, nos passes magnéticos. Porque esses porta-vozes foram designados pelos seus povos para defenderem por sua vez a unidade da nação, o progresso das massas para o bem-estar e do direito dos povos à liberdade e ao pão.
É, pois, uma diplomacia em movimento, furiosa, que contrasta estranhamente com o mundo imóvel e petrificado da colonização. E quando Khrushchev brande o seu sapato na O. N. U. e bate com ele na mesa, nenhum colonizado, nenhum representante dos países subdesenvolvidos ri. Porque o que Khrushchev demonstra aos países colonizados que o contemplam é que ele, o mujique, trata esses miseráveis capitalistas como de facto merecem. Também Fidel de Castro, ao apresentar-se na O. N. U. com uniforme militar, não escandaliza os países subdesenvolvidos. Fidel de Castro demonstra apenas que tem consciência da existência do regime continuador da violência. O que é de espantar é que não haja entrado na O. N. U. com a sua metralhadora. Ter-se-iam oposto a isso? As sublevações, os atos desesperados, os grupos armados com cutelos ou machados encontram a sua nacionalidade na luta implacável que enfrenta mutuamente o capitalismo e o socialismo.
Em 1945, os 45.000 mortos de Sétif podiam passar despercebidos; em 1947, os 90.000 mortos de Madagáscar podiam ser objeto de uma simples notícia nos jornais; em 1952, as 200.000 vítimas da repressão no Quénia podiam não suscitar mais do que uma relativa indiferença. As contradições internacionais não estavam suficientemente definidas. Já a guerra da Coreia e a guerra da Indochina abriram uma nova etapa. Mas sobretudo Budapeste e Suez constituem os momentos decisivos dessa confrontação.
Fortalecidos pelo apoio incondicional dos países socialistas, os colonizados lançam-se com as armas que possuem contra a cidadela inexpugnável do colonialismo. Se essa cidadela é invulnerável aos cutelos e aos punhos fechados, não continua a sê-lo quando se decide ter em conta o contexto da guerra fria.
Nesta nova conjuntura, os norte-americanos levam muito a sério o seu papel de pioneiros do capitalismo internacional. Numa primeira etapa, aconselham amistosamente os países europeus que devem descolonizar. Numa segunda etapa, não vacilam em proclamar primeiro o respeito e logo o apoio do princípio: a África para os africanos. Os Estados Unidos não temem afirmar oficialmente que são hoje os defensores do direito dos povos à autodeterminação. A última viagem de Mennen-Williams é a ilustração da consciência que os norte-americanos têm de que o Terceiro Mundo não deve ser sacrificado. Compreende-se, então, por que a violência do colonizado não é desesperada, se não quando se compara in abstrato com o aparato militar dos opressores. Pelo contrário, se a situarmos dentro da dinâmica internacional, compreende-se que constitui uma terrível ameaça para o opressor.
A persistência das sublevações e da agitação Mau-Mau desequilibra a vida econômica da colónia, mas não põe em perigo a metrópole. O que é mais importante aos olhos do imperialismo é a possibilidade de que a propaganda socialista se infiltre entre as massas e as contamine. Já é um grave perigo durante a fase “fria” do conflito; mas que sucederia em caso de verdadeira guerra, com essa colónia apodrecida pelas guerrilhas assassinas?
O capitalismo compreende que a sua estratégia militar tudo vence no desenvolvimento das guerras nacionais. No marco da coexistência pacífica, todas as colónias são chamadas a desaparecer e, em última instância, a neutralidade fez respeitar-se pelo capitalismo. O que é necessário evitar antes de mais é a insegurança estratégica, o acesso às massas de uma doutrina inimiga, o ódio radical de dezenas de milhões de homens. Os povos colonizados são perfeitamente conscientes desses imperativos que dominam a vida política internacional. E, por isso, mesmo aqueles que se dizem contra a violência, decidem e atuam sempre em função dessa violência universal. Hoje, a coexistência pacífica entre os dois blocos mantém e provoca a violência nos países coloniais. Amanhã, talvez vejamos remover-se esse campo de violência, depois da libertação completa dos territórios coloniais. Talvez se coloque a questão das minorias. Já algumas não vacilam em favorecer os métodos violentos para resolver os seus problemas e não é por acaso se, como se nos afirma, os extremistas negros nos Estados Unidos formam milícias e se armam em consequência disso. Não será também por acaso que, no mundo chamado livre, existem comités de defesa das minorias judias da URSS ou que o general De Gaulle, num dos seus discursos, haja derramado algumas lágrimas pelos milhões de muçulmanos oprimidos pela ditadura comunista. O capitalismo e o imperialismo estão convencidos de que a luta contra o racismo e os movimentos de libertação nacional são pura e simplesmente perturbações dirigidas e fomentadas “do exterior”. Assim, decidem utilizar a seguinte táctica eficaz: Rádio-Europa Livre, comité de apoio às minorias dominadas... Fazem anticolonialismo, como os coronéis franceses na Argélia faziam a guerra subversiva com a O. A. S. ou os serviços psicológicos. “Utilizam o povo contra o povo”. Já sabemos o resultado disto.
Esta atmosfera de violência, de ameaça, esses foguetões apontados não assustam nem desorientam os colonizados. Temos visto como toda a história recente os predispõe a “compreender” essa situação. Entre a violência colonial e a violência pacífica em que está mergulhado o mundo contemporâneo, há uma espécie de correspondência cúmplice, uma homogeneidade. Os colonizados estão convencidos de que se joga agora o seu destino. Vivem numa atmosfera de fim do mundo e desejam que nada se lhes escape. Por isso, compreendem muito bem Fuma e Fumi, Lumumba e Tschombé, Ahidjo e Moumié, Kenyatta e os que periodicamente se apressam para os substituir. Compreendem muito bem todos esses homens, porque eles desmascaram as forças que estão por detrás deles. O colonizado e o subdesenvolvido são hoje animais políticos no sentido mais universal da palavra.
A independência levou certamente aos homens colonizados a reparação moral e consagrou a sua dignidade. Mas não teve ainda tempo de formar uma sociedade, de construir e afirmar novos valores. O facho incandescente em que o cidadão e o homem se revelam e se valorizam em horizontes cada vez mais largos, claro que ainda não existe. Situados numa espécie de indeterminação, esses homens convencem-se facilmente de que tudo se decidirá noutro lado e em todo o mundo ao mesmo tempo. Quanto nos dirigentes, frente a esta conjuntura vacilam e optam pelo neutralismo.
Havia muito que dizer sobre o neutralismo. Alguns aproximam-no de uma espécie de mercantilismo infecto que consistiria em aceitar a direita e a esquerda. Ora o neutralismo, essa criação da guerra fria, permite aos países subdesenvolvidos receber ajuda econômica das duas partes, mas não permite, por outro lado, que nenhuma dessas partes ajude na medida necessária as regiões subdesenvolvidas. Essas somas literalmente astronómicas que se investem nas manobras militares, esses engenheiros transformados em técnicos da guerra nuclear poderiam aumentar, em quinze anos, o nível de vida dos países subdesenvolvidos em cerca de 60 por cento. É evidente que o interesse desses países não reside na manutenção nem no agravamento da guerra fira. Mas sucede que não se lhes pede a sua opinião. Então, quando têm possibilidade de o fazer, deixam de se comprometer. Mas podem realmente fazê-lo? Eis aqui, para exemplo, que a França experimenta em África as suas bombas atómicas. Se se exceptuam as moções, os motins e as rupturas diplomáticas, não se pode dizer que os povos africanos hajam influenciado, nesse aspecto, a atitude da França.
O neutralismo produz no cidadão do Terceiro Mundo uma atitude de espírito que se traduz na vida corrente por uma intrepidez e um orgulho hierático que se assemelha a um desafio. Essa recusa declarada do compromisso, essa vontade rígida de não se comprometer, recordam o comportamento desses adolescentes orgulhosos e desinteressados, sempre dispostos a sacrificarem-se por uma palavra. Tudo isso espanta os observadores ocidentais. Porque, propriamente falando, há um abismo entre o que esses homens pretendem ser e o que está por detrás deles. Esses países sem caminhos de ferro, sem tropas, sem dinheiro, não justificam a jactância que ostentam. Trata-se, sem dúvida, de uma atitude hipócrita. O Terceiro Mundo dá a impressão, a cada passo, de que se regozija com o drama e necessita, semanalmente, de uma dose de crise. Esses dirigentes de países vazios, que falam vigorosamente, irritam. Dá vontade de os fazer calar. Faz-se-lhes a corte. Enviam-se-lhes flores. Convidam-se. Numa palavra, disputam-se. Isso é o neutralismo. Iletrados numa percentagem que atinge 98 por cento, existe, sem dúvida, uma grandiosa bibliografia sobre eles. Viajam muito. Os dirigentes dos países subdesenvolvidos, os estudantes dos países subdesenvolvidos são a clientela dourada das companhias de aviação. Os responsáveis africanos e asiáticos têm a possibilidade de frequentar, no mesmo mês, um curso sobre a planificação socialista, em Moscovo, e sobre os benefícios da economia liberal, em Londres ou na Columbia University. Os sindicalistas africanos, por seu turno, avançam num ritmo acelerado. Apenas lhes estão confiados postos nos organismos de direção, quando decidem agrupar-se em centrais autónomas. Não têm cinquenta anos de prática sindical no quadro de um país industrializado, mas já sabem que o sindicalismo apolítico não tem sentido. Eles não fazem frente à máquina burguesa, não fazem evoluir a sua consciência na luta de classes, mas talvez isso não seja necessário. Talvez. Veremos como essa vontade total, que frequentemente se caricatura em globalismo, é uma das características fundamentais dos países subdesenvolvidos.
Mas voltemos ao combate singular entre o colonizado e o colono. Trata-se, como se viu, da franca luta armada. Os exemplos históricos são: Indochina, Indonésia e, bem entendido, o norte de África. Mas o que se não deve perder de vista é que poderia ter estalado em qualquer outro lado, na Guiné ou na Somália e, apesar de tudo, pode estalar hoje em qualquer território onde o colonialismo pretende ainda durar. A existência da luta armada indica que o povo confia somente nos meios violentos. O povo, a quem se disse sempre que não entendia outra linguagem que não fosse a da força, resolve expressar-se através da força. Na verdade, o colono ensinou-lhe sempre o caminho que havia de ser o seu, se desejava libertar-se. O argumento escolhido pelo colonizado é o que lhe ensinou o colono e, por irónica inversão das posições, é o colonizado que afirma agora ao colonialista que este não conhece senão a linguagem da força. O regime colonial adquire a sua legitimidade da força e em nenhum momento se engana sobre essa natureza das coisas. Cada estátua, a de Faidherbe ou de Lyautey, a de Bugeaud ou a do sargento Blandan, todos estes conquistadores empoleirados sobre o solo colonial não deixam de significar uma e a mesma coisa: “Estamos aqui por força das baionetas...” É fácil completar a frase. Durante a fase de insurreição, cada colono raciocina através de uma aritmética precisa. Esta lógica não surpreende os outros colonos, mas é importante afirmar também que não causa surpresa aos colonizados. E, em primeiro lugar, a afirmação de princípio: “Eles ou nós”, não é um paradoxo, dado que o colonialismo é justamente a organização de um mundo maniqueu, de um mundo dividido em compartimentos. Quando ao preconizar os meios precisos, o colono pede a cada representante da minoria opressora que mate 30, 100 ou 200 indígenas, dão conta de que ninguém se indigna e de que, em última análise, o problema consiste em saber se pode fazer-se isso de um só golpe ou por etapas.
Este raciocínio, que prevê aritmeticamente a destruição do povo colonizado, não enche o colonizado de indignação. Sempre soube que os seus encontros com o colono se efetuariam num campo cerrado. Por isso, o colonizado não perde tempo em lamentações nem espera nunca que se faça justiça dentro do panorama colonial. Na verdade, se a argumentação do colono enfrenta um colonizado inabalável, é porque este colocou praticamente o problema da sua libertação em idênticos termos. “Devemos formar grupos de duzentos ou de quinhentos e cada grupo se ocupará de um colono”. É nesta vontade recíproca que cada um dos protagonistas começa a luta.
Para o colonizado, esta violência representa a prática absoluta. O militante é aquele que trabalha. As perguntas que a organização formula ao militante levam a marca dessa visão das coisas: “Onde trabalhaste? Com quem? Que fizeste?” O grupo exige que cada indivíduo realize um ato irreversível. Na Argélia, por exemplo, onde a quase totalidade dos homens que chamaram o povo à luta nacional estavam condenados à morte ou eram procurados pela polícia francesa, a confiança era proporcional ao carácter desesperado de cada caso. Um novo militante era “seguro” quando já não podia voltar a integrar-se no sistema colonial. Esse mecanismo existiu, parece, no Quénia, entre os Mau-Mau, que exigiam que cada membro do grupo matasse a vítima. Cada um era desse modo responsável pessoalmente pela morte dessa vítima. Trabalhar é trabalhar pela morte do colono. A violência assumida permite por sua vez, aos extraviados e aos proscritos, voltar, recuperar e integrar-se no seu grupo A violência é entendida assim como a mediação real. O homem colonizado liberta-se em e pela violência. Esta prática ilumina o agente porque lhe indica os meios e o fim. A poesia de Césaire atinge, na exata perspectiva da violência, uma profética significação. É bom recordar uma página significativa da sua tragédia, onde o Rebelde (coisa estranha!) se explica:
O REBELDE (asperamente)
O meu apelido: ofendido; o meu mime: humilhado; o meu estado civil: rebeldia; a minha idade: a idade da pedra.
A MÃE
A minha raça: a raça humana. A minha religião: a fraternidade...
O REBELDE
A minha raça: a raça abatida. A minha religião... mas não serás tu quem a prepara com o seu desarmamento sou eu com a minha rebeldia e os meus pobres Sim: de morte fecunda e fértil
(muito tranquilo)
Recordo-me de um dia de novembro; não tinha seis meses (o meu filho) e o patrão entrou na casa fuliginosa como uma lua de abril e apalpou os seus pequenos membros musculosos, era um patrão muito bom, fazia uma carícia com os seus dedos grossos pela sua carita cheia de leves saliências. Os seus olhos azuis riam e a sua boca dizia doces coisas: será uma boa peça, dizia ele, olhando- -me, e dizia outras coisas amáveis, o amo, que falava depressa, que vinte anos não eram muito tempo para fazer um bom cristão e um bom escravo, bom súbdito e leal, um bom capataz, com o olhar vivo e o braço firme. E aquele homem especulava sobre o berço do meu filho, um lugar de capataz.
Nós arrastamo-nos com o cutelo na mão...
A MÃE
Ai! Tu morrerás.
O REBELDE
Morto... Eu o matei com as minhas próprias mãos... Sim: de morte fecunda e fértil...
era de noite... Arrastamo-nos por entre as canas de açúcar.
Os cutelos brilhavam debaixo das estrelas, mas não nos importavam as estrelas. As canas pintavam-nos a cara de regatos de folhas verdes.
A MAE
Eu sonhei com um filho que fecharia os olhos de sua mãe.
O REBELDE
Eu decidi abrir, debaixo de outro sol, os olhos de meu filho.
A MÃE
...Oh, meu filho... de morte malvada e perniciosa.
O REBELDE
Mãe, de morte vivaz e sumptuosa...
A MÃE
por haver odiado muito...
O REBELDE
por haver amado muito...
A MÃE
Evita-me tudo isto, asfixiam-me as tuas amarras.
Sangro pelas tuas injúrias.
O REBELDE
E a mim o mundo não me perdoa... Não há no mundo um pobre tipo linchado, um pobre homem torturado, em que eu não me sinta assassinado e humilhado.
A MÃE
Deus do céu, livra-me dele.
O REBELDE
Meu coração, tu não me libertarás das minhas recordações...
Era uma noite de novembro...
E subitamente os clamores iluminaram o silêncio.
Nós fizemos saltar os escravos; nós, o monturo; nós, as bestas amarradas ao poste da paciência.
Corríamos como arrebatados; soaram tiros... Espancávamos. O suor e o sangue refrescava-os. Espancávamos entre gritos e os gritos tornaram-se mais estridentes e um grande clamor se elevou até Leste, eram os barracões que ardiam e a chama iluminava as nossas bochechas.
Então, assaltamos a casa do patrão.
Atiravam-se pelas janelas.
Forçávamos as portas.
A cama do patrão estava aberta, de par em par. A cama do amo estava brilhantemente iluminada e o patrão estava ali muito tranquilo... e os nossos detiveram-se... era o patrão... Eu entrei. És tu, disse-me serenamente... Era eu, sim, sou eu, disse-lhe, o bom escravo, o fiel escravo, o escravo-escravo e, de súbito, os seus olhos pareciam duas alimárias assustadas em dias de chuva... feri-o, o sangue salpicou: é o único baptismo de que hoje me recordo.
Compreende-se como nesta atmosfera o quotidiano se torna simplesmente impossível. Já não se pode ser fellah, rufião ou alcoólico como dantes. A violência do regime colonial e a contra-violência do colonizado equilibram-se mutuamente numa homogeneidade recíproca extraordinária. Esse reino da violência será tanto mais terrível quanto maior for a superexploração metropolitana. O desenvolvimento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial impugnado. Os governos da metrópole são, nesta primeira fjuuí da insurreição, escravos dos colonos. Esses colonos ameaçam por sua vez os colonizados e os seus governos. Utilizarão os mesmos métodos contra uns e contra outros. O assassinato do alcaide de Évian, no seu mecanismo e nos Minis motivos, identifica-se com o assassinato de Alí Bou-mondjel. Para os colonos, a alternativa não está entre uma Argélia argelina e uma Argélia francesa, mas entre uma Argélia independente e uma Argélia colonial. Tudo o resto é literatura ou tentativa de traição. A lógica do colono é implacável e não nos espanta a contra-lógica que só adivinha na conduta do colonizado, mas na medida em que se não descubram previamente os mecanismos de reflexão do colono. Desde o momento em que o colonizado escolhe a contra-violência, as represálias policiais provocam mecanicamente represálias das forças nacionais. Não há equivalência de resultados, sem dúvida, porque os ataques aéreos ou os canhões superam em horror e em importância as respostas do colonizado. Esse ir e vir do terror desmistifica definitivamente os mais loucos colonizados. Comprovam no terreno, com efeito, que todos os discursos sobre a igualdade da pessoa humana acumulados uns sobre os outros não escondem essa banalidade que pretende que os sete franceses mortos ou feridos no desfiladeiro de Sakamody despertem a indignação das consciências civilizadas, enquanto que “não contam” a entrada a saque nos aduares de Guergour, da dechm Djerah, a matança de populações em massa que foram precisamente a causa da emboscada. Terror, contra-terror, violência, contra-violência... Eis aqui o que registam com amargura os observadores quando descrevem o círculo do ódio, tão evidente e tão tenaz na Argélia.
Nas lutas armadas, há o que se podia chamar o limite sem regresso. É quase sempre a enorme repressão que engloba todos os sectores do povo colonizado. Esse limite foi atingido na Argélia, em 1955, com as 12 000 vítimas de Philippeville, em 1956, com a instalação, por Lacoste, das milícias urbanas e rurais. Então, torna-se evidente para todo o mundo e mesmo para os colonos que “isso não pode voltar a começar”, como dantes. No entanto, o povo colonizado não faz a contabilidade dos seus mortos. Regista os enormes vazios causados nas suas fileiras como uma espécie de mal necessário. Porque tal como decidiu responder à violência, admite todas as suas consequências. Somente exige que não se lhe peça para fazer a contabilidade dos mortos dos outros. À fórmula “Todos os indígenas são iguais”, o colonizado responde: “Todos os colonos são iguais”. O colonizado, quando é torturado, quando matam a sua mulher ou a violam, não se queixa a ninguém. O governo que oprime poderia nomear cada dia comissões de inquérito e de informação. Aos olhos do colonizado, essas comissões não existem. De facto, passados sete anos de crimes na Argélia, nem um só francês foi levado a tribunal pelo assassinato de um argelino. Na Indochina, em Madagáscar, nas colónias, o indígena soube sempre que nada tinha a esperar do outro lado. O trabalho do colono é tornar impossível todos os sonhos de liberdade do colonizado. O trabalho do colonizado é imaginar todas as combinações eventuais para aniquilar o colono. No plano do raciocínio, o maniqueísmo do colono produz o maniqueísmo do colonizado. À teoria do “indígena como mal absoluto”, responde a teoria do “colono como mal absoluto”.
A aparição do colono significou sensorialmente a morte da sociedade autóctone, letargia cultural, petrificação dos indivíduos. Para o colonizado, a vida pode surgir somente do cadáver em decomposição do colono. Tal é, pois, essa correspondência estrita dos dois raciocínios.
Mas sucede que para o povo colonizado esta violência, como constitui o seu único trabalho, reveste caracteres positivos, formativos. Esta prática violenta é totalizadora, dado que cada um se converte num malho violento da grande cadeia, do grande organismo violento aparecido como reação à violência primária do colonialista. Os grupos reconhecem-se entre si e a nação futura já é indivisível. A luta armada mobiliza o povo, isto é, lança-o numa mesma direção, num sentido único.
A mobilização das massas, quando se realiza como motivo da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção da causa comum, do destino nacional, da história coletiva. Assim, a segunda fase, a da construção da nação, facilita-se pela existência dessa mistura feita de sangue e de cólera. Então, compreende-se melhor a originalidade do vocabulário utilizado nos países subdesenvolvidos. Durante o período colonial, convidava-se o povo a lutar contra a opressão. Depois da libertação nacional, convida-se a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A luta, afirma-se, continua. O povo comprova que a vida é um interminável combate.
A violência do colonizado, temos dito, unifica o povo. Efetivamente, o colonialismo é, pela sua estrutura, separatista e regionalista. O colonialismo não se contenta em comprovar a existência de tribos; fomenta-as, distingue-as. O sistema colonial alimenta os chefes locais e reaviva as velhas confrarias de religiosos muçulmanos. A violência na sua prática é totalizadora e nacional. Por isso, leva consigo a eliminação do regionalismo e do tribalismo. Os partidos nacionalistas mostram-se particularmente desapiedados com os caids e com os chefes tradicionais. A eliminação dos caids e dos chefes é uma condição prévia para a unificação do povo.
Ao nível dos indivíduos, a violência desintoxica. Alivia o colonizado do seu complexo de inferioridade, das suas atitudes contemplativas ou desesperadas. Torna-o intrépido, reabilita-o perante os seus próprios olhos. Ainda que a luta armada seja simbólica ou desmobilizada por uma rápida descolonização, o povo tem tempo de se convencer que a libertação foi trabalho de todos e de cada um, que o dirigente não tem mérito especial. A violência eleva o povo à altura do dirigente. Daí essa espécie de reticência agressiva atirada sobre o aparato diplomático e protocolar que os novos governos se apressam a instalar. Quando participaram, através da violência, na libertação nacional, as massas não permitem a ninguém que se apresente como “libertador”. Mostram-se zelosas do resultado da sua ação e procuram não entregar a um deus vivo sem futuro, sem destino, a sorte da pátria. Totalmente irresponsáveis ontem, querem agora compreender e decidir tudo. Iluminada pela violência, a consciência do povo revolta-se contra qualquer pacificação. Os demagogos, os oportunistas, os mágicos, tropeçam numa tarefa difícil. A prática que as lançou num corpo -a- corpo desesperado, confere às massas um gosto voraz pelo concreto. A empresa de mistificação converte-se, a longo prazo, em alguma coisa praticamente impossível.
A Violência no Contexto Internacional
Repetidas vezes assinalamos nas páginas anteriores que, nas regiões subdesenvolvidas, o responsável político está sempre a chamar o seu povo ao combate. Combate contra o colonialismo, contra a miséria e o subdesenvolvimento, contra as tradições esterilizantes. O vocabulário que utiliza nas suas chamadas é um vocabulário de chefe de estado maior: “mobilização das massas”, “frente da agricultura”, “frente do analfabetismo”, “derrotas sofridas”, “vitórias conseguidas”. A jovem nação independente evolui durante os primeiros anos numa atmosfera de campo de batalha. É que o dirigente político de um país subdesenvolvido mede com espanto o caminho imenso que deve percorrer o seu país. Chama o povo e diz-lhe: “É necessário apertarmos o cinturão e trabalhar.” O país, tenazmente acometido de uma espécie de loucura criadora, lança-se num esforço gigantesco e desproporcional. O programa não é somente passar adiante, mas alcançar as demais nações com os meios possíveis. Se os povos europeus, pensa-se, chegaram a esta fase de desenvolvimento, foi devido aos seus próprios esforços. Provemos, pois, ao mundo e a nós mesmos que somos capazes das mesmas realizações. Esta maneira de colocar o problema da evolução dos países subdesenvolvidos não nos parece justa nem razoável.
Os europeus fizeram a sua unidade nacional num momento em que as burguesias nacionais haviam concentrado em suas mãos a maioria das riquezas. Comerciantes e artesãos, intelectuais e banqueiros, monopolizavam no marco nacional as finanças, o comércio e as ciências. A burguesia representava a classe mais dinâmica, a mais próspera. O seu acesso ao poder permitia-lhe lançar-se em operações decisivas: industrialização, desenvolvimento das comunicações e muito depressa procurar mercados no “ultramar”.
Na Europa, com excepção de certos matizes (a Inglaterra, por exemplo, atingiu um certo avanço), os diferentes estados, no momento em que se realizava a sua unidade nacional, conheciam uma situação econômica mais ou menos uniforme. Na verdade, nenhuma nação, pelas características do seu desenvolvimento e da sua evolução, insultava as outras.
Atualmente, a independência nacional, a formação nacional nas regiões subdesenvolvidas, reveste aspectos totalmente novos. Nessas regiões, com excepção de algumas realizações espetaculares, os diferentes países apresentam a mesma falta de infraestrutura. As massas lutam contra a mesma miséria, debatem-se com os mesmos gestos e desenham com os seus estômagos reduzidos o que poderia chamar-se a geografia da fome. Mundo subdesenvolvido, mundo de miséria e inumano. Mas também um mundo sem médicos, sem engenheiros, sem funcionários. Frente a esse mundo, as nações europeias chafurdam na opulência mais ostentosa. Esta opulência europeia é literalmente escandalosa porque foi construída sobre as costas dos escravos, alimentou-se do sangue dos escravos, vem diretamente do solo e do subsolo desse mundo subdesenvolvido. O bem-estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos índios e dos amarelos. Isso, nós decidimos não esquecer. Quando um país colonialista, incomodado pelas reivindicações de independência duma colónia, proclama aos dirigentes colonialistas: “Se querem a independência, tomem-na e voltem à Idade Média”, o povo recém-independente propende a aceitar e a recolher o desafio. E, efetivamente, o colonialismo retira os seus capitais e os seus técnicos e coloca ao novo estado um mecanismo de pressão econômica. A apoteose da independência transforma-se em maldição da independência. A potência colonial afirma claramente: “Se querem a independência, tomem-na e rebentem.” Os dirigentes nacionalistas não têm outro recurso senão acudir ao seu povo e pedir-lhe um enorme esforço. A esses homens esfomeados exige-se-lhes um regime de austeridade, a esses músculos atrofiados pede-se-lhes um trabalho desproporcionado. Um regime autárquico institui-se e cada estado, com os miseráveis meios de que dispõe, trata de responder à imensa fome nacional, à grande miséria nacional. Assistimos à mobilização de um povo que se esfalfa e se esgota perante uma Europa farta e desdenhosa.
Outros países do Terceiro Mundo recusam essa prova e aceitam as condições da antiga potência tutelar. Utilizando a sua posição estratégica, posição que lhes outorga um privilégio na luta dos blocos, esses países assinam acordos, comprometem-se. O antigo país dominado transforma-se em país economicamente dependente. A ex-potência colonial que manteve intactos e reforçou mesmo os circuitos comerciais de tipo colonialista, aceita alimentar mediante pequenas injeções o desejo da nação independente. Então, compreende como o acesso à independência dos países coloniais coloca o mundo frente a um problema importante: a libertação nacional dos países colonizados revela e toma mais insuportável a sua situação real. A confrontação fundamental, que parecia ser a do colonialismo e anticolonialismo, isto é, capitalismo e socialismo, perde a sua importância. O que conta agora, o problema que fecha o horizonte, é a necessidade de uma redistribuição das riquezas. A humanidade, sob pena de se ver sacudida, deve responder a este problema.
Geralmente, pensou-se que havia chegado a hora, para o mundo e principalmente para o Terceiro Mundo, de escolher entre o sistema capitalista e o sistema socialista. Os países subdesenvolvidos, que utilizaram a competição feroz existente entre os dois sistemas, para assegurar o triunfo da sua luta de libertação nacional, devem recusar-se, sem dúvida, a participar nessa competição. O Terceiro Mundo não deve contentar-se em definir a sua posição perante valores prévios. Os países subdesenvolvidos, pelo contrário, devem esforçar-se por descobrir valores próprios, métodos e um estilo específicos. O problema real perante o qual nos encontramos não é da opção entre socialismo e capitalismo, tal como foi definida por homens de continentes e épocas diferentes. Sabemos, de facto, que o regime capitalista não pode, como modo de vida, permitir-nos realizar a nossa tarefa nacional e universal. A exploração capitalista, os trustes e monopólios, são os inimigos dos países subdesenvolvidos. Por outro lado, a escolha de um regime dirigido à totalidade do povo, baseado no princípio de que o homem é o bem mais precioso, permitir-nos-á ir mais rápida e harmoniosamente impossibilitar assim essa caricatura de sociedade onde uns tantos possuem todos os poderes económicos e políticos, sujeitando a totalidade nacional.
Mas para que este regime possa funcionar de forma válida, para que possamos a todo o momento respeitar os princípios em que nos inspiramos, é necessário algo mais do que o investimento humano. Certos países subdesenvolvidos fazem um esforço colossal nesta direção. Homens e mulheres, jovens e velhos, entregam-se com entusiasmo a um verdadeiro trabalho forçado e proclamam-se escravos da nação. A sua própria vontade, o desprezo de toda a preocupação que não seja coletiva, criam uma moral nacional que entusiasma o homem, dá-lhe confiança no destino do mundo e desarma os observadores mais reticentes. Acreditamos, sem dúvida, que semelhante esforço não poderá prolongar-se por muito tempo nesse ritmo infernal. Esses jovens países aceitaram o desafio depois da retirada incondicional do antigo país colonial. O país encontra-se em mãos de uma nova equipa, mas há necessidade de recomeçar e de reformular tudo. O sistema colonial interessava-se, com efeito, por certas riquezas, por certos recursos, precisamente os que alimentavam as suas indústrias. Nenhum balanço sério se havia feito até então do solo e do subsolo. A jovem nação independente vê-se obrigada a prosseguir os circuitos económicos estabelecidos pelo regime colonial. Claro, pode exportar para outros países, para outras zonas monetárias, mas a base das suas exportações fundamentalmente não se modifica. O regime colonial cristalizou determinados circuitos e, portanto, há necessidade de os limitar, sob pena de sofrer uma catástrofe no caso de os manter. Havia que recomeçar tudo talvez, mudar a natureza das exportações e não apenas o seu destino, sondar novamente o solo, os rios e talvez o Sol. Mas, para o fazer, é necessário mais do que o investimento humano. Fazem falta capitais, técnicos, engenheiros, mecânicos, etc... Deve dizer-se: acreditamos que o esforço colossal a que os povos subdesenvolvidos são obrigados pelos seus dirigentes, não dará os resultados previstos. Se as condições de trabalho não se modificam, hão de passar séculos para humanizar esse mundo animalizado pelas forças imperialistas.
A verdade é que não devemos aceitar essas condições. Devemos recusar a situação a que querem condenar-nos os países ocidentais. O colonialismo e o imperialismo não saldarão as suas contas conosco quando retirarem dos nossos territórios as suas bandeiras e as suas forças policiais. Durante séculos, os capitalistas comportaram-se no mundo subdesenvolvido como verdadeiros criminosos de guerra. As deportações, os massacres, o trabalho forçado, a escravidão, foram os principais meios utilizados pelo capitalismo para aumentar as suas reservas em ouro e em diamantes, as suas riquezas e para estabelecer o seu poder. Há pouco tempo, o nazismo transformou toda a Europa numa verdadeira colônia. As riquezas das diversas nações europeias exigiram reparações e ordenaram a restituição em dinheiro e em trabalho das riquezas que lhes haviam sido roubadas: obras culturais, quadros, esculturas, vitrais, foram devolvidos aos seus proprietários. Uma única frase se escutava na boca dos europeus em 1945: “A Alemanha pagará.” Por seu lado, Adenauer, quando se iniciou o processo Eichmann, em nome do povo alemão, pediu perdão uma vez mais ao povo judeu. Adenauer renovou o compromisso do seu país de pagar ao estado de Israel as enormes somas que devem constituir a compensação pelos crimes nazistas.
Dizemos igualmente que os estados imperialistas cometeriam um grave erro e uma injustiça inclassificável se se contentassem em retirar do nosso território as coortes militares, os serviços administrativos e de intendência, cuja função é descobrir riquezas, extrai-las e expedi-las para as metrópoles. A reparação moral da independência nacional não nos ilude, não nos satisfaz. A riqueza dos países imperialistas é também a nossa riqueza. No plano do universal, esta afirmação não significa absolutamente que nos sintamos afetados pelas criações da técnica ou das artes ocidentais. Muito concretamente, a Europa inchou-se de maneira desmesurada com o ouro e as matérias-primas dos países coloniais: América Latina, China, África. De todos esses continentes, perante os quais a Europa de hoje ergue a sua torre opulenta, partem desde há séculos para essa mesma Europa os diamantes e o petróleo, a seda e o algodão, as madeiras e os produtos exóticos. A Europa é, literalmente, a criação do Terceiro Mundo. As riquezas que a abafam são as que foram roubadas aos povos subdesenvolvidos. Os portos da Holanda e Liverpool, os molhes de Bordéus e de Liverpool, especializados no comércio de negros, devem o seu renome aos milhões de escravos deportados. E quando escutamos um chefe de estado europeu declarar, com a mão sobre o coração, que é necessário prestar auxílio aos infelizes povos subdesenvolvidos, não estremecemos de agradecimento. Pelo contrário, nós dizemos, “é uma justa reparação que nos vai ser feita”. Não aceitaremos que a ajuda aos países subdesenvolvidos seja um programa de “Irmãs de Caridade”. Essa ajuda deve ser a consagração de uma dupla tomada de consciência, tomada de consciência para os colonizados de que as potências capitalistas lhe devem e, para estas, de que efetivamente têm de pagar. Se por falta de inteligência — não falemos de ingratidão — os países capitalistas se negaram a pagar, então a dialética implacável do seu próprio sistema se encarregaria de os asfixiar.
As jovens nações, é um facto, atraem pouco os capitais privados. Múltiplas razões legitimam e explicam esta reserva dos monopólios. Quando os capitalistas sabem, e são evidentemente os primeiros a sabê-lo, que o seu governo se dispõe a descolonizar, apressam-se a retirar da colónia a totalidade dos seus capitais. A evasão espetacular de capitais é um dos fenómenos mais constantes da descolonização.
As companhias privadas, para investirem nos países independentes, exigem condições que a experiência considera inaceitáveis ou irrealizáveis. Fiéis ao princípio de rentabilidade imediata, que suspendem quando atuam no “ultramar”, os capitalistas mostram-se prudentes sobre qualquer investimento a longo prazo. São rebeldes e com frequência abertamente hostis aos programas de planificação das jovens equipas no poder. Em rigor, aceitariam gostosamente emprestar dinheiro aos jovens estados, mas com a condição de que esse dinheiro servisse para comprar produtos manufaturados, máquinas, isto é, se destinasse a manter ativas as fábricas da metrópole.
Na verdade, a desconfiança dos grupos financeiros ocidentais explica-se pelo seu desejo de não correr qualquer risco. Exigem, além disso, uma estabilidade política e um clima social tranquilo que é impossível obter se se tem em conta a situação lamentável da população global imediatamente depois da independência. Então, na procura dessa garantia, que não pode assegurar a ex-colónia, exigem a manutenção de certas tropas ou a entrada do novo estado em pactos económicos ou militares. As companhias privadas fazem pressão sobre o seu próprio governo para que, pelo menos, as bases militares sejam instaladas nesses países com a missão de assegurar a proteção dos seus interesses. Em último caso, essas companhias exigem ao seu governo a garantia dos investimentos que decidem fazer nesta ou naquela região subdesenvolvida.
Acontece que poucos países satisfazem as condições exigidas pelos trustes e pelos monopólios. Os capitais, privados de mercados seguros, continuam bloqueados na Europa e imobilizam-se. E imobilizam-se mais porque os capitalistas se negam a investir no seu próprio território. A. rentabilidade nesse caso é, com efeito, irrisória e o “controle” fiscal desespera os mais audazes.
A situação é catastrófica a longo prazo. Os capitais não circulam ou encontram consideravelmente diminuída a sua circulação. Os bancos suíços recusam os capitais, a Europa sufoca. Apesar das somas grandiosas que se empregam nos gastos militares, o capitalismo internacional encontra-se agonizante.
Mas outro perigo o ameaça. Na medida em que o Terceiro Mundo está abandonado e condenado à regressão ou à estagnação, pelo egoísmo e pela imoralidade das nações ocidentais, os povos subdesenvolvidos decidiram evoluir como autarquia coletiva. As indústrias ocidentais ficarão rapidamente privadas dos seus mercados no ultramar. As máquinas amontoar-se-ão nos depósitos e, no mercado europeu, desenvolver-se-á uma luta inexorável entre os grupos financeiros e os trustes. Encerramento de fábricas, devassidão ou desemprego, conduzirão o proletariado europeu a desencadear uma luta aberta contra o regime capitalista. Os monopólios compreenderão, nessa altura, que o seu interesse, bem entendido, consiste em ajudar maciçamente e sem muitas condições os países subdesenvolvidos. Vemos, pois, que as novas nações do Terceiro Mundo não devem ser objeto de risco para os países capitalistas. Somos fortes por direito próprio e pela justiça das nossas posições. Pelo contrário, devemos afirmar e explicar aos países capitalistas que o problema fundamental da época contemporânea não é a guerra entre eles e o regime socialista. É preciso pôr fim a essa guerra fria que não leva a parte nenhuma, deter os preparativos da destruição nuclear do mundo, intervir generosamente e ajudar por meios técnicos as regiões subdesenvolvidas. A sorte do mundo depende da resposta que se possa dar a esta questão.
E que os regimes capitalistas não tratem de ligar aos regimes socialistas a “sorte da Europa” perante as multidões de cor e esfomeadas. A proeza do cosmonauta Gagarin, ainda que desgoste o general De Gaulle, não é um triunfo “que honre a Europa”. Desde há algum tempo que os chefes de estado dos regimes capitalistas, os homens de cultura, olham de forma ambivalente a União Soviética. Depois de haver coligado todas as suas forças para aniquilar o regime socialista, compreendem agora que devem contar com ele. Então, tornam-se amáveis, multiplicam as manobras de sedução e recordam a cada passo ao povo soviético que ele “pertence à Europa”.
Agitando o Terceiro Mundo como uma maré que ameaçara engolir toda a Europa, não se conseguirá dividir as forças progressistas que procuram conduzir a humanidade à felicidade. O Terceiro Mundo não pretende organizar uma imensa cruzada de fome contra a Europa. O que espera, de quem o manteve na escravidão durante séculos, é que o ajudem a reabilitar o homem, a fazer triunfar o homem em todos os lados, de uma vez por todas.
Mas é claro que a nossa ingenuidade não chega a acreditar que isto poderá fazer-se com a cooperação e a boa vontade dos governos europeus. Esse trabalho colossal, que consiste em reintegrar o homem no mundo, o homem total, far-se-á com a decisiva ajuda das massas europeias que, é necessário que o reconheçam, se alienaram quanto aos problemas coloniais nas posições de nossos amos comuns. Por isso, será necessário primeiro que as massas europeias despertem, sacudam o cérebro e abandonem o jogo irresponsável da bela dormindo no bosque.
Capítulo da obra Condenados da Terra, de Frantz Fanon