"O nosso Partido e a luta devem ser dirigidos pelos melhores filhos do nosso povo"
A nossa luta não é de boca, é luta de fato, temos que lutar mesmo. Os camaradas lembram-se de que, nos primeiros anos de 1960, muita gente se convenceu de que a luta consistia em falar na rádio. Houve grandes vitórias na rádio de Dacar ou de Conakry, mesmo contra o PAIGC, mas não contra o colonialismo português, porque, contra os colonialistas, eles, os oportunistas, nunca fizeram nada. Velhos tempos em que as pessoas corriam para ver quem chegava primeiro para falar na rádio. Como se isso fosse a luta.
No nosso Partido, nós considerámos sempre como fundamental e certo o seguinte: a luta não é conversa nem palavras, nem escrita nem falada; a luta é a ação de cada dia contra nós mesmos e contra o inimigo, ação que se transforma e cresce cada dia mais, até tomar todas as formas necessárias para correr com os colonialistas portugueses da nossa terra.
E essa luta, devemos fazê-la onde for necessário. Primeiro, dentro da nossa terra, porque o arroz cozinha-se dentro da caldeira, não é fora dela. Mas não devemos esquecer nunca que uma luta do gênero da nossa tem que se fazer também fora da nossa terra, tanto contra os inimigos como junto dos amigos, para conseguir os meios necessários para a nossa luta e para criar todas as possibilidades para alimentar a luta dentro da nossa terra.
O fato de o PAIGC ter estabelecido como princípio de que a luta tem de ser feita de verdade, e que toda a gente tem que lutar, seja quem for, fez com que muita gente se afastasse do Partido.
Porque algumas pessoas se aproximaram do PAIGC, ou chegaram mesmo a entrar no PAIGC, convencidas de que era para lutarem na rádio e para tomarem amanhã o lugar de ministro.
Quando sentiram que no PAIGC, para se estar na luta, tem que se estar ou dentro ou fora do país, conforme a direção decidir, alguns afastaram-se e foram até juntar-se de novo aos tugas, para gozarem um bocado dos restos do colonialismo. Essa é uma das razões principais por que, por exemplo, os oportunistas de Dacar combatem o nosso Partido! Alguns deles desejam imensamente entrar no nosso Partido, mas não têm coragem, porque sabem que o Partido pode dizer-lhes: “pega teso, vamos para dentro “ . Mas o que eles desejam é sair de Dacar para irem diretamente para Bissau sentar-se na cadeira de diretor de gabinete.
Toda a gente tem que lutar, esta é outra certeza no quadro do nosso Partido. E pouco a pouco, no nosso Partido, chegamos a uma situação em que na nossa cabeça e na realidade não há nem dentro nem fora da terra, na nossa luta. No começo da luta houve alguns que se enchiam de bazófias, porque estavam dentro da terra. Outros, fora, tinham medo e não faziam muito, porque estavam fora. Quem, numa luta como a nossa, conservar essa ideia ou outros complexos, de vaidade ou de medo, porque está dentro ou está fora, não compreendeu nada da nossa luta.
Mas quem nunca saiu do mato e tem aguentado sete anos de luta e não entendeu a importância do trabalho dos que trabalham fora da terra, para a luta dentro da terra, não entendeu nada ainda.
E quem está fora, sentado num Bureau ou em qualquer outro lado, e não entendeu ainda o valor daqueles que estão dentro da terra a dar tiros, a fazer trabalho político ou outro, e o valor desse mesmo trabalho, não entendeu ainda nada. O nosso Partido, sem falar muito, sem estar com conversa, chegou a esta posição: nós todos sabemos hoje que não há dentro nem fora, porque todos podem estar tanto dentro como fora da terra. Claro que não vamos confundir a terra dos outros—a República da Guiné ou Senegal, com a nossa terra, a Guiné ou Cabo Verde. É dentro da panela que se coze o arroz, mas sabemos a importância que tem a lenha e tantas outras coisas necessárias para fazer cozer o arroz. Alguns camaradas do Partido pensavam que, pelo fato de entrarem ir ao mato para a luta, eram reis, e que podiam pôr os pés em cima de quem quer que seja.
Enganavam-se.
Hoje sabemos que não é verdade, não é assim. Desde o Congresso de Cassacá que se sabe que isso não é verdade. Se alguém entra no mato para comandar a guerrilha, para lutar, e não seguir as palavras de ordem do Partido como deve ser, então que pegue teso porque vamos deixar os tugas para primeiro combater contra ele. Mas alguns, no seu trabalho fora da terra, adquirem vícios pensando que eles não podem pôr os pés na lama, não podem ser mordidos pelos mosquitos, não podem passar por aquilo que os combatentes, os nossos dirigentes, os nossos responsáveis estão a passar na nossa terra. Estão enganados! É gente que de fato não se engajou na luta a sério. Talvez estejamos enganados em fazer deles dirigentes do Partido, mas mais dia menos dia, saberão que não é assim.
O nosso Partido tem uma situação tal que ninguém está dentro nem fora, toda a gente está dentro ou está fora consoante às necessidades do Partido. E os dirigentes da luta e do Partido devem estar sempre a par de todas as coisas que se passam, fora ou dentro da nossa terra, respeitante ao tipo de trabalho que fazem no Partido. De uns anos para cá, podemos dizer o seguinte: não há dirigente nosso, um responsável nosso, que já não fez missões fora da terra, e não há um dirigente nosso que não tenha trabalhado dentro da terra também.
Claro que há alguns militantes ou mesmo responsáveis que têm estado mais fora do que dentro, e que passam a vida a pedir para ir adentro. É agradável ouvir isso, mas é preciso perguntar se o seu trabalho, a sua formação, exige que estejam dentro da terra ou fora. Isso é que é importante, porque turismo faremos mais tarde. Também há gente no interior que pede para ir à Europa. Mais tarde, se não conseguir ir, se não lhe der uma missão para isso, quando tomarmos a nossa terra, se trabalhar bem, enche os bolsos de dinheiro e pode ir à Europa passear e voltar. Mas o movimento da nossa gente, ou fora ou dentro, faz-se de acordo com as necessidades da nossa luta. Isto é fundamental para nós. No meu caso de dirigente, tenho de responder pessoalmente às necessidades da nossa luta em conferências, nos encontros com Chefes de Estado ou com dirigentes de outros Partidos no mundo, e isso representa para mim, como para outros camaradas que trabalham comigo, um trabalho decisivo na nossa luta. Mas uma força grande para mim também é a certeza de que não há uma operação importante na nossa guerra, ou trabalho político importante, que eu mesmo não conheça, não estude, e não há uma mudança ou trabalho sério no plano político ou da luta armada que não passe pelas minhas mãos. Pena é que nós temos limitações de homem; infelizmente não posso estar em todo o lado ao mesmo tempo, mas tenho estado o maior tempo possível ao lado dos nossos combatentes e militantes.
Outro princípio ligado ao que acabo de referir diz que devemos lutar sem corridas, lutar por etapas, desenvolver a luta progressivamente, sem fazer grandes saltos.
Se repararem bem, verão que muitas lutas começaram por criar Bureau Político, Estado Maior, etc.; nós não começamos por isso. Muitas lutas começaram criando logo um exército de libertação nacional; nós não começamos por isso. Nós começámos a nossa luta como quando se lança uma semente à terra, para nascer. Deita-se a semente, nasce uma planta pequenina, que cresce, cresce até dar flor e fruto: esse é que é o caminho da nossa luta, etapa por etapa, passo a passo, progressivamente, sem saltos grandes. Aliás, cada etapa significa ao mesmo tempo maiores exigências no nosso trabalho, na nossa luta.
Alguns camaradas, mesmo entre os que estão sentados nesta sala, têm a tendência de procurar comodidade à medida que crescem as suas responsabilidades. Há camaradas que parece que passaram vários anos à espera de responsabilidade para poderem cometer os erros que outros cometeram no seu lugar. Temos que combater isso com coragem, porque a luta é exigência, o nosso Partido é cada dia mais exigente. E aqueles que não entenderem, temos que pô-los de lado, por mais que nos doa o coração. Nós não podemos permitir que à medida que a luta avança, que o nosso povo se sacrifica por causa da nossa luta, que vários camaradas morrem e outros são feridos, ou ficam aleijados, que nós envelhecemos nesta luta, dando toda a nossa vida para a luta, em que tanta gente tem esperança em nós, tanto dentro como fora da nossa terra — não podemos permitir que alguns camaradas militantes ou responsáveis levem uma vida de facilidades e cometam atos que não estão de acordo com a nossa responsabilidade, diante de nós mesmo, diante do nosso povo, diante da África e do mundo.
Muita gente pensa que isto aqui é o quintal do Cabral, que ele é que tem que reparar aquilo que se estragou ou que alguém estragou. Estão enganados. Cada um de nós é que tem que reparar, pegar teso para corrigir, porque se não, não há nada que nos possa salvar, quaisquer que sejam as vitórias que já alcançamos. Por isso mesmo, a nossa luta é como o balaio que separa o arroz limpo do farelo, como uma peneira que peneira a farinha pilada, para separar a farinha fina da farinha de grão grosso ou de outras coisas. A luta une, mas é ela também que separa as pessoas, a luta é que mostra quem é que tem valor e quem é que não presta. Cada camarada deve estar vigilante em relação a si mesmo, porque a luta está a fazer a seleção, a luta está a revelar-nos a todos, está a mostrar quem somos nós. Essa é uma das grandes vantagens do nosso povo em fazer a luta, sobretudo a luta armada, para se libertar.
Havia um homem grande, que aliás ainda está na luta, que há três anos me dizia: “Cabral, eu rezo todos os dias para Salazar não morrer”. — “E por que, homem grande?” — “Para a luta continuar um bocado ainda, para ele continuar a teimar, para nós continuarmos, para nos conhecermos melhor uns aos outros.” Esta é uma grande verdade; hoje já nos conhecemos muito, hoje sabemos quem tem valor e quem não tem valor.
Fazemos força para aqueles que não prestam melhorarem, mas sabemos quem vale e quem não vale, sabemos até quem é capaz de mentir. Há alguns que ainda não conhecemos bem. Os camaradas também me conhecem, conhecem outros dirigentes do Partido que respeitamos muito, porque valem até ao fim, vocês sabem isso bem. Há outros de que alguns têm medo, porque sabem que só valem porque têm a força nas mãos. Alguns de vocês que estão aqui já viram dirigentes do Partido cometer erros graves, mas obedecem-lhes ainda porque têm medo deles.
Hoje, conhecemo-nos bem. Alguns de vocês viram responsáveis do Partido fazer mal a outras pessoas e sabem, na vossa consciência, que isso não é justo, mas calaram-se, esconderam isso. Mas ficaram convencidos de que esses não são bons dirigentes, não são bons responsáveis, fazem mal, agem contra a linha do Partido, e fazem-no com a certeza de que a direção do Partido, em conjunto, não tomará conhecimento.
Cada um de vocês que está aqui, que tem o seu responsável ou seu dirigente junto dele, tem a sua ideia concreta sobre esse homem ou essa mulher. A luta tem servido para nos conhecermos muito bem e isso é muito importante. Alguns têm sido capazes de ser cada dia melhores, outros têm-se enterrado cada dia mais, apesar de toda a ajuda que temos procurado dar para fazer avançar cada um, com a cabeça bem alta, a serviço do Partido, para servir o nosso povo como deve ser.
Quer queiramos, quer não, a luta faz a seleção, e pouco a pouco uns passam na peneira, outros ficam, porque a nossa decisão firme, enquanto estamos cá como dirigente deste Partido, é a seguinte: para a frente só vão aqueles que de fato querem lutar a sério, aqueles que de fato entenderam que a luta vai por etapas e aqueles que de fato entenderam que a luta cada dia tem mais exigências, mais responsabilidades e que, portanto, estão dispostos a dar tudo sem exigir nada, a não ser respeito, dignidade, oportunidade para avançarem e servirem o nosso povo como deve ser.
Quero lembrar, por exemplo, que em relação à luta por etapas, muitos camaradas nossos pensavam que a luta avançava mais depressa, que entrávamos logo em Bissau. Não é assim, tem que ser por etapas, temos que estar preparados para uma luta longa. No ponto em que já estamos, a nossa independência pode ser para amanhã ou depois de amanhã, ou daqui a seis meses, porque os tugas estão desesperados na nossa terra e, se aguentarmos bem, eles estarão cada dia mais desesperados. Mas temos que ter o nosso espírito preparado para uma luta longa, temos que preparar gente nova para continuar, se for preciso.
E vocês, jovens que estão aqui, devem tomar sobre os vossos ombros as vossas responsabilidades e entender bem o seguinte: se esta luta acabar amanhã, devem estar prontos, como jovens, para assegurar o trabalho do nosso povo, para construir o progresso que o nosso Partido quer. Mas se durar mais dez anos, vocês, jovens que aqui estão, têm a obrigação de substituir os mais velhos que já não possam continuar, e têm a obrigação de preparar outros jovens para se formarem a tempo, para poderem pegar na luta. Os vietnamitas dizem que eles ganham a guerra com certeza, porque se os americanos estão dispostos a lutar dez anos, eles estão dispostos a lutar dez anos e meio, se os americanos estão dispostos a lutar vinte anos, eles estão dispostos a lutar vinte anos e meio. Isso é que é consciência dum povo, que conhece os seus direitos na sua terra, que a sua terra é sua e que tem de fato jovens e adultos que estão dispostos a servir o seu povo a sério.
É evidente que uma luta como a nossa, um Partido como o nosso, exigem uma direção segura, uma direção unida, uma direção consciente, e é a nossa própria realidade que cria essa consciência. Temos necessidade de consciência, porque, na medida em que o homem tem consciência duma realidade, ele cria força para mudar essa realidade, para a transformar numa realidade melhor. E no quadro duma luta como a nossa, dum Partido como o nosso, aqueles homens e mulheres mais conscientes, quer dizer, que têm uma ideia mais clara da nossa realidade e daquela realidade que o nosso Partido quer criar, é que devem passar à frente para dirigir, qualquer que seja a sua origem, donde quer que venham. Nós não vamos ver donde é que vêm, quem são, quem são os seus pais. Nós vemos apenas o seguinte: sabem quem somos nós, sabem o que é a nossa terra, o que é que o nosso Partido quer fazer na nossa terra? Querem fazer isso a sério, debaixo da bandeira do nosso Partido? Então passam à frente e dirigem. Quem mais tem consciência disso é que dirige. Podemos enganar-nos hoje, enganar-nos amanhã, mas a melhor prova da verdade é a realidade, a prática, que mostra quem tem valor e quem não tem.
Portanto, o nosso princípio é este: os melhores filhos da nossa terra é que devem dirigir o nosso Partido, o nosso povo. Isso quer dizer que de fato temos posto sempre os melhores? Alguns não prestam, mas é uma experiência grande que estamos a fazer ainda. A verdade é que temos dado sempre oportunidade para as pessoas melhorarem, temos dado a toda gente no Partido oportunidade para avançar, para ser capaz de dirigir. Há camaradas sentados aqui que há três anos eram simples recrutas nos nossos campos de preparação militar, hoje eles são membros dos nossos Comitês Interregionais ou dirigentes das nossas Forças Armadas. Isso mostra quanto o nosso Partido tem sido capaz de abrir um caminho largo para os nossos camaradas avançarem, para aqueles que são mais conscientes, que têm mais valor, dirigirem.
A nossa luta exige uma direção consciente e nós dissemos que os melhores filhos da nossa terra é que têm que dirigir. É difícil, logo de entrada, saber quem é melhor, mas segundo aquele princípio de que falamos no começo, confiar para poder confiar, conforme alguns vão mostrando a sua capacidade, nós vamos passando-os adiante e depois vamos ver se de fato são ou não os melhores, e se melhoram ou pioram.
A verdade é que ninguém pode dizer que neste Partido nem toda a gente tem oportunidade de poder mandar. Todos têm, todos têm o caminho aberto para avançarem e o nosso desejo foi sempre o seguinte: quanto maior número puder mandar, melhor, porque podemos escolher os melhores dos melhores para mandarem. E temos feito tudo para melhorar a formação dos camaradas, para pensarem mais os problemas, para mostrarem mais iniciativa, mais entusiasmo, mais dedicação, para avançarem. E temos feito o máximo para sermos justos, para fazer avançar aqueles que de fato merecem avançar pelo seu próprio trabalho, não pelas suas caras bonitas ou porque são capazes de ser criados de cada um.
Neste Partido temos evitado ao máximo tudo quanto seja submeter as pessoas umas às outras, fazer que uns sejam servidores de outros. Desde a primeira hora eu disse o seguinte: nós não queremos criados, não queremos servidores, não queremos rapazes para mandar neles. Nós queremos homens, camaradas conscientes, camaradas nossos, capazes de levantar a cabeça diante de nós, de discutir com respeito, como deve ser. Queremos homens e mulheres conscientes, de cabeça levantada, e temos lutado duro contra toda a tendência de dirigentes ou de responsáveis de fazer os rapazinhos andar atrás deles, de fazer outros responsáveis que estão debaixo das suas ordens como se fossem os seus meninos de recados. E também temos combatido no próprio espírito dos camaradas a mania de deixar outros tomarem responsabilidades no seu lugar.
Claro que tem havido alguma resistência a isso, particularmente, por exemplo: tem havido resistência surda, calada, por vezes, contra a presença de mulheres entre aqueles que mandam.
Alguns camaradas fazem o máximo para evitar que as mulheres mandem, embora por vezes haja mulheres que têm mais categoria para mandar do que eles. Infelizmente algumas das nossas camaradas mulheres não têm sabido manter respeito e aquela dignidade necessária para defender a sua posição como pessoas que estão a mandar. Não têm sabido fugir a certas tentações, ou pelo menos tomar certas responsabilidades sobre os seus ombros sem complexos. Há camaradas homens, alguns, que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, a soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso, e que a força do nosso Partido vale mais na medida em que as nossas mulheres peguem nele teso para mandarem também, com os homens. Muita gente diz que Cabral está com as suas manias de pôr as mulheres a mandar também. “Deixa pôr, mas nós vamos sabotar por trás”. Isso é de gente que ainda não entendeu nada. Podem sabotar hoje, sabotar amanhã, mas qualquer dia desses ficarão mal.
Outra grande resistência durante algum tempo no Partido foi a seguinte: nós éramos uns tantos dirigentes, mais ninguém podia ser dirigente. Vários camaradas nossos, bons combatentes, capazes, ficaram ignorados, tapados no caminho, porque alguns que mandavam não lhes deram nenhuma oportunidade para avançarem. Isso é matar o Partido, como se o estivessem a afogar.
Porque enquanto nós que estamos com mais idade temos ar para respirar, vamos adiante; à medida que o ar nos vai faltando, não há ninguém para nos substituir. A força do nosso Partido só existe de fato se nós, os dirigentes, formos capazes de abrir caminho para os jovens avançarem, jovens como vocês, outros jovens que estão ainda para trás, centenas, milhares, para tomar conta e fazer passar os melhores para a frente para mandar.
Nós, da direção do Partido e eu em particular, temos feito o máximo para apoiar todos aqueles que mostram vontade de trabalhar. A maior felicidade para mim é ver um camarada, homem ou mulher, cumprir o seu dever com consciência, com boa vontade, sem ser empurrado, como é necessário tantas vezes empurrar alguns para fazerem aquilo que têm para fazer. Isso encoraja-nos muito, dá-nos a certeza de que somos capazes de vencer, de fazer o que o nosso Partido quer. Toda a gente deste Partido sabe bem quanta amizade, quanta estima, quanto respeito, quanto carinho nós temos por aqueles que são capazes de cumprir o seu dever. Cada um que nós vemos a trabalhar com todo o entusiasmo, é como se fosse um pedaço de nós mesmos, um pedaço novo que é a garantia do futuro do nosso Partido e da vitória para o nosso povo. Por isso, o nosso trabalho tem sido fomentar, procurar desenvolver no espírito de cada um, dos mais novos, homens e mulheres, a vontade de pegar teso, de entender as coisas do Partido, de avançar para a sua frente. Esse é que deve ser o trabalho de cada dirigente, de cada responsável do nosso Partido.
Mas a tendência de alguns camaradas é a seguinte: um comissário político, por exemplo, vê um rapazinho bom militante; em vez de se ocupar dele para o ajudar, para ele entender mais, para avançar, em vez de o animar, não, faz dele o menino de recados, porque é esperto, sabe bem, vai rapidamente; se lhe der uma coisa para guardar, guarda bem; e, então, dá-lhe o seu saco de roupas, para ele guardar, em vez de fazer dele um valor para a nossa terra. Ou então: aparece uma rapariga, esperta, mais ou menos bonita, em vez de a ajudar, dar-lhe a mão para avançar, para ser enfermeira, ser professora, para ir estudar, para ser uma boa miliciana, ou qualquer outra coisa, não, faz dela sua amante; porque é muito bonita e ele é que tem o direito de tomar conta dela.
Temos de acabar com isso.
Nós não queremos proibir que tenham criados, tenham bajudas ou tenham filhos, não é isso.
Temos é que parar de estragar o futuro do nosso Partido. Quem quer criado, tem que esperar até amanhã na nossa terra independente. Trabalha e, se tiver meios, arranja o seu criado, se houver gente que quer ser criado. Não deve aproveitar a autoridade do Partido, que o Partido lhe pôs nas mãos, para arranjar o seu criado. Quem quer bajudas, hoje ou amanhã, pode arranjá-la, conquistá-la, casar com ela, mas não utilizar a autoridade do Partido para ter tantas mulheres quantas deseja. Enquanto houver isso, estaremos a enganar-nos e a dar razão aos tugas e a todos os inimigos do nosso povo.
Temos que ter consciência disso. E vocês, jovens, militantes ou responsáveis do nosso Partido, têm que estar conscientes disso. O vosso trabalho não é buscar filhos hoje, é servir o Partido, levantar bem alto a bandeira do Partido, ajudar os filhos da nossa terra a levantarem-se - homens mulheres e raparigas da nossa terra - e não andar atrás de calças de tergal do Senegal ou de negócios para um lado e para o outro. Não é isso. Se fizerem isso, falham redondamente na vossa missão histórica que é a de ser responsável deste Partido, com a idade de vinte e pouco anos.
Alguns de vocês, que saíram da nossa terra, viram o respeito que o nosso Partido inspira, a consideração de que o nosso Partido é objeto, quanta esperança o nosso Partido tem posto na cabeça de outras gentes no mundo, mesmo em África. Os camaradas muitas vezes esquecem isso, no meio do mato esquecem-se completamente da sua responsabilidade como dirigentes. Alguns têm procurado utilizar ao máximo a autoridade que o Partido lhes deu para servirem a sua barriga, os seus vícios, as suas conveniências. Isso tem que acabar. E são vocês mesmos que têm que acabar com isso, em todos os níveis.
Por isso mesmo, temos que ser vigilantes contra os oportunistas. Oportunistas não são só aqueles que estão no Senegal a tratar de fazer os seus movimentinhos. No nosso meio também há oportunistas que, sabendo que a nossa direção exige, para dirigir, os melhores filhos da nossa terra, podem fingir ser dos melhores, ou então procurar satisfazer os seus responsáveis ao máximo, para os responsáveis os proporem como dirigentes ou como responsáveis. Temos que ter cuidado com isso, temos que os desmascarar, combatê-los. Os camaradas têm que entender que só é bom dirigente, só é bom responsável, aquele que for capaz de contar cara-a-cara os erros que outros fazem. Muitos camaradas responsáveis, a qualquer nível, têm cometido o erro grave de esconder os erros dos outros: “nha boca câ sta la, se o Cabral descobrir está bem, se não descobrir, paciência”. Isso é destruir o trabalho, o sacrifício que ele mesmo está a fazer, porque está a compor por um lado e a estragar por outro.
Temos que ter o cuidado de desmascarar todos os oportunistas no nosso meio, todos os mentirosos, todos os covardes, todo aquele que falta à linha do nosso Partido. Temos que ter coragem de tomar as nossas responsabilidades sobre os nossos ombros, cada um de nós, jovens responsáveis ou dirigentes do nosso Partido. Temos que ter coragem de nos olhar, olhos nos olhos, porque o nosso Partido só pode ser dirigido por homens ou mulheres que não baixam os olhos diante de ninguém.
Outro aspecto importante que temos que defender na direção do nosso Partido - já o dissemos claramente nas palavras de ordem publicadas - é que o nosso Partido é dirigido coletivamente, não é uma pessoa só que dirige. Em qualquer nível, na ação política ou nas Forças Armadas, na segurança ou na instrução; em qualquer lado, há sempre uma direção coletiva, a vários níveis.
Mas a tendência de alguns camaradas é de monopolizar a direção só para eles, eles é que decidem tudo, não consultam a opinião de ninguém que está ao lado deles. Isso não pode ser, porque duas cabeças valem sempre mais do que uma, mesmo que uma seja esperta e a outra burra.
Sobre este assunto, os camaradas têm que ler a sério a conversa que tivemos sobre a direção coletiva (dirigir em grupo). Mas lembro aos camaradas que direção coletiva (dirigir em grupo) não quer dizer que toda a gente tem que mandar, que já não há autoridade nenhuma.
Alguns pensam: “se temos que mandar, então vamos mandar, nem que não saibamos mandar nada, só para fingir que toda a gente é que manda”. Isso é asneira. Há muito tempo que eu disse que se não é preciso ser doutor para mandar no nosso Partido, não podemos esquecer que há certos trabalhos que quem não sabe ler nem escrever não pode fazer; senão, estamos a nos enganar, e nós não temos nada que nos enganar. Há certos trabalhos que, conforme o nível de instrução, assim se podem ou não fazer. Além disso, temos que nos lembrar de que no Partido há uma hierarquia, quer dizer, uma escala de gente que manda e que é preciso respeitar, respeitar a sério, e nem sempre tem sido respeitado como deve ser.
Nas condições concretas da nossa luta, da nossa terra, diante das exigências da História do nosso povo, neste momento, o nosso Partido tem que ter chefes bem definidos, para toda a gente saber quem é, para não haver confusão nenhuma. Qualquer que seja o nível dos que estão a mandar, do Bureau Político ou de qualquer outro organismo, têm que ter na sua cabeça o seguinte: aqui há um chefe, que não tem necessidade de lembrar a ninguém que é chefe, que se confunde com toda a gente, que não tem a menor pretensão e assim é que deve ser o nosso chefe, que não se envaidece para mostrar a toda gente que ele é que manda, mas que não se esquece em nenhum momento de que ele é que é o chefe; e quem não se lembrar, ele lembra-lhe.
A direção do nosso Partido é a força do nosso povo, ele é que é responsável por tudo quanto os nossos militantes, responsáveis, combatentes, etc., fazem. A nossa direção tem que ser uma só, unida, não podemos admitir no nosso seio nenhuma divisão, e quem fala na direção superior do Partido, fala em direção em qualquer escala, seja no Comitê Interrregional, seja no Comitê da Zona do Partido; ninguém pode voltar as costas ao seu companheiro. Quem não entender isso, está a estragar.
Seja, por exemplo, na direção das Forças Armadas: vários casos se têm dado em que os comissários políticos não se entendem com os comandantes. Criminosos que não se entendem quando têm os tugas à frente para combater contra eles. Temos tido necessidade de mudar camaradas, porque estão com ambições, no puxa-puxa com os companheiros. Não podemos permitir isso mais. Chegou o momento de baixar de posto todos aqueles que não se entendem uns com os outros; não se transferem mais, baixa-se de posto, passam a simples soldados rasos ou a simples militantes. Porque já passou a hora de estar a ensinar aos camaradas que temos que nos entender uns com os outros; o nosso inimigo é o tuga colonialista e não outro qualquer.
Nesta sala mesmo há camaradas que trabalharam juntos e que não foram capazes de se dar bem uns com os outros. Pouca vergonha. E por quê? Porque andam a tratar da sua barriga, das suas ambições, em vez de servirem os interesses do Partido. Mentalidade de ambiçõesinhas, de manias. Em vez de dedicarem a sua atenção à luta, aos trabalhos do Partido, andam a ver quem tem mais coisas, quem tem menos coisas, conversazinhas, intriguinhas... E, no fundo, falta de coragem, covardia ao fim e ao cabo.
Não pode ser; chegou a hora de pararmos com isso. No mato ou fora do mato, chegou a hora de cada um tomar o peso da sua consciência, de pôr de lado as manias, pegar duro no trabalho, para nunca se atrapalharem no caminho. E devemos lembrar aos camaradas das zonas - sobretudo os das zonas - a importância que tem a direção local para manter o povo com entusiasmo. Não podemos permitir que um camarada que é Comissário Político duma área durante um, dois, três anos e chega ao fim sem ter autoridade, que cada um faça o que quer, desconsiderando a sua direção.
Isso é o falhanço total de um camarada. E temos que notar que algumas direções locais, que trabalharam muito bem no começo, só começaram a agir mal, a cometer erros, quando os dirigentes começaram a tratar da sua barriga, considerando a sua área já independente e começando a tratar da sua vida.
Há um filme de que eu nunca me esqueço, porque foi uma grande lição para mim. Era uma vez um rapazinho que foi educado num colégio qualquer de padres e que acreditava muito em milagres. Não conhecia nada da vida, porque fez a sua vida no colégio e saiu de lá homem, com vinte e um anos. Todas as injustiças que ele verificava eram um mal; não entendia que havia dum lado a miséria, gente que sofre, e do outro os ricos. Mas ele conseguiu encontrar uma pomba que fazia milagres. E então, porque o seu pensamento estava ligado ao sofrimento dos outros, resolveu fazer tudo para ajudar os outros, para não haver fome, nem frio, para todos terem casas para morar, para cada um realizar os seus desejos; ele não pensou em si mesmo, mas pedia à pomba para fazer milagres para os outros. Então a pomba apareceu-lhe e sentou-se na sua mão.
Ele disse: — ”pomba, dá casas para aqueles pobres” — e apareceram as casas com tudo dentro delas. “Dá comida àqueles famintos”, e aparecia a comida, boa comida. Chamava mesmo as pessoas para perguntar o que é que queriam, e dava. Até o dia em que arranjou a sua namorada e sentou-se com ela. A namorada pedia-lhe uma coisa e ele dava. Outra gente dizia que também queria, mas ele não tinha tempo, agora era só para a namorada. Repentinamente a pomba voou, foi-se embora. Acabaram-se os milagres e tudo o que ele tinha feito como milagre tornou a desaparecer, mesmo ainda com a pomba na mão os milagres acabaram. Ele já não podia fazer nada pelos outros, porque só pensava na sua bajuda, na sua barriga.
Esta é uma grande lição. Na medida em que somos capazes de pensar no nosso problema comum, nos problemas do nosso povo, da nossa gente, pondo no devido nível os nossos problemas pessoais e, se necessário, sacrificando os interesses pessoais, somos capazes de fazer milagres.
Assim devem ser todos os dirigentes, responsáveis e militantes do nosso grande Partido, a serviço da liberdade e do progresso do nosso povo.
Por Amílcar Cabral
Do marxists.org