“Ligas Camponesas do Brasil”
1 - AS LIGAS CAMPONESAS: ORIGENS E CAUSAS
I
As Ligas Camponeses são um tipo de organização do campesinato que data de muitos séculos. As mais célebres, pelo papel que desempenharam e pelas guerras a que deram origem, durante quase cem anos (séculos XV e XVI) foram as Ligas Camponesas da Alemanha.
Escravizados pelos príncipes e barões feudais, por um lado, e por outro, sujeitos ao dizimo da Igreja e ao foro pelo uso da terra, cada ano mais pesado, tudo isso agravado pelo insucesso constante nas colheitas, os camponeses terminaram por se rebelar, lançando mão das mais distintas formas de luta. Toda a sorte de injustiças e de opressão pesava sobre eles. Os servos da gleba feudal tinham o direito de respirar o oxigênio que a natureza criou, eram usados até como meio de transporte pelos nobres. Como se faz com o burro e o cavalo. A fome dizimava populações inteiras, como dizima hoje os nordestinos do Brasil, menos por causa da seca do que pela estrutura econômico-social que esmagava o povo e exige sacrifícios inenarráveis do campesinato.
Sob o feudalismo, o senhor tinha direito de vida e de morte sobre os camponeses. Podia matá-los, como se faz entre nós, sem punição, porque o mundo de então, como aquele de que ainda participa o nosso país, se dividia e se divide entre opressores e oprimidos, e a justiça, como o poder de polícia, são instrumentos que asseguram a conservação dos privilégios da oligarquia.
II
A concentração do capital e o trabalho escravo favoreceram a construção de obras suntuosas, castelos, igrejas e monumentos tão altos como as montanhas para refletir o poderio das classes dominantes. Tudo isso argamassado pelo sangue e pelo suor dos camponeses, como se fez em Brasília, cujos edifícios foram alicerçados no sacrifício de centenas de milhares de camponeses, no quinquênio Juscelino Kubitschek, que não teve uma palavra de esperança sequer para o campesinato, mas abriu, como nenhum outro, as portas do País ao capital estrangeiro monopolista e espoliador de nossas riquezas. Para defender sua fortuna, seu luxo, vaidade e vícios, os feudalistas europeus faziam guerra entre eles próprios. Exigiam que os camponeses fossem morrer por eles, além de pagarem os tributos de guerra.
A contradição existente entre o castelo do nobre e a choupana do servo era igual a que, hoje, ainda existe entre a Casa Grande da Usina, do capitalista, e a cafua miserável do camponês. Qualquer dos grandes viajantes europeus que, nos últimos três séculos, percorreram nossa Pátria, não esconde o seu espanto diante desse contraste alimentado pela crueldade do rico contra o pobre; o fausto da casa senhorial, com sua baixela de prata e uma infinidade de criados, a dois passos apenas da tosca cubana de barro e de palha, sem luz e sem ar, onde se estiola na miséria e na promiscuidade criminosa a imensa massa dos sacrificados.
III
A tradução da Bíblia do latim para o alemão acelerou o processo revolucionário porque permitiu ao homem do povo, impregnado de sentimentos religiosos, ler em seu próprio idioma e entender as escrituras sagradas.
A Bíblia traduzida deu motivo a que fossem percebidas inúmeras contradições entre o que pregava e o que praticavam aqueles que, invocando o nome de Deus, se faziam seus Ministros ou se diziam seus seguidores.
É indubitável que a Reforma trouxe proveitosos resultados políticos para a humanidade, como é certo que isso se deve, fundamentalmente, a participação dos camponeses da Europa Central, naquele tempo. A Reforma teve caráter político-econômico, mas se apresentou, sobretudo, como forma de luta religiosa.
Foi assim que o camponês alemão ficou sabendo que Cristo era um homem pobre, humilde, sem dinheiro; que andava de sandálias e a pé, como ele; que não tinha terras não cobrava foro nem dízimo de ninguém; que dizia ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que o rico entrar no céu; que, ao contrário dos cardeais e bispos, não vivia nos palácios com os ricos e, sim, nos campos com os miseráveis; que Deus dissera a Adão e Eva que a terra era dele para ser distribuída indistintamente entre todos aqueles que quisessem ser seus inquilinos; que cada um deveria ganhar o pão com o suor de seu rosto; que o próprio Cristo, apesar de manso de coração, usou do chicote contra os mercadores do templo, que aproveitavam a religião para usufruir bens materiais e fazer negócios, que o demônio, certa vez, lhe ofereceu todas as riquezas deste mundo para que modificasse as suas ideias, mas Ele preferiu continuar com os humildes.
Estes conhecimentos condiziam ao choque violento com a realidade de então, pois se, de um lado, os que figuravam como representantes de Deus e de Cristo, viviam luxuosamente em palácios, com pajens, cortesãos e escravos, do outro lado, os príncipes e barões feudais, que correspondiam aos coronéis e latifundiários de nossa época, se negavam a ser apenas simples inquilinos de Deus em relação à terra, mas se consideravam seus sócios, alugando-a aos cristãos mais desprotegidos da fortuna.
Foi isso, sem a menor dúvida, que contribuiu para esclarecer e abrir os olhos dos camponeses da Europa Central e de outras camadas do povo também sacrificadas pela gula dos senhores feudais, dando-lhes o nível político, a visão, a perspectiva que levariam as massas à rebelião, a heroica luta pela sua liberdade de jugo tão cruel.
A partir de então, isto e, da revolução que teve como um dos seus determinantes a tradução da Bíblia, os camponeses recusavam-se a pagar o aumento do foro aos nobres, assim como o dízimo obrigatório a Igreja.
A reação não se fez esperar. Os infratores da lei, da lei dos barões e dos Príncipes da Igreja, eram punidos sem piedade, sentenciados, escorraçados, excomungados, queimados vivos, as vezes aldeias inteiras, como exemplo aos sediciosos. Se fosse hoje, o pretexto seria a defesa da civilização "cristã" (cristã com aspas, assinalemos) ameaçada pelo comunismo, enquanto, por trás, na sombra, perdura o saque desenfreado de nações ricas contra pobres, e, dentro de cada nação, sob regime feudal e capitalista, do tubarão contra o povo. Naquele tempo não havia Marx, nem Lênin, nem Mao-Tse-Tung, nem Fidel Castro. 0 pretexto era outro porque pretexto nunca falta para a oligarquia dominante justificar a manutenção dos privilégios odiosos.
Apesar das represálias violentas e dos bárbaros massacres, dignos de Pizarro, Cortez, Napoleão ou Hitler, continuaram a aparecer espíritos rebeldes que, de Bíblia na mão, aqui e ali, acusavam os que tinham traído as Escrituras e viviam explorando, aviltando e assassinando os pobres e humildes que o Cristo tanto amara.
Portanto, o papel desempenhado pela tradução da Bíblia para o idioma alemão, foi revolucionário.
IV
Quatorze séculos antes, já o cristianismo desempenhara papel preponderante e decisivo na Revolução antiescravista que resultou na destruição do Império Romano.
Mas, deformada e absorvida pelo estado feudal, no primeiro milénio da Era Cristã, a religião que nascera na Galileia passou a ter bandeiras, armas, brasões e soldados e a fazer guerras durante séculos. Aí estão as Cruzadas. Vários heróis dessas guerras foram canonizados, como S. Luís da França. Tudo girava em torno de interesses comerciais. É que os árabes ocupavam, naquela época, todo o Oriente Médio, por onde tinham de passar forçosamente as caravanas que ligavam o Mediterrâneo às ricas e longínquas regiões da índia e da China, de onde vinham as especiarias, as manufaturas e o ouro. Disso se aproveitaram os árabes, detentores da passagem por onde tinham de seguir as caravanas europeias, e cobravam delas altos tributos.
Contrariados em seus interesses, os senhores do Continente Europeu mobilizaram, por intermédio da Igreja, milhares de cristãos para a guerra santa. O pretexto inventado pelos barões feudais e mercadores para mover aquela multidão de místicos e fanáticos era a libertação do túmulo de Cristo: em Jerusalém. Era o nome de Cristo - pobre Cristo! - utilizado para a defesa de interesses econômicos e comerciais da classe dominante. Igualmente, por conta desses interesses, e sob o signo da cruz, centenas de milhares de cristãos morreram em guerras religiosas fratricidas durante os séculos seguintes...
Bastou que os europeus, por intermédio dos chineses ou de Flávio Gioia, conhecessem a bússola e passassem a fazer a viagem para a Índia circunavegando a África, para que não mais se interessassem em libertar o Túmulo Sagrado do poder dos infiéis. Isso durou até outro dia. Hoje, o Túmulo, o Calvário e a própria Jerusalém se encontram de novo em poder dos judeus, outrora acusados e perseguidos sob o pretexto de terem crucificado o Cristo. Mas ninguém pensa em libertar o Túmulo nem a Terra Sagrada das mãos dos judeus. Agora, quem vai a Israel, visita, reverente, a Tumba Santa, mas leva a preocupação maior de conhecer a experiência do "Kibutz", de verificar se a solução agrária, adotada por aquele Estado, pode vingar no Nordeste, ou em outras regiões com a mesma fisionomia.
Se o Estado feudal cobrava o imposto, a Igreja recolhia o dizimo e os príncipes moravam em palácios luxuosos, os cardeais, Príncipes da Igreja, também moravam neles; se os barões feudais tinham terra para cobrar foro, a Igreja não fazia por menos; se o Estado feudal tinha uma Justiça, a Igreja tinha o Tribunal de Inquisição, de que não escaparam Joana D'Arc, Giordano Bruno, Galileu, o Padre António Vieira e dezenas de milhares de cristãos. Muito sangue correu, durante séculos, antes que o regime capitalista, pondo abaixo o feudalismo, separasse a Igreja do Estado. É que o barão feudal arrebatou ao Papa a prerrogativa de nomear bispos e cardeais que não serviam ao cristianismo, mas ao barão feudal. Com as exceções de que hoje se orgulha a cristandade, sendo a maior delas, João Huss, o grande padre tcheco que preferiu ser queimado vivo com os camponeses pobres a trair o Cristo.
Foi contra a união espúria entre a Igreja e o Estado feudal, contra esse conluio, que os camponeses da Europa central se levantaram, organizando-se em suas Ligas. Todos eles eram cristãos, faziam parte de Irmandades, Ordens Religiosas, do Santíssimo, do Sagrado Coração de Jesus, entre dezenas.
Quando a fome os açoitava com mais violência, aproveitavam eles as festas para se reunirem em grande número. E daí deliberavam não pagar mais o foro, nem o dízimo. Iam além, assaltavam os palácios dos príncipes e os porões das Igrejas, onde sabiam existir alimentos e ouro armazenados.
Milhares e milhares de camponeses participaram de tais operações e se articularam com os seus irmãos dos feudos vizinhos, formando as Ligas Camponesas que tinham como emblema uma bota, a bota rota dos camponeses alemães.
No Palatinado, na Saxônia, na Boémia, na Morávia, na Renânia, na Pomerania, na Silesia, na Alsácia e na Lorena, a guerra camponesa se espalhou rápida sob a bandeira da Reforma.
Munzer, professor universitário, o famoso camponês Joãozinho da Flauta, João Huss, Jzijka, Wiclif e muitos outros, dirigiram as legiões de famintos naquelas guerras que consumiram quase todo um século.
À custa do sangue de milhões desses heroicos e desgraçados camponeses e do sacrifício da maioria de seus chefes indomáveis, muitas das instituições feudais foram abolidas. Seu sacrifício não foi em vão, como não foi em vão, o sacrifício de João Pedro Teixeira, o bravo camponês de Sapé, emboscado pelo latifúndio e, antes dele, o de milhares e milhares de seus irmãos, sobre cujos túmulos anônimos pesa o silêncio dos séculos e se debruça a face cruel da justiça feudal.
Tanto não foi em vão o martírio dos camponeses alemães que afinal levou a abolir o dízimo eclesiástico, a Justiça passou a ser local, instituiu-se a liberdade religiosa, indo cada cristão para a sua Igreja, sem o risco de ser queimado vivo.
VI
Sabemos que o camponês é, nas condições atuais em que vive, um místico. Atentos a essa realidade, só tocamos no problema religioso para assinalar que o cristianismo, em sua essência, não se confunde com a pregação de certos bispos e padres comprometidos e deformados pela sociedade capitalista. Há bispos e há bispos. Há padres e há padres.
Temos tido, no contato permanente e prolongado com os camponeses, muitos exemplos de superação, por parte deles, do preconceito religioso, amplamente utilizado pelo capitalismo, como já o fora pelo feudalismo, para intimidá-los e trazê-los manietados a terra como escravos.
Ainda um dia desses, numa concentração de camponeses, em Santa Rita, na Paraíba, ao mostrar a contradição existente na frase "aquele que mais sofre aqui na terra mais glorias terá no céu", de que tanto abusa a reação quando fala aos pobres, ouvimos este aparte de um dos assistentes, que se declarou católico: "Doutor, eu não quero ir para esse céu de barriga vazia".
0 ex-presidente do México, general Lázaro Cãrdenas, o grande líder anti-imperialista, em resposta fulminante a um jornalista estrangeiro que lhe perguntara se o acentuado espírito religioso do camponês mexicano não o incompatibilizaria com Fidel Castro, marxista, principalmente depois que a Igreja mexicana passara a hostilizá-lo, disse simplesmente: "Mas a Igreja não distribuiu terras..."
Esses e outros exemplos mostram que o fator econômico é preponderante, refletindo também o desprestigio dos elementos do clero que se aliam ao latifúndio.
Não vemos, aliás, nem nas Escrituras, nem na lição de Cristo e dos grandes santos e doutores da Igreja, algo que justifique essa aliança.
Nesta hora em que o Papa João XXIII convoca a cristandade para o Concílio Ecumênico, já que ele é de origem camponesa e dirige a Igreja no século da libertação dos humildes, não seria desrespeitoso sugerir a Sua Santidade que esse Concílio Ecumênico também se fizesse Concílio Econômico, capaz de aprovar, entre outras, a seguinte resolução: Todas as terras dá Igreja passarão a pertencer aos camponeses, tendo em vista o princípio bíblico e cristão, socialista e revolucionário, segundo o qual a terra deve ser daquele que a trabalha, com suas próprias mãos e a rega com o suor de seu rosto e não com o suor do rosto alheio.
Essa resolução daria â Igreja plena autoridade moral para convocar os fiéis à luta pela reforma agrária radical. Há centenas de bispos e padres que exultariam de felicidade tendo esse decreto para defender nos púlpitos e aplicar na prática. Conhecemos muitos deles, dispostos a dar a vida para servir aos pobres. Um dia os seus nomes serão escritos nas páginas da história do povo brasileiro, como a do povo tcheco conserva o nome de João Huss.
VII
Desde a Reforma, com a tradução da Bíblia até os nossos dias, muitas Ligas Camponesas nasceram pelo mundo. Não iremos, de país em país, acompanhar os movimentos camponeses, que sempre tiveram no latifúndio e na exploração feudal e escravista as suas causas. Falaremos apenas de passagem sobre a Liga Camponesa dos Estados Unidos da América, já que esse país tanto se preocupa com as suas congêneres do Brasil, buscando atualmente, por todos os meios e modos, dar-lhes combate, sobretudo depois que Fidel Castro, apoiando-se no campesinato e no proletariado urbano, consolidou a revolução de Cuba, com a derrota consequente do imperialismo e do latifúndio.
A 8 de março de 1844 realizou-se em Croton Hall, New York, uma reunião de que participaram camponeses. O primeiro orador, Theodore A. Devyr, redator do "Willamsbourgh Democratic", falou sobre a miséria nos campos e nas cidades operárias dos Estados Unidos para onde acorriam os camponeses expulsos da terra. Sugeriu, então, que fosse criada uma sociedade denominada Liga Camponesa.
A segunda reunião teve lugar no dia 20 do mesmo mês, surgindo, naquela ocasião, o jornal da Liga, "The New America". Um ano depois, ou mais precisamente, em outubro de 1845, esse jornal publicava um artigo com um "plano para reintegrar o povo do Estado de New York no seu direito a terra". Desse plano emanam dois princípios básicos: 1) Ninguém, para o futuro, poderá, em caso algum, possuir no Estado de New York mais de 160 jeiras de terra; 2) ninguém poderá, para o futuro, sob pretexto algum, possuir, numa cidade ou numa vila, mais de uma fazenda.
Eis o comentário de António Pedro de Figueiredo, mulato pernambucano, filho de Igaraçu, o Cousin Fusco brasileiro, implacável inimigo do latifúndio, entusiasta da reforma agrária, socialista convicto que acompanhava de perto as revoltes camponesas da Irlanda, Polónia, Hungria, França e Alemanha:
"As ideias que exaltam os camponeses da América fermentam também na velha Europa. Por toda a parte a miséria atormenta as classes laboriosas, causa-lhes insônias, impele-as ao ódio, as faz sonhar com desordens e revoluções. Na Holanda, no País de Gales, na Escócia, na Galícia, até em França, o barômetro político marca tempestade, as nuvens estão carregadas de eletricidade, e aqui e ali fuzilam sinistros relâmpagos que anunciam o temporal".
Vale a pena conhecer as ideias de António Pedro de Figueiredo sobre o problema da terra. Ainda são atuais para os nossos dias. Outro historiador, ainda jovem e da melhor estirpe, Amaro Quintas, que leciona no "Colégio Pernambuco", do Recife, já traçou o seu perfil vigoroso e fez de sua obra uma síntese perfeita. Convém igualmente, conhecer o perfil e a síntese.
VIII
No Brasil, há muitos anos tiveram início as organizações camponesas. A maior parte das tentativas foi orientada no sentido de constituir sindicatos rurais. Houve bom impulso, no início, mas não chegaram a vingar.
Muitos não resistiram ã pressão do poder econômico e desapareceram. Em Pernambuco, eles nasceram em Escada, em Goiana, em Pau D’Alho e outras cidades. Milhares de trabalhadores atenderam ao seu chamamento. A reação não se fez esperar. Caiu de chofre sobre os camponeses. Os sindicatos não conseguiram registro nem carta patente, não obstante as promessas de Vargas e de todos os Ministros de Trabalho das últimas décadas. Por fim, arrefeceu-se o ânimo dos trabalhadores e os sindicatos agrícolas morreram quase ao nascer.
IX
Em 1955, surge a "Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco", mais tarde chamada de "Liga Camponesa da Galileia". Essa iniciativa coube aos próprios camponeses do "Engenho Galileia", município de Vitória de Santo Antão, não muito longe do Recife. Queremos deixar bem claro, para esclarecer uma velha dúvida, que não interferimos sequer na fundação dessa sociedade, a Liga-mãe ou inspiradora de dezenas e dezenas de outras que, hoje, se espalham pelo Nordeste e várias regiões do País. Sendo uma sociedade civil beneficente, de auxílio mútuo, seu objetivo era fundar uma escola primária e formar um fundo para adquirir caixõezinhos de madeira destinados às crianças que, naquela região, morrem em proporção assustadora. 0 estatuto da sociedade fala de outros objetivos mais remotos, como aquisição de sementes, inseticidas, instrumentos agrícolas, obtenção de auxílio governamental, de assistência técnica. No "Engenho Galileia" havia, como ainda hoje, 110 famílias camponesas, totalizando, quase mil pessoas. As autoridades negavam-lhes o direito de ter uma professora, e o dono do latifúndio, um absenteísta, apesar de ter filhos diplomados, graças ao foro arrancado anualmente daquela pobre gente, também não cumpria o artigo da Constituição Federal que obriga todo estabelecimento agrícola com mais de 100 trabalhadores a manter escola gratuita para eles e os filhos. Na sua humildade, os camponeses da Galileia, depois de constituírem a diretoria da sociedade, com Presidente, Vice-Presidente, Tesoureiro e outros cargos, convidaram o próprio senhor de engenho para figurar como Presidente de Honra. Houve posse solene, saindo o dono da terra satisfeito porque era o único da região a receber essa homenagem dos foreiros explorados.
Advertido, pouco depois, por outros latifundiários, de que acabara de instalar o comunismo em seus domínios, tomou imediatas providências para impedir o funcionamento da escola. Não quis mais ser Presidente de Honra da sociedade. Foi além, exigindo a sua extinção. Os camponeses resistiram. Ele os ameaçou de despejo. Os camponeses se dividiram. Uma parte não se intimidou. Era a maioria, a essa altura liderada pelo ex-administrador da "Galileia" José Francisco de Souza, o velho "Zezê", como é conhecido de todo o País, um camponês que tem hoje perto de 70 anos de idade, mais de 40 morando naquelas terras. Sereno, honesto, respeitado pela bondade e espírito de tolerância, resistiu a todas as ameaças e violências desde então praticadas contra ele e seus liderados, sendo, por isso, conduzido, várias vezes, a presidência efetiva da Liga, de que é o chefe pela eleição unânime dos camponeses de Pernambuco.
Começaram, sem tardar, as intimações, as chamadas à Delegacia de Polícia, a presença do Promotor, do Prefeito, do Juiz. Procuraram isolar os mais responsáveis, como Manoel Gonçalves, João Vergílio, José Braz de Oliveira, entre dezenas de outros. 0 cerco apertava-se, dia após dia. Os camponeses buscam a ajuda de um advogado. Vão ter a nossa residência, informados de que, há muitos anos, vínhamos defendendo as suas causas. Aceitamos o patrocínio dessa causa. Fomos a "Galileia", onde uma grande maioria deles, com suas mulheres e filhos, nos receberam sob pétalas de rosas e espocar de foguetes. Ali, ao cair de uma tarde de domingo, em frente a casa do velho "Zezê", onde foi posta a placa da primeira Liga Camponesa, casa famosa, que tem sido visitada por jornalistas do mundo inteiro, deputados, prefeitos, governadores, estudantes, líderes sindicais e até o irmão do Presidente Kennedy, iniciamos a campanha que haveria de se tornar, dentro de alguns anos, conhecida em todo o País e respeitada pela adesão sempre crescente das massas camponesas.
X
Depois de passarmos mais de dez anos mantendo contatos isolados com camponeses, como simples advogado, no recinto fechado dos pretórios, diante de juízes bitolados pelo Código Civil, era aquela, a primeira vez que nos víamos em frente a um grupo de camponeses, debatendo com eles a melhor forma de lutar pela sua permanência na terra, contra o feudalismo que os sufocava. Acabávamos de receber um mandato de deputado à Assembleia Legislativa de Pernambuco. Dispúnhamos de duas tribunas - a judiciaria e a política. E de um convívio de mais de trinta anos, com aquela massa esmagada pelo latifúndio, como a cana de açúcar pela moenda. Sensível ao seu sofrimento, tocado pelos ideais socialistas, vendo na estrutura capitalista e latifundiária a fonte de todos os males e injustiças contra os humildes, fácil foi dizer aquele primeiro núcleo de camponeses que a liberdade deles estava em suas próprias mãos. Eles eram como um punhado de areia que, jogada, se desfazia no ar. A Liga seria o cimento capaz de unir essa areia e transformá-la em sólido bloco. Imediatamente demos início à doutrinação daquela massa, usando uma linguagem simples, acessível, valendo-nos de símbolos, imagens, comparações, parábolas, para vencer o atraso de uns e a desconfiança de outros, de modo a acender na consciência de todos uma luz que espantasse o medo. Lutávamos em três frentes: no campo, na Justiça e na Assembleia. No campo, mantendo contato direto com os camponeses, escrevendo boletins, como o "Guia do Camponês" o "ABC do Camponês" a "Cartilha do Camponês" a "Carta de Alforria do Camponês". Na Justiça, promovendo ou contestando ações que se multiplicavam rapidamente com o alastramento das Ligas por outros municípios do Estado. Na Assembleia, fazendo denúncias e protestos contra as violências, as arbitrariedades, as prisões e os assassinatos impunes dos camponeses que se destacavam pela coragem e resistência contra o capanga e a polícia.
XI
Verdadeira batalha judiciaria foi travada entre os camponeses da "Galileia" e os proprietários. Durou anos. Esteve no noticiário da imprensa. Deu motivo a uma série de artigos escritos com sensibilidade e coragem pelo jornalista António Callado, que permanece como uma das figuras mais queridas dos camponeses da "Galileia". É que o camponês tem a gratidão como a primeira das virtudes. Habituado ao maltrato, nunca esquese um favor. Essa batalha terminou com a vitória dos camponeses, não junto aos Tribunais, porém na Assembleia Legislativa, a qual votou a desapropriação da "Galileia", mediante projeto-de-lei de autoria do deputado socialista, Carlos Luiz de Andrade. Foi uma peleja cheia de lances inesquecíveis. Os camponeses das Ligas mais atuantes ("Galileia", "Limão", "Espera", "Cova da Onça", "Miroeira") desceram sobre a cidade do Recife. Eram três mil. Concentraram-se desde o amanhecer em torno da Assembleia Legislativa. A batalha durou todo o dia e entrou pela noite. Houve passeata até o Palácio do Governo. O governador desceu as escadarias para falar aos camponeses. Os deputados se revezavam na tribuna, aplaudidos quando defendiam o projeto e vaiados, se combatiam. 0 Presidente da Assembleia, deputado Antônio Neves, teve um comportamento digno da gratidão dos camponeses. Convocou sessões extraordinárias para que a lei fosse definitivamente aprovada naquele dia. Pouco antes da meia-noite, a batalha estava ganha pelos camponeses.
XII
Durou pouco a alegria dos galileus. Não tardou que o mesmo governo que sancionara a lei incorporasse as terras da "Galileia" a uma "Companhia de Revenda e Colonização", criada especialmente para combater as Ligas, ao invés de entregá-las aos camponeses, dispostos a explorá-las por meio de uma cooperativa.
A batalha judiciária reiniciou-se. Os advogados da "Companhia de Revenda e Colonização", bem remunerados com o dinheiro dos latifundiários, lutam, agora, para esmagar o camponês.
XIII
Em novembro do mesmo ano de 1955, ano do nascimento das Ligas, um grupo de camponeses do município de Goiana (Pernambuco), repeliu a bala a polícia que os agredira, fazendo várias vítimas. Esse episódio teve como herói o velho João Tomás. Em companhia dos deputados Paulo Viana e Clodomir Morais, fomos ao "Engenho Samambaia", onde se verificou a refrega. Era o recrudescimento da reação contra o despertar das massas camponesas. Não se sabe o destino que tomou o velho João Tomás, já com dois outros irmãos assassinados por capangas e policiais nas usinas "Santa Teresa" e "Maravilha". Resta desse episódio uma página antológica do então deputado federal pernambucano Amaury Pedrosa.
XIV
Passamos, desde então, a dar tempo integral a centenas de camponeses que nos procuravam em nossa residência e na Assembleia. A imprensa reacionária passou a apelidar a "Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco" (SAPPP) de Liga Camponesa, com o intuito de queimá-la, vinculando-a aquelas extintas organizações fundadas em 1945. O apelido, no entanto, pegou como visgo. Na Assembleia Legislativa, a deputada Maria Elisa Viegas de Medeiros, distinta educadora, que exerceu com muita dignidade o seu mandato, nos solicitava que substituíssemos, em nossos discursos, o nome "camponês" pelo "rurícola" para não irritar tanto os nossos colegas latifundiários. Foi, talvez, a única oportunidade em que não pudemos ser gentis a uma dama. Preferíamos o nome "camponês" porque deriva de "campo"; era simples e tinha sentido radical. Hoje, a palavra que naquele tempo ofendia os usineiros e grandes senhores de terra de Pernambuco já é pronunciada por eles mesmos e escutada, sem espanto e com agrado do povo, na cátedra, no púlpito, no pretório, no rádio, na conferência e no comício. Era o sinal do radicalismo de que já se achava impregnado o campesinato. Esse radicalismo se expressava constantemente nas lutas corporais com a polícia e o capanga. Diante da falta de segurança, pois nem os advogados escapavam à violência, o mesmo ocorrendo conosco, apesar das imunidades parlamentares, os camponeses da "Galileia" organizaram sua força de resistência passiva.
Duas palmeiras, ladeando a estrada, denunciavam a divisa do "Engenho Galileia". Ao passar o visitante entre elas, espocavam foguetes dos casebres mais próximos, de modo que, ao chegar ao centro do Engenho ou a sede da Liga, ele já estava sob a mira dos camponeses. Essa prática tem sido observada por outras ligas. Também não foi invenção nossa.
XV
Por último, a imprensa, que gastara muito papel com ataques a essa organização, destacando manchetes na página policial, silenciou, evidenciando, assim, o amadurecimento da Liga. Esta criara raízes profundas. Não mais adiantavam os ataques. Nem a campanha de imprensa, nem os atos do terrorismo puderam isolar os camponeses da "Galileia", mas serviram, ao contrário, para despertar a curiosidade e o interesse de outros camponeses. A "Galileia" tornou-se, assim, uma Meca para eles. A imprensa reacionária voltaria a falar dela, porém, não mais na página policial, e sim na de política local, nacional e, não raro, internacional.
A experiência tem demonstrado que o choque com as forças do latifúndio ê que divulga, sensibiliza, politiza, dá raízes e força às organizações camponesas. Foram, sem dúvida, a resistência e as atitudes radicais que projetaram as Ligas Camponesas, e muitos dos seus líderes, fora das fronteiras de Pernambuco. Não tardaram a surgir novos grupos de camponeses, organizados e filiados à "Galileia". Tomaram o nome de Delegacias da SAPPP, apelidadas também de Ligas, tais como as da Mirueira, entre Olinda e Paulista, na qual se destacou o camponês Manoelzinho, a de Jaboatão e de "Cova da Onça", de onde surgiram Joaquim Camilo, José Evangelista, José Caçador, a de Bom Jardim, do Limoeiro, da Água Preta, do "Engenho Limão", Cabo Pesqueira, Bezerros, Buíque, Barra de Guabiraba, Ponto dos Carvalhos, Araçoiaba, Totó, entre dezenas de outras.
Vários advogados vieram dar sua corajosa ajuda as Ligas, destacando-se, entre eles, Djaci Magalhães, Jonas de Souza, Costa Pereira, Fagundes de Menezes, Mário Cavalcanti, apesar das ameaças de morte e das agressões físicas e morais. Foi a fase mais dura da luta, quando tombaram os primeiros camponeses varados pelas balas assassinas dos capangas, aliciados pelo latifúndio, sob a cobertura ostensiva do aparelho policial do Estado. É certo que alguns capangas também tombaram e três ou quatro senhores de terras. Nunca porem os camponeses se excederam. Todos puderam sempre invocar a legítima defesa da vida e do património, edificado com imenso sacrifício pelas suas rudes mãos.
Foi igualmente valiosa a ajuda que muitas mulheres camponesas deram durante os dias mais duros e desiguais da peleja. Algumas delas chegaram a ameaçar os maridos de abandono, se não permanecessem fieis às Ligas e solidários com os companheiros perseguidos. O papel da mulher camponesa na formação e no avanço das Ligas merece registro especial.
XVI
Como já referimos, a imprensa da classe dominante, ao surgir uma Liga, inicia contra ela um ataque violento e histérico, como se estivesse em frente a uma corja de bandidos e assaltantes. Ê obrigatório, nessa fase, para o redator policial, o registro com destaque de fatos deturpados, contendo insultos e calúnias contra os camponeses, sua Liga e seus dirigentes. Todos são chamados de comunistas, carbonários, terroristas e agitadores.
Ataques dessa espécie duram semanas e meses inteiros. Quem se dispuser, no futuro, a percorrer a coleção dos jornais da época, terá farto material para a comprovação do que informamos. Isto se explica porque a imprensa reflete, como é natural neste regime, a violência do latifúndio.
XVII
É nessa fase que surgem os primeiros mártires da luta pela reforma agrária. Crimes são praticados, diariamente, pelos latifundiários, cuja polícia privada age sob as vistas complacentes e com a própria conivência da polícia do governo. A ordem, a lei, a paz, são invocadas, como se o latifúndio não fosse a subversão da ordem, como se o capanga não fosse a negação da lei, como se o silêncio imposto pelo terror fosse a paz.
Tais crimes chegam a ser hediondos. Derrubam os casebres e arrancam, de trator, as fruteiras dos camponeses, rebelados contra o aumento extorsivo do foro, o "cambão", o "vale do barracão", o "capanga", o salário de fome. Arrastam-nos de jipe, deixando-os em carne viva. Amarram-nos sobre o caminhão como se faz com o gado e passeiam com eles até pela cidade. Com um ferro em brasa, marcam-lhes o peito e as nádegas. Um é posto lambuzado de mel sobre um formigueiro. Outro ê metido numa cuba cheia d'água, permanecendo noite e dia a pão seco, servindo-se daquela mesma água contaminada pela urina e pelas fezes, onde fica mergulhado até a boca. Um terceiro é caçado como uma raposa e morto a tiros de revólver e de rifle. E quando a família põe uma cruz tosca de madeira, como é de costume, no lugar onde tombara, a fúria do latifúndio se abate sobre a cruz, que é desfeita em pedaços. Tem havido até camponeses mutilados em presença de outros, sendo os pedaços de sua carne oferecidos aos cães para servir de exemplo. Existe o caso de um desgraçado que teve os testículos presos a uma gaveta no interior do seu próprio mocambo de capim, a que atearam fogo em seguida. Em São Paulo, um camponês teve os dois braços amputados pelo latifundiário enfurecido. Na Bahia, uma aldeia com mais de duas mil pessoas é incendiada por um grupo de jagunços, a mando de um senhor de terras, com a participação ostensiva de um juiz togado e no pleno exercício do cargo.
Todas essas cenas selvagens se passam agora e aqui no Brasil. Não são da época da escravidão. Fulgêncio Batista, o cruel ditador cubano, responsável pelo assassinato de vinte e dois mil patrícios e pela emasculação de seiscentos jovens, tem discípulo em toda a América Latina. Isso porque, onde há o latifúndio, há o crime. Não falta quem invoque a Deus e a civilização "cristã" para explicar e até justificar esses delitos.
A imprensa estipendiada pela reação silencia sobre tudo isso. Mas a Liga nasce, como uma flor, por cima dessa podridão.
2 - OS MEIOS DE DIFUSÃO DAS LIGAS
I
O trabalho de proselitismo da massa camponesa é feito com paciência e obstinação. Os caminhos são muitos. Da conversa de "pé de pau", na casa de farinha, no meio do caminho, na feira, na missa, no terço, no enterro, na briga-de-galo, no eito, na palha-da-cana, ao boletim escrito em linguagem singela em tom evangélico, como o "Guia" o "ABC", o "Recado", a "Cartilha", a "Carta de Alforria", tudo o que a experiência indica e a imaginação sugere, é usado como meio para despertar, atrair e organizar os camponeses em Ligas.
II
Há que se atentar para o elevado índice de analfabetismo do campesinato brasileiro. No Nordeste, chega a alcançar, em certas áreas, 97%. No município em que nascemos, Bom Jardim, distante apenas 120 quilómetros do Recife, esse índice, incluindo a cidade, é de 90%.
Em análise meticulosa, verificou-se que a maioria dos camponeses daquela região, em suas conversas diárias, usa de setecentos a mil e seiscentos vocábulos, tão grande é o estado de indigência cultural a que chegaram. A miséria não só os atinge na economia, como também no idioma. O latifúndio impede que eles falem. Proíbe que pensem. Assim se explica porque o nordestino busca a linguagem comparativa, na qual se manifesta, por sinal, notável riqueza e admiráveis criações poéticas. Exemplifiquemos. Se quer dizer que um companheiro pertence à Liga, recorre a essas comparações: "Está dentro como badalo de sino, como talo de macaxeira ou como carvão de lápis". Se ainda não ingressou no movimento, então diz: "Está fora como fita de chapéu, bandeira de "mata mosquito" ou cinturão de soldado". Para caracterizar uma região seca fala assim: "Ali, de verde só tem pena de papagaio". Ou então: "A seca, este ano, é tão grande que até os "pés-de-pau" vão atrás dos cachorros". Quando uma coisa lhe parece justa diz: "É como beiço-de-bode ou dedo-na-venta".
III
Como justificar que uma comunidade de analfabetos tenha podido conservar durante séculos seu folclore, seus cantos, narrativas, histórias, suas poesias e epopeias? Foram o violeiro, o cantador e o folhetinista os veículos que transmitiram de geração em geração aquele rico acervo que reclama muitos Câmara Cascudo e Leonardo Mota para que não se perca, nem se deteriore, em contato com o linguajar sofisticado de uma sociedade em decadência.
O violeiro é figura inseparável das coisas típicas que perfazem o Nordeste. É poeta e músico. Sua poesia é instantânea, improvisada, espontânea. Na comunidade camponesa figura como intelectual. E não raro surgem dentre eles expoentes da cultura nacional. Violeiros foram, ou são, João Martins de Atayde, Severino Pinto, Inácio da Catingueira, o cego Aderaldo, os irmãos Batista de São José do Egito e poetas do porte de Zé da Luz e Rogaciano Leite.
Em toda feira ou festa, no interior do Nordeste, o violeiro ou o cantador constitui a maior atração. O violeiro canta suas criações e a poesia dos outros. O cantador, em regra, é o profissional que vende folhetos nas feiras, nas festas e outros ajuntamentos de pessoas. Para vendê-los, recita-os em voz alta, e o faz cantando. 0 folhetinista é o profissional que escreve o folheto.
Da Bahia ao Ceara funcionam cerca de dezessete editoras de folhetos. São pequenas tipografias que se dedicam, algumas em caráter exclusivo, a publicar opúsculos de poesia popular. Concentram-se em Salvador e Feira de Santana (Bahia); Maceió (Alagoas); Recife, Caruaru e Limoeiro (Pernambuco); João Pessoa e Campina Grande (Paraíba); Natal e Mossoró (Rio Grande do Norte); Fortaleza e Juazeiro do Norte (Ceará). Seu mais importante editor foi João Martins de Atayde, em Limoeiro. É curioso observar que a indústria de livros no Brasil só chega até Salvador, onde existe a Editora Progresso. Daí por diante, conforme já assinalamos, o livro cede o passo ao folheto. Quando, no Norte ou no Nordeste, uma ou outra tipografia edita um livro, é porque alguém custeia a edição; nunca é a empresa. Isso se deve ao elevado índice de analfabetismo que tanto nos envergonha.
IV
Em 1957, quando visitamos a União Soviética, integrando uma Comissão Econômico-Parlamentar, tomamos conhecimento de que ali, já fazia dez anos, fora alfabetizado o último camponês. Ficávamos "cheio-de-dedos", ao ter de referir aos espantosos índices do analfabetismo em nossa Pátria. Cuba, a de Fidel Castro, em um ano apenas, resolveu esse problema, embora quase metade de sua população anteriormente não soubesse ler.
V
Mas voltemos ao Nordeste. O único setor que se sustenta edificando trabalhos é formado por pequenas tipografias onde há mais artesanato do que indústria. Limitam-se a uma ou duas pequenas máquinas de impressão vertical, de pedal ou mesmo manuais. Os folhetos que editam são de oito a quarenta páginas. Quando excedem de oito páginas, o camponês chama-os de "romance". É certo, no entanto, que o movimento editorial de todas essas pobres tipografias supera, em número de "volumes", o movimento editorial por edição, de cinquenta e até cera mil exemplares em um ano.
Em todo o Nordeste e também nas regiões para onde emigram os nordestinos, como o Amazonas, São Paulo, Norte do Paraná, Mato Grosso, Minas e Bahia, são vendidos esses folhetos. Segundo pesquisa feita há alguns anos, junto às editoras que controlam os vendedores e cantadores, mais de quarenta mil pessoas no País vivem de produzir e de vender folhetos, incluindo os seus familiares. Muito mais barato do que o jornal ou a revista, é de fácil aquisição no ambiente camponês. Essa pitoresca literatura poética, que muito agrada ao homem do campo, é o que há de mais autêntico e mais divulgado no folclore das populações rurais do Nordeste. Predominam a trova, a loa, a sextilha, a décima, o "martelo-a-beira-mar", o "martelo-agalopado", o coco. Quanto à forma e origem, admite-se que essa poesia seja ainda reminiscência dos cancioneiros medievais, que se tornaram célebres com a "chanson de geste" e a "chanson de Roland". A música com que se cantam os versos são de acentuada pobreza, com pouca variação melódica, não saindo das linhas centrais do pentagrama. Contêm na forma a monotonia do cantochão ou a melodia dos salmos, que remonta a séculos.
Quem nunca escutou nas noites enluaradas do Nordeste, onde a terra é seca e a alma do homem permanece banhada pela poesia, seus violeiros, poetas e cantadores, quem não foi capaz de se impregnar da força e da pureza que emanam da viola e da voz desses, não pode compreender que é ali, naquela região, que se encontram fincadas para sempre as raízes da nacionalidade brasileira e, muito menos, atinar porque é dali que brota, sobre a rocha ou o cerrado de cactos, toda a energia humana, na figura desengonçada do "pau-de-arara", que a Pátria sempre convoca nas grandes horas, para consolidar sua unidade ou vencer a peleja contra os invasores. Esse espírito foi forjado há 300 anos, quando o holandês invadiu e tentou dominar aquela região.
Naquele vasto mundo de coisas do Nordeste, tão malsinado, tão desconhecido, é onde o camponês veicula e perpetua as suas tradições, seus costumes, sua arte poética, música e seus cantos, seus temas e seus assuntos.
VI
Buscando, naqueles primeiros anos, o meio mais eficaz de difundir a ideia das Ligas entre a massa camponesa, atentamos para a força de divulgação e de participação da poesia popular. Percebemos desde logo, pela rápida análise dos seus diferentes assuntos, que, embora aquela literatura não encerrasse conteúdo político, continha no entanto acentuado caráter ideológico. Na verdade, quase todos os temas explorados se baseiam na luta do fraco contra o forte, do pobre contra o rico, do camponês contra o latifundiário. Canta-se pelas feiras a notícia do trabalhador pobre que matou o patrão, o latifundiário, porque lhe deflorou a noiva querida.
O poeta camponês, para despistar, transplanta o cenário da peleja. A "Luta de Manoelão do Paraná com o Seringueiro do Norte" e uma história que se passa no Nordeste, mas o poeta a coloca noutra região. Dentro desse gênero os heróis mais decantados são: António Silvino, Corisco e Lampião. Para o camponês nordestino, esses bandoleiros figuram como heróis de façanhas que ele tem vontade de imitar. Todos eles deixaram uma tradição que é grata ao camponês - tomar do rico para dar ao pobre. Antônio Silvino que, na primeira década deste século, deu muito que fazer às polícias de Pernambuco e Paraíba, goza ainda hoje de boa fama entre os humildes. Respeitava a honra das mulheres e nunca tomava nada do pobre. Lampião, por sua vez, quando conquistava uma cidade, prendia o Delegado, o Prefeito, o Coletor de Impostos, libertava os presos, abolia as dívidas, dividia com os miseráveis o dinheiro da Coletoria e da Prefeitura e dava esmolas às instituições de caridade.
Certa vez, tendo invadido um povoado, Lampião entrou em uma bodega e fincou um punhal sobre o balcão. O bodegueiro que estava de costas, arrumando a prateleira, se voltou assombrado e, refazendo-se do susto, exclamou. "Credo em cruz. Capitão! Pensei que fosse o cobrador de imposto!"
VII
Subjugado como vive, sem conhecer a face pura da justiça, o camponês sonha, como é natural, com a mudança radical na ordem das coisas. Não tendo para quem apelar, alimenta o sonho de liberdade com a imagem daquelas figuras de bandoleiros, produtos da injustiça social. Vivem no seu coração e na sua poesia. Como são místicos, os camponeses entrelaçam a vida desses heróis rudes das caatingas com a figura do Padre Cícero do Juazeiro, de quem todos conservam, junto às imagens dos Santos colados às paredes de taipa dos casebres, o clássico retrato com a bengala e o chapéu.
A "Chegada de Lampião no Inferno" é um folheto cuja tiragem anual alcança mais de duzentos mil exemplares no Nordeste, apesar de editado há mais de vinte anos. É exemplo típico de literatura e caráter ideológico. O inferno que o poeta camponês descreve tem vigia, depósito de algodão, casa de "ferragens", vidraça, oitão, cerca e portão. Não é outra coisa senão a fazenda do latifundiário. Lampião, no fundo, representa o próprio camponês que deseja conquistar tudo aquilo. O vigia barra-lhe a entrada e comunica a Satanás, a quem chama de Vossa Senhoria, como faz com o latifundiário, a chegada do intruso. Mas Lampião finda vitorioso:
"Houve grande prejuízo
No inferno, nesse dia;
Queimou-se todo o dinheiro Que Satanás possuía.
Queimou-se o livro de ponto e mais de seiscentos contos Somente em mercadoria".
"A Eleição de Lúcifer e a Posse de Lampião" é outro folheto em que se evidencia a revolta dos camponeses contra as eleições, explicável desde que a quase totalidade dos camponeses não vota porque é constituída de analfabetos. E os poucos que vão as urnas, coagidos ou enganados, nunca se beneficiam com o resultado do pleito. Quem tira todo o proveito é sempre o latifundiário. Um dia Lampião discorda do resultado da eleição havida no Inferno e, usando da violência, mata muitos "cães" (diabos), toma posse do governo e, "Avisa ao povo pernambucano ainda que não haja inverno que vai melhorar o inferno daqui para o fim do ano."
A ideia de Inferno o camponês sempre associa a de latifúndio. Quando, semanas após o assassinato de seu marido, o líder camponês de Sapé, João Pedro Teixeira, esteve no Rio, a viúva, Elizabete Teixeira, para participar das homenagens que os universitários prestaram, na UNE, a memória daquele mártir da reforma agrária, um jornalista indagou-lhe:
− A senhora acredita em Deus?
− Sim, respondeu Elizabete.
− E no Diabo?
− O Diabo é o latifúndio - foi a resposta pronta da brava camponesa.
Em resumo, o violeiro, o folhetinista e o cantador são notáveis elementos culturais graças a sua vinculação aos fatos, já que vivem em contato permanente com a massa camponesa.
Em face disso, não hesitamos em convocá-los para o trabalho das Ligas Camponesas. Violeiros, cantadores e folhetinistas passaram a colaborar com as Ligas de maneira eficiente. Com esse veículo não só era mais fácil o trabalho do proselitismo junto ao campesinato, como a penetração da notícia sobre as Ligas nas fazendas onde o agitador político não podia entrar, dada a vigilância do latifundiário.
Com a ajuda desses profissionais, saímos do grande cerco da imprensa, vencemos o silêncio, quebramos o isolamento.
VIII
Nos anos que se seguiram, buscamos alargar nosso campo de ação. Somente na cidade do Recife, durante três meses, realizamos oitenta atos públicos, a céu aberto, mostrando a correlação existente entre o latifúndio, com a monocultura da cana, e a espantosa proliferação dos mocambos sobre os alagados daquela metrópole regional. Somos gratos ao "Semanário',' a ''Novos Rumos", a "Terra Livre", ao "Binômio", a "Última Hora", de São Paulo, ao "Correio da Manhã", de António Calado, ao "Jornal do Brasil", de Heráclio Sales e outros jornais que deram acolhida às cartas e boletins que, de cinco anos para cá, temos escrito, transmitindo a experiência das Ligas Camponesas que de Pernambuco se alastraram para outros Estados.
IX
A vitória da Revolução Cubana trouxe ao movimento camponês do Nordeste notável reforço. Desde o momento em que Fidel Castro com os seus barbudos entrou em Havana, ao lado de Cienfuegos, Guevara, Almeida e Raul, libertando o seu povo do regime cruel de Batista, nunca mais as Ligas perderam de vista a gloriosa Pátria de José Marti.
Tendo sido a reforma agrária a espinha dorsal daquela Revolução, seu eixo, sua alma, os camponeses nordestinos imediatamente passaram a defendê-la nas demonstrações de massas, passeatas e comícios.
Nossa visita a Cuba, em abril de 1960, integrando a comitiva do ex-presidente Jânio Quadros, contribuiu para estreitar mais ainda os laços de solidariedade entre as Ligas Camponesas do Nordeste e aquele povo irmão.
Quando da invasão de Cuba pelos mercenários treinados em solo americano com armas, aviões e barcos fornecidos pelo "cristão" Kennedy, conforme ele próprio se viu obrigado a confessar, os camponeses das Ligas marcharam sobre a cidade do Recife e ali fizeram ruidosas demonstrações de protesto contra os Estados Unidos e de solidariedade a Cuba. Um imenso retrato de Fidel Castro pintado pelo artista revolucionário Abelardo da Hora, foi carregado pelos camponeses e estudantes até a Praça General Dantas Barreto, onde são feitas as grandes concentrações populares, e ali, sob chuva torrencial e a luz de centenas de archotes, o Inimigo Número Um da humanidade – o imperialismo americano – foi condenado pela voz dos humildes.
Uma semana depois, numerosa delegação de camponeses, operários e estudantes viajava para Cuba a fim de assistir, em Havana, as estrondosas comemorações do Dia do Trabalho. Pela primeira vez, descia no aeroporto dos Guararapes, no Recife, um avião cubano para receber os convidados nordestinos a visitar a Ilha liberta. Pouca gente sabe que, em represália, as companhias distribuidoras de gasolina (Esso, Texaco, Atlantic e Shell) se negaram a abastecer a aeronave. Foi preciso que os camponeses, operários e estudantes ameaçassem fazer ir pelos ares os depósitos de uma delas para que se efetuasse o abastecimento. Coube a Shell a tarefa de fornecer a essência, impondo o pagamento em dólares e a vista, o que foi feito.
Ao regressar ao Brasil, a maioria dos componentes daquela delegação sofreu perseguições, violências e prisões. Um deles, Pedro Fazendeiro, da Liga de Sapé, na Paraíba, foi emboscado por um capanga, sendo duas vezes baleado. Está aleijado de uma perna.
Durante a greve dos universitários de Pernambuco, em junho de 1961, a reação se voltou contra os camponeses. As Ligas foram duramente golpeadas em Pernambuco e na Paraíba. O General Cordeiro de Farias, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, esteve no Nordeste, secretamente, para comandar a represália contra estudantes, camponeses e operários. Preparou-se grosseira provocação com grandes "manchetes" nos jornais do País. Era um sintoma do golpe que se avizinhava. Tudo, porém, caiu no vazio. Como caiu o dispositivo militar fascista, por ocasião do episódio da renúncia de Jânio Quadros.
De lá para cã o Brasil deu largos passos. E as Ligas se multiplicaram pelo seu imenso território.
Nenhuma força será capaz de detê-las porque não se detém a marcha da História.
3 - O QUATRIÊNIO DO TERROR
Já que fizemos menção ao nome do general Cordeiro de Farias, temos algo a dizer sobre esse militar que em nada se parece com aquele outro general, também gaúcho, Osório, o Marques de Herval, glória do nosso Exército. Quando ele governou Pernambuco, entre 1955 e 1958, apoiava sem reservas a ação dos latifundiários, cujos delitos nunca foram apurados. Transformou Pernambuco num Estado fascista. Uma Espanha, de Franco. Um Portugal, de Salazar. Um Paraguai, de Stroessner. Deixaram sinistra fama como secretários de Segurança Pública desse governo, o coronel do Exército Braulio Guimarães e o seu sucessor, bacharel Álvaro Gonçalves da Costa Lima, este premiado com um cartório. Os operários, os camponeses e os estudantes jamais esquecerão seus algozes. O desrespeito às liberdades constitucionais foi o apanágio daquele Governo em que se registrou o maior número de prisões políticas: seis vezes mais do que a soma das prisões havidas em todo o resto do País. Somente no ano de 1956, de janeiro a novembro, registraram-se 630 prisões políticas de camponeses, operários estudantes, a maioria comunistas, socialistas, trabalhistas, ligados ao povo. Houve mortes por assassinato até dentro da Secretaria de Segurança Pública. O Recife ainda se lembra do "suicídio" de João Coto, atirado do pavimento superior da Delegacia Auxiliar. Foi debaixo desse clima de terror que as Ligas Camponesas se desenvolveram. Era tal a falta de garantias, naquele Governo, que, pela primeira vez, na história política de Pernambuco, a burguesia, a classe operária e o campesinato encontraram um denominador comum para lutar.
Com exceção dos eleitores do Governo e setores do latifúndio, quase ninguém tinha garantias. Havia prisões até de comerciantes e coação sobre os órgãos dirigentes da indústria e do comércio. O aumento dos impostos diretos e indiretos foi o toque de reunir de todos – burgueses, operários e camponeses - para a arrancada de que resultou a derrota política das forças comprometidas com aquele Governo. Daí o apoio das Ligas a candidatura Cid Sampaio que, entretanto, no poder se voltou contra elas e contra o povo, mancomunando-se com o General Cordeiro de Farias por ocasião da greve dos universitários pernambucanos em abril de 1961, e com o Carlos Lacerda, Governador da Guanabara, na crise político-militar de agosto do mesmo ano, quando Jânio Quadros abandonou a Presidência da República.
A reação fora tal que atingira o Poder Legislativo, como se verificou com o sequestro de que fomos vítimas, na ocasião em que nos reuníamos com os camponeses da Galileia, em sua sede, na cidade de Vitória de Santo Antão. Esse crime também ficou impune, apesar de apurado pela Comissão Judiciária de que foi Presidente o íntegro e saudoso Juiz de Direito de Jaboatão, Luís Reguiera Pinto de Souza, brutalmente assassinado dentro do próprio Palácio de Justiça, no Recife, pelo Promotor Anibal Varejão, correligionário exaltado daquele General e conhecido advogado de latifundiários.
4 – CONSTITUIÇÃO, LOCALIZAÇÃO E EXPANSÃO DAS LIGAS
As Ligas Camponesas, depois de se tornarem assunto diário da imprensa brasileira, pondo em relevo a questão da reforma agrária, deram motivo ao surgimento de inúmeras associações agrícolas que hoje se espalham por todo o território nacional com os nomes mais diversos.
Queremos registrar a destacada atuação que, antes do surgimento das Ligas, já vinha e vem prestando aos trabalhadores do campo a "União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB)" que tem a sua sede central na cidade de São Paulo e, como seu dirigente máximo, Lindolpho Silva, um devotado e incansável lutador.
A Liga Camponesa de Pernambuco, que inspirou a criação de todas as outras, ou lhes serviu de modelo, é uma organização de caráter regional com jurisdição para todo o Estado.
À medida que se desenvolvia, com a multiplicação das delegacias (Ligas) em numerosos municípios, distritos e fazendas, a experiência adquirida determinava, evidentemente, o aperfeiçoamento do seu trabalho.
Verificamos, logo, a dificuldade em aplicar às Ligas os mesmos processos revolucionários da organização da classe operária. Havia características de classe, peculiares, a serem respeitadas. Uma coisa é a classe operária, sem os meios de produção, sem vaidade, coletivista. Outra, e a classe camponesa, dispondo, como o artesanato, dos meios de produção, ou da posse da terra, susceptível à vaidade e tocada pelo individualismo.
Não é de feitio do camponês fazer crítica e autocrítica, fundamentais ao aperfeiçoamento dos métodos de trabalho. É preciso tratá-lo com a maior flexibilidade. Há que conquistar-lhe com paciência a confiança. Somente depois que adquire nível político avançado, isto é, quando assimila a ideologia da classe operária, é que se submete a crítica e à autocrítica.
Não se deve, portanto, transplantar, mecanicamente, determinados métodos de trabalho da classe operária, provados em sua eficiência, para o âmbito da organização camponesa, sem a prévia e devida educação política dos seus membros.
As Ligas, como organização, se caracterizam pela forma centralizada de atuação. Trata-se de uma associação, o nome pouco importa, que organiza delegacias em qualquer lugar onde haja camponeses.
A sede central deve ficar na capital do Estado ou na maior cidade da região onde se funde. Porque aí estão a classe operária, os estudantes, os intelectuais revolucionários, a pequena burguesia, uma Justiça mais avançada ou menos reacionária do que aquela que se deixa sufocar, numa cidadezinha do interior, sob o peso do latifúndio. Tendo jurisdição para todo o Estado, a organização pode fundar, como consta do estatuto, as suas delegacias ou núcleos em qualquer cidade, distrito, povoado, fazenda, serra ou córrego. Preferimos dar a cada núcleo o nome de Delegacia. É uma maneira de fazer o camponês perder o medo da outra Delegacia - a de polícia. Desse modo, o soldado de polícia tem a sua Delegacia, e o camponês tem a dele. Cada Delegacia possui diretoria própria, enquanto o estatuto abrange todas as Delegacias. Essa medida serve para dar homogeneidade à organização e liquidar o burocratismo que dificulta muito o trabalho das associações. É que se fossem organizadas com estatuto próprio para cada município, elas se tornariam estanques.
Com um estatuto funcionando para todo o Estado, torna-se fácil e rápida a criação e legalização das entidades municipais, distritais ou locais. Poupa-se tempo e dinheiro.
Para se fundar uma Delegacia ou Liga, basta reunir certo número de camponeses, trinta ou quarenta, submeter o estatuto geral a sua apreciação, e, uma vez todos de acordo, eleger a diretoria. Lavrada a ata é assinada pelos fundadores, se alfabetizados, ou a rogo, se analfabetos, basta o Conselho Deliberativo oficiar à Justiça, comunicando a existência legal da entidade. E pronto.
Com a fundação de cada Liga, o latifúndio se irrita. Mobiliza a autoridade policial, o prefeito, o juiz, o promotor, o capanga. Tem início a luta, que toma logo caráter político. Daí por diante, começa o processo de politização da massa camponesa com a assembleia geral, a passeata, a audiência na polícia ou na justiça, indo ao extremo da defesa de seus direitos até de armas na mão.
Na Liga não há campo para o carreirismo, porque Liga significa cadeia, vexame, perseguição, noite mal dormida, desassossego e até morte, quem aspira, portanto, à presidência da Liga, já sente, já percebe que, por cima dos sacrifícios a que fica exposto, existe o ideal de unir a sua classe para libertá-la da fome, da miséria e da injustiça.
Constituída a Liga sem a introdução do prefeito, do juiz ou de qualquer outra autoridade para lhe servir de cúpula ou de fator capaz de moderar o radicalismo do movimento, os camponeses fustigados dia e noite pelo inimigo da classe, o latifundiário e seus protetores, trabalham no sentido de arregimentar mais companheiros para a Liga a fim de fortalecê-la.
O latifundiário, a princípio, apela para a força, visando a derrotar o inimigo que se organiza. Comete violências, faz ameaça de morte, põe o gado no roçado, arranca a lavoura, derruba o casebre miserável, decreta o despejo sumário do camponês que assume a liderança do movimento. É, então, que se inicia a batalha judiciária. Aí, o advogado da Liga desempenha relevante papel. A ação proposta pelo camponês é, em regra, a de indenização por benfeitorias. Quem mais se interessa pela demanda é o próprio camponês. Ele quer ficar na terra ou obter o pagamento de suas benfeitorias. As audiências já não comparecem só. Leva outros companheiros. O camponês sabe que pode perder a causa ou ter uma vitória inexpressiva, mas se contenta em arrastar ao pretório o senhor de terras. É a sua vingança. No começo é assim. Depois, a luta recrudesce. E chega ao extremo dos choques pessoais, das vinditas. Aguça-se, então, a luta. Isso comprova que o latifúndio é a subversão, é a ilegalidade, é a desordem. E explode a Galileia. E explode Sapé. Para resistir ao despejo, à polícia, ao capanga, a Liga se reúne, mobiliza os camponeses, marcha para a cidade. É o protesto. É a demonstração de massa. Com o apoio dos espoliados da cidade. Do operário. Do estudante. Do intelectual revolucionário. Que foi a Cuba. Que leu Guevara. Que escutou Fidel Castro. Cria-se, assim, o caso local que cresce de proporção, rompe a fronteira e se derrama pelo mundo. É a projeção da Liga. É a sua consagração. Sensibilizante. Ganhando adeptos. Para a reforma agrária radical. Na Lei ou na marra. Com flores ou com sangue.
5 - OS FATORES DE SUCESSO DAS LIGAS
I
A soma de experiência adquirida nestes sete anos de trabalho junto as massas camponesas levam-nos a extrair algumas conclusões que não são definitivas, tendo em vista que o dogmatismo das fórmulas e dos preceitos não conduz a bons resultados.
Admitimos, todavia, a existência de um mínimo de fatores que possibilitam o êxito no trabalho de organização.
Em todos os debates e entrevistas que mantemos com o público, surge, vez por outra, essa indagação: Por que tem sido fácil organizar as massas camponesas e por que não o temos feito com os assalariados agrícolas, isto ê, os proletários do campo?
A resposta não é tão simples, já que obedece a um raciocínio, fruto do exame de vários fatores.
Partimos do princípio de que para organizar legalmente e pacificamente determinada classe são imprescindíveis três fatores: 1) o jurídico, 2) o financeiro, 3) o econômico. Por outras palavras, a classe a ser organizada, precisa: a) dispor na sociedade em que se situa de uma lei que proteja alguns dos seus direitos, b) possuir um mínimo de condições financeiras, que lhe permita conduzir, legalmente, a defesa dos seus direitos; c) finalmente, ter um mínimo de condições econômicas, que lhe permita oferecer resistência ao adversário.
Para melhor compreensão do assunto, façamos um paralelo entre o processo de organização dos assalariados agrícolas e o de organização dos camponeses.
Consideremos os três fatores acima mencionados relativamente a cada um dos casos.
II
Figuremos, desde logo, a posição dos assalariados agrícolas. A lei que possibilita a sua organização e a sua luta, portanto, o fator jurídico, é a Consolidação das Leis do Trabalho. É ela que disciplina o direito de organização dos operários e lhes oferece as condições para se defenderem ou resistirem contra os exploradores. No âmbito legal, é com base nas normas desse Código que os trabalhadores das cidades e dos campos têm acesso aos tribunais. Que diploma é esse? Resulta da revolução pacífica da classe operária brasileira. Encerra todas as suas conquistas, algumas delas arrancadas depois de greves memoráveis e lutas heroicas. Não é, consequentemente, uma lei da burguesia, se bem que não atenda de maneira plena aos interesses da classe operária. Não podendo dispor ainda de outra, mais eficiente, essa lei resulta, todavia, da imposição da classe operária à burguesia dominante. A medida que o operariado se fortalecer, pelo crescimento, organização e tomada de consciência do seu papel histórico, novos direitos em seu favor deverão ser incorporados à Consolidação. Ê tão certo que essa Lei resultou das revoluções pacíficas da classe operária, que a burguesia resiste a ela. E a rasga, todos os dias.
Vive a burlá-la, quando nega o aviso prévio ou foge ao pagamento da indenização devida ao demitido. Nem o salário mínimo é pago regularmente. Apesar de adotada para o campo desde maio de 1943, o trabalhador rural continua a perceber não só no Nordeste mas pelo País inteiro o salário que o patrão feudal entende de pagar, quase sempre na forma do odioso vale-do-barracão, moeda de curso forçado e circunscrita às fazendas, engenhos e usinas. 0 economista Celso Furtado, Superintendente da SUDENE, profundo conhecedor dos problemas sociais e econômicos do Nordeste, não pôde esconder o seu espanto, ao constatar, em silenciosa excursão feita pelo interior, há pouco tempo, que ainda se paga ao trabalhador rural Cr$ 20,00 ou Cr$ 30,00, pela jornada de 10 horas de trabalho, quando a lei manda pagar entre Cr$ 200,00 e Cr$ 300,00, na mesma região. Esse regime é bem pior do que o da escravidão. 0 escravo tinha, pelo menos, a comida certa, boa ou mal, mas certa, o algodãozinho para cobrir o corpo, a senzala de tijolo e telha, e até médico quando adoecia. O escravo custava caro. Era um animal de carga. Foi por isso, sem dúvida, que um preto velho, filho de escravo, morando com o seu próprio cavalo em um dos mocambos de Recife, nos dizia, hã pouco, que tinha saudades da escravidão.
A burguesia ainda fez mais; introduziu no corpo da Consolidação dispositivos que permitem o pacto contra a própria lei. Ê quando cria a Junta de Conciliação. Nessa Junta o patrão compele o empregado a renunciar à indenização a que tem direito. Nesse momento a lei deixa de existir, para dominar a vontade da parte economicamente mais forte. O operário, desajustado, sem emprego nem garantia de subsistência, em regra capitula.
Se o desrespeito à Consolidação, se a burla aos seus dispositivos, se a conciliação, cuja finalidade é castrar o direito do empregado, tirar-lhe o impulso inicial, quebrar-lhe a resistência, se tudo isso se verifica nos grandes centros onde a classe operária, já organizada nos seus sindicatos, tem melhores condições para resistir à burguesia capitalista, imaginemos o que não ocorre no campo com o assalariado agrícola feudalizado pela burguesia rural. Se o capitalista da cidade reage, fere e rasga, a cada instante, a Consolidação, qual não será o comportamento do capitalista do campo?
Oriunda ou não da família feudal, a burguesia rural, tanto política como ideologicamente, mede o passo, muito se identifica, sente-se mais próxima do pré-capitalista. O elemento que a ela pertence é sempre um reacionário empedernido, seja ele usineiro ou fazendeiro de café, quer tenha passado por um cargo executivo de relevo ou tome assento no Parlamento Nacional e nas Assembleias Legislativas. A exceção servirá para confirmar a regra. Reage muito mais violentamente do que o seu congênere da cidade à aplicação das leis trabalhistas. Enquanto isso se verifica com a classe dominante, ocorre, por outro lado, que o operário do campo, por ser mais atrasado e viver mais isolado, e menos combativo do que o seu irmão da cidade.
Acresce ainda o fato de não existir Junta de Conciliação em todas as Comarcas do interior. Funciona em pouquíssimas cidades. O Juiz do Cível acumula, em regra, a função de Juiz do Trabalho. Em geral não compreende essa nova legislação. É um adepto fervoroso do Código Civil. Um civilista. Encantado por Teixeira de Freitas, Clóvis Bevilacqua, Carvalho Santos e outros mais modernos, quando não vai buscar no estrangeiro os grandes expoentes, construtores e interpretes do direito burguês.
Poderíamos alinhar dezenas de equívocos, "gaffes" e erros grosseiros cometidos por juízes civilistas do interior do País, quando são solicitados a aplicar a Consolidação das Leis do Trabalho. Há até os que desconhecem que a lei de oito horas, o salário-mínimo e o aviso prévio, coisas corriqueiras, já beneficiam o trabalhador rural.
Fica demonstrado, desse modo, que o instrumento jurídico de que dispõe a classe operária da cidade, com todas as deficiências e omissões rapidamente apontadas, é ainda menos eficiente, muito menos, quando a ele recorre a classe operária do campo, isto é, o assalariado agrícola.
Para maior desgraça desse assalariado em suas tentativas de organização, o Conselho de Segurança Nacional, numa atitude injustificável, pronunciou-se, há tempo, contra o registro de um sindicato agrícola do sul do País. Isso bastou para que o Ministério do Trabalho firmasse jurisprudência sobre o assunto, de modo que não se pode mais legalizar associações desse tipo. Foi preciso que o Supremo Tribunal Federal, em acordão do fim de ano de 1961, portanto, recentíssimo, julgando um mandado de segurança impetrado em favor do registro de um desses sindicatos, pusesse abaixo aquela decisão discriminatória e contrária ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei.
Em todo o País, desde que se conseguiu registrar o primeiro sindicato agrícola, há vinte anos, no município de Campos, Estado do Rio, até os nossos dias, somente seis sindicatos desse tipo foram legalizados. Apenas seis e funcionando precariamente.
Fazendo uso, portanto, desse instrumento jurídico, o assalariado agrícola luta isolado, tendo, contra suas reivindicações ou direitos já expressos em lei, a burguesia rural e os latifundiários.
Pelas razões expostas não resta dúvida que o fator jurídico funciona, no caso, de maneira insuficiente.
III
Examinemos, agora, o segundo fator - o financeiro.
Indaga-se: dispõe o assalariado agrícola de condições mínimas financeiras para a luta reivindicatória? Não dispõe. Esse proletário não possui nenhum meio de produção. Conta, apenas, com sua força do trabalho, que aluga ao capitalista do campo.
Se o operário da cidade consegue algum crédito na venda, no açougue, na padaria e na farmácia, nas imediações da fábrica, onde trabalha ou no bairro onde mora, o mesmo não ocorre com o operário do campo, que só tem acesso à venda do patrão - o barracão - que é também açougue, farmácia e padaria. Desse modo, o operário da cidade, com crédito em vários estabelecimentos comerciais, consegue entrar em greve e resistir durante dias e até semanas. Conta, além disso, com a solidariedade de outras categorias sociais e a mobilização de recursos que o Sindicato promove junto as autoridades e ao povo. Na última greve dos tecelões de Pernambuco (compreendendo Recife, Camaragibe e Escada), não tivemos a menor dificuldade em obter a aprovação de um projeto de lei junto a Assembleia Legislativa conferindo aos grevistas a ajuda de um milhão de cruzeiros (Cr$1.000.000,00).
O operário do campo, no mesmo dia em que começa a trabalhar, contrai um debito no barracão e vive daí por diante controlado pelos vales. Fica preso a esses vales e escravo do barracão, cujos gêneros estão quase sempre deteriorados e lhes são vendidos por preço mais alto do que os sadios existentes na cidade. O salário que recebe, por meio dos vales, nunca dá para cobrir o valor das mercadorias de que necessita para não tombar de fome. Garroteado pela dívida que aumenta dia a dia, e sem dispor de nenhum credito, com a circunstância de não poder, sequer, plantar alguma lavoura de subsistência em derredor do casebre onde entulha a família, ou de criar uma galinha, e muito menos uma cabrinha de leite, o operário do campo, que não difere do pária, trabalhando de sol a sol e de domingo a domingo, não tem sequer as mínimas condições financeiras para entrar em greve. Sua politização não é fácil porque não lhe sobra tempo para ir ao sindicato ou a feira debater com outros companheiros, vítimas da mesma sorte, os seus problemas. Nem tem liberdade para tanto.
O Sindicato Agrícola de Campos, por exemplo, em 20 anos de existência só congregou 3.000 associados até agora, embora aquele município, de terras tão ricas como as de Cuba e o maior centro açucareiro do País, tenha uma população rural superior a 200.000 almas.
Se é injustiçado - essa palavra é um truísmo para ele - começa a passar mais fome. Não dispõe de recursos para ir à sede da Comarca, em busca do Sindicato ou do Juiz, a fim de reclamar os seus direitos. Não tem o que vender, nem mesmo os meios de produção (machado, foice, facão, arado ou carro de boi) já que é um proletário e não artesão ou capitalista.
E se não tem o mínimo de recursos financeiros para iniciar a defesa de seu direito ferido, o assalariado agrícola conta, evidentemente, com maiores dificuldades de se organizar, o que não ocorre, nesta primeira etapa da luta do campesinato, com o outro setor, como veremos mais adiante.
IV
Finalmente, consideremos o terceiro e último fator - o econômico.
Proletário que é, não dispõe o assalariado agrícola de bens de produção. Não possui haveres, pois até o casebre em que mora pertence ao capitalista do campo. Se hoje é despedido, amanhã deve buscar trabalho, a qualquer preço, para não perecer. É a regra. Proibem-no de plantar e de criar. A área da terra que lhe dão, quando não mora nos restos das senzalas antigas, é limitada para que não se distraia do trabalho nem edifique nada capaz de lhe assegurar a fixação a terra. Ninguém de vida mais instável. Desliza pela terra como a ave de arribação pelo espaço e a baronesa pelo rio. Toda a sua riqueza é a sua miséria - a prole numerosa, doentia, sem futuro. Só lhe resta uma mercadoria para vender, a força do trabalho, mesmo quando o braço já não tem mais força.
Se chega a promover a reclamatória trabalhista, por obra e graça de algum advogado mais humano ou de um Juiz não vinculado à oligarquia dominante, abandona o feito pela impossibilidade material de comparecer as audiências, de reunir provas, de convocar testemunhas. Não tem meios nem recursos para permanecer lutando no pretório e vencer a burocracia do processo e a astúcia do patrão. Chega sempre à evidência de que, neste regime, não há Justiça para o pobre... Ainda assim muitos têm feito greves.
V
A característica marcante da existência do assalariado é a instabilidade. Por diversas razões, entre elas: a) a pressão demográfica de que resulta o excesso na oferta de mão-de-obra; b) o caráter periódico da produção e consequentemente do emprego.
É ele o elemento que mais emigra para as cidades da região e para outras regiões.
Ha também a considerar a natureza da organização da empresa agrícola, que não concentra nem aglutina, como a empresa industrial, os meios de produção e a massa operária. Por outro lado, a debilidade da estrutura capitalista, sobretudo no Nordeste, determina certa indefinição da figura do assalariado, que se mescla, em vários aspectos, com as de outros trabalhadores do campo. No caso das grandes empresas - as usinas de açúcar - observa-se, ao lado da ojeriza e reação contra a organização sindical, a concessão de alguma assistência aos assalariados. Isso determina, mesmo, uma atitude de reserva de parte do condiceiro, do agregado, etc. que olham o assalariado como um privilegiado...
VI
O camponês, isto é, o rendeiro ou foreiro, o parceiro, o meeiro, o posseiro, o vaqueiro, que formam a esmagadora maioria do campesinato brasileiro, tem, entre nós, melhores condições do que o assalariado agrícola para se organizarem e lutarem contra o latifúndio. Não queremos com isso obscurecer, é bom que se assinale, a missão que está reservada ao assalariado agrícola na marcha do proletariado geral para o poder. Já Mao-Tse-Tung, que sentiu e viveu em seus mínimos detalhes os problemas do campesinato, num país como a China, onde tudo é mais complexo, mostrou que o papel do proletariado do campo na luta pela libertação nacional é decisivo. A vinculação ideológica entre essas diversas camadas levou Mao-Tse-Tung a classificá-las em conjunto com a denominação de camponeses pobres. Elas representam, na China, 70% da população, e no Brasil um pouco menos. Embora assim vinculado ao assalariado, o camponês tem sobre ele, nesta primeira fase, a vantagem de dispor daqueles três fatores para lutar e resistir contra o latifúndio.
VII
Assim, vejamos. Primeiro, o fator jurídico. A lei em que se baseia o movimento camponês para se reorganizar e reivindicar os seus direitos é o Código Civil e não a Consolidação Trabalhista. O Código Civil é um diploma jurídico outorgado pela revolução burguesa. É UMA LEI da burguesia, decretada após a derrota da monarquia escravista, tanto que disciplina as relações jurídicas da classe burguesa e dos seus explorados. Os direitos ali contidos representam enorme acervo de conquistas das classes dominadas pelo feudalismo, quando este detinha nas mãos o Governo, o Estado brasileiro, antes de 1899. As classes exploradas eram, então, o campesinato e a burguesia. Quando José Bonifácio, o Patriarca, com seu espírito lúcido, inteligência rara, grande coragem e admirável visão, levantou-se, há mais de cem anos, para condenar a escravidão, combater a propriedade feudal e defender a necessidade da reforma agrária, apesar de todo o seu prestígio, foi apeado do poder, exonerado da condição de tutor do Príncipe menino, morrendo na pobreza e no abandono. E era José Bonifácio. Muitos anos depois, Joaquim Nabuco, tão extraordinário como o Patriarca, sofria a campanha mais infamante, porque erguera a voz contra o sistema agrário brasileiro. E era Joaquim Nabuco. Escolhemos, de propósito, essas duas figuras para mostrar que, em qualquer tempo e seja qual for o homem de visão que se levante contra ele, o latifúndio se revela sempre o mesmo - impiedoso, frio, insensível, cruel. Não perdoa a ninguém. Não transige com ninguém. Nem com Bonifácio. Nem com Nabuco. Tanto um como o outro já falavam pelas classes exploradas - a burguesia e o campesinato. E contra a classe exploradora - a aristocracia rural, o baronato feudalista. As reivindicações daquelas duas classes - a burguesia e o campesinato - são quase comuns, já que têm como base a propriedade privada - aspecto da infra-estrutura econômica, sobre a qual se ergue a superestrutura jurídica, o Código Civil. Não é por acaso que a reforma agrária se transforma na bandeira de luta das revoluções burguesas. Quando a reforma agraria é realizada pela burguesia, em sua revolução, acentua-se a exacerbação da propriedade privada, a qual, mais tarde, irá resistir e criar obstáculos a revolução socialista, cuja economia é coletiva.
Naqueles países onde a reforma agrária se fez em pleno fogo da revolução burguesa, o campo se mostra tão reacionário quanto a própria burguesia, ante o avanço da revolução subsequente - a proletária. Assim ocorreu na França, nos países nórdicos e nos Estados Unidos. O camponês, como a burguesia, resiste à socialização, porque se arraiga à propriedade privada. Se, histórica e economicamente, a classe burguesa e a classe camponesa se correspondem, desfrutam, todavia, da mesma estrutura jurídica, por terem idênticas relações de direito. O Código Civil, base do direito burguês, porque compendia o direito privado, serve também ao campesinato.
O Código Civil é, portanto, útil na arregimentação dos camponeses. Além disso, com base nessa legislação é fácil registrar rapidamente o estatuto de uma sociedade civil qualquer, de uma Liga Camponesa. Não dependendo do Ministério do Trabalho, com sua complexa burocracia, mas de um Cartório de Títulos e Documentos, a sociedade se funda, adquire personalidade jurídica, legaliza-se com rapidez e facilidade.
O camponês, quando luta com base no Código Civil, não se isola, porque usa o instrumento jurídico aceito e defendido pela classe dominante - a burguesia. Quem se isola, no caso, é o senhor feudal, o pré-capitalista, cuja economia baseada nas relações feudais ou semifeudais, tem por infra -estrutura jurídica as Ordenações do Reino, de há muito abolidas.
O Código Civil, é, pelo menos nas atuais circunstâncias, uma arma que neutraliza a burguesia, enquanto isola o latifúndio. Por mais venal que seja o Juiz e por mais distante a sua Comarca, sempre tem dificuldades e escrúpulos em rasgar um dispositivo do Código Civil. É por isso abriria um precedente que, mais cedo ou mais tarde, viria lançá-lo contra a burguesia de que faz parte ou que representa. Há, além do mais, a instância superior, onde a sentença pode ser revogada. Existe, ainda, o zelo pela promoção.
Mola mestra da máquina que tem, num extremo, para acioná-la, o pobre Oficial de Justiça da roça e, no outro, o Ministro da Suprema Corte, esse Corpo de Leis, expressão dos interesses da burguesia dominante, é um instrumento jurídico eficiente contra a ganância do feudalismo.
Por isso, afirmamos que, neste particular, o camponês dispõe de melhor arma jurídica para a arregimentação e luta pelos seus direitos do que o seu irmão mais esmagado, o assalariado agrícola.
VIII
Focalizemos o segundo fator - o financeiro. Em condições precárias, é verdade, dispõe o camponês de meios de produção que faltam ao operário do campo.
Anotemos, entre outros, o facão, o machado, o arado, a casa de farinha, o tacho de fabricar sabão e rapadura, o forno para cerâmica. Quando necessita lutar contra o senhor que lhe arrenda a terra, vai à sede da Comarca, quase sempre no cavalo em que também leva para a feira o produto de seu trabalho. Ou viaja de trem, de ônibus, de caminhão, se a distância é maior, para não perder a audiência. Tem sempre alguma fruta, um pouco de verdura, a mandioca, uma criação de terreiro, o bacorinho, o bode, para pagar as viagens e as despesas da causa. Presenteia o advogado, se este não aceita a remuneração, com os frutos de sua roça.
IX
Se a questão, como é a regra, se prolonga por meses e até anos, o camponês utiliza as condições econômicas para resistir. O sentimento de propriedade das benfeitorias ou de posse da terra, conforme se trate de foreiro ou de posseiro, aguça o seu individualismo, exacerba-lhe o instinto de defesa. Não precisa do barracão para viver. Tem a feira onde vende o produto de sua dura faina e para onde vai, em companhia da mulher ou do filho. Na cidade conta sempre com algum aliado, um compadre, um amigo, que é dono da venda onde se abastece ou o ferreiro que lhe forja ou conserta os instrumentos de trabalho. Foi com base nesse terceiro fator - o econômico - que os camponeses da "Galileia", por exemplo, puderam travar durante mais de cinco anos, verdadeira batalha judiciaria, até a desapropriação daquelas terras, batalha que, agora, se reinicia não mais contra o ex-latifundiário, porém contra o Estado que busca dispersá-los, dividi-los, na tentativa vã de golpear o movimento camponês.
X
Enquanto o capitalista do campo utiliza o tempo para arrefecer o ânimo do assalariado e derrotá-lo mediante a procrastinação do feito, se este chega a ir à Justiça, o camponês se socorre do mesmo expediente, para permanecer na terra, desgastando a resistência do latifundiário, porque seu sonho é não deixar o sítio que conserva a marca do seu trabalho. Disso resulta a desvalorização da terra alugada, em prejuízo para o dono, pois, cada dia que passa, mais difícil se torna vendê-la a outro latifundiário. O litígio pode conduzir a outras consequências.
Quando se dispõe a vendê-la com prejuízo a um terceiro, de preferência o faz a um capitalista interessado em expandir a monocultura de cana, cacau, café ou gado. A luta camponesa, exige então, mais unidade, diante do poder econômico mais forte. Há casos de reparação incompleta, mediante pressão do poder de polícia ou da Justiça, chegando até a devastação total das benfeitorias com incêndio de casebres e assassinato dos camponeses que se destacaram na luta. Assim ocorreu, há cinco anos, com a Liga do “Engenho Prata Grande", no Município de Amaraji, em Pernambuco, composta de sessenta famílias, muitas delas já ali residindo há quase um século e donas de bons sítios. A responsabilidade dessa razzia coube a "Usina Nossa Senhora do Carmo", da família Pessoa de Queiroz, que contou com a ajuda de capangas e de um tenente da Polícia, o Tenente Sabino, comandando trinta praças. Houve também o silencio da Justiça. Tombaram na refrega dois camponeses e dois capangas. Já o proprietário da "Usina São José", em Igaraçu, também em Pernambuco, o industrial José Ermirio de Morais, preferiu o caminho da indenização.
Em Santa-Fé do Sul, no Estado de São Paulo, algum tempo depois, ocorreu outro despejo violento. Todo o País se recorda dessa luta em que se destacou como líder Jofre Corrêa Neto. Em Pernambuco o móvel foi a cana. Em São Paulo, foi o capim colonião para o gado. No momento mesmo em que escrevemos este depoimento estamos recebendo a notícia do assassinato de camponeses na região do Contestado, entre Espírito Santo e Minas Gerais, e também no Maranhão, indo a fúria dos capangas e da polícia ao ponto de imolar mulheres e crianças. Poderíamos alinhar dezenas de fatos da mesma natureza, em diversos Estados da Federação onde a resistência do campesinato cresce dia a dia, com a organização das suas Ligas. Há, hoje, uma tendência no sentido da desapropriação pelo Governo das glebas convulsionadas. Busca-se, assim, impedir que prolifere o foco de agitação e que o camponês se tempere na luta e se politize, adquirindo perspectiva, no embate que se generaliza com a multiplicação das Ligas. À medida que cresce a resistência das Ligas Camponesas o latifúndio se isola. Esse processo é irreversível. É que o latifúndio está contra a História. E o camponês, no lombo dela.
XI
Façamos, agora, um paralelo. Poderá ser também um confronto. Depende do ângulo em que nos colocarmos.
Como todos sabemos, a classe operária, organizada em sindicatos, na cidade ou no campo, desde longos anos vem travando lutas de caráter econômico. Somente depois de saturada pela experiência e politizada, por força do proselitismo permanente, essas lutas assumem caráter político. Ressalvamos o advento dos fatos políticos que abalem emocionalmente toda a Nação, como, por exemplo, o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio, ocasiões em que a classe operaria marcha para a greve política.
Decorre isso, em boa parte, do fato de que as relações existentes entre operários e patrões têm como base o salário, sendo, portanto, de natureza econômica.
Enquanto tais relações se verificam entre a classe operária e aquela que o explora, entre o camponês e o latifundiário as relações são de direito, de modo que a luta para eles, quando se esboça, já assume caráter político.
O camponês quando se organiza, dá assim um salto, adquirindo a sua luta substância revolucionária, porque quase não passa pela fase de luta econômica, durante a qual o patrão anestesia, engana e retarda o amadurecimento político da classe operaria.
Quando determinada categoria sindical vai ao dissídio coletivo, sempre em busca de um salário melhor, sendo atendida nessa reivindicação, amortece o seu impulso e volta a esperar que novo aumento do custo de vida se torne insuportável para que tenha lugar outro dissídio. Reclama para a concessão de novo salário a base de 60%, que nunca vinga. Há sempre um recuo para 35% e 40%. Os dirigentes se dobram a decisão da justiça, que declara a greve ilegal, permitindo ao Estado a mobilização da polícia de choque contra os trabalhadores.
Em São Paulo o patrão chega a tomar a iniciativa de fomentar a greve pelo aumento do salário, como expediente de que se vale para aniquilar o concorrente menor e enriquecer mais rapidamente, aumentando, a seu talante, o preço das mercadorias. Ouvimos esse depoimento de dezenas de líderes operários daquele grande centro industrial.
O interesse dos grandes industriais de São Paulo em fomentar reivindicações salariais é um aspecto do fenômeno da concentração capitalista e da formação de monopólios. A evolução monopolística, relativamente acentuada, é uma das características da senilidade precoce do capitalismo brasileiro, ao lado de outras, como a alta importância do capital especulativo financeiro e burocrático.
Essa questão econômica tem grande importância por suas consequências políticas. Os monopólios transferem o interesse pela ampliação do mercado para a disputa do existente, seu controle e garantia de altos lucros. Chegam a falar em reforma agrária, tendo em vista a expansão do mercado interno. Até o imperialismo a recomendou na Conferência dos Chanceleres em Punta dei Leste e na "Aliança para o Progresso". Mas em que termos? Sem a abolição do parágrafo 16, do artigo 141, da Constituição da República, que só permite a desapropriação "mediante previa e justa indenização em dinheiro". Reforma agrária, à moda de Carvalho Pinto e Cid Sampaio não passa de pilhéria. Em termos políticos, isto significa a ausência de contradições, essencial entre essa alta burguesia e o latifúndio. Eis porque torna-se difícil incluí-la na frente única democrática, anti-imperialista e antifeudal. Descartando-nos desses elementos, nosso programa passa a ser mais radical, - o interesse das classes trabalhadoras.
XII
Com o camponês não ocorre a mesma coisa. No momento em que se reúne para lutar contra o preço da locação da terra ou pela permanência nela, fere, de pronto, o cerne da questão, que é a propriedade privada. A luta, de imediato, passa do campo jurídico para o político e assume, aqui e ali, colorações mais vivas.
Daí o movimento camponês, organizado há poucos anos, ter passado para a manchete dos grandes jornais e revistas, preocupando vivamente a burguesia nacional e o imperialismo americano. Cria-se a SUDENE. Inventa-se a "Aliança para o Progresso". Através desses dois instrumentos, busca-se impedir que a fogueira ateada no Nordeste se transforme em um incêndio que se alastre pelo País.
A oligarquia dominante preocupa-se menos com os problemas da classe operária de São Paulo, do Rio ou de Belo Horizonte, problemas que procura solucionar com o círculo vicioso do aumento dos preços dos gêneros alimentícios de primeira necessidade, das manufaturas e dos salários, do que com o despertar das massas camponesas, convencida, como já se encontra, de que elas poderão desatar um processo político capaz de conduzir o País à revolução social.
Não queremos subestimar, quando assim falamos, o papel histórico da classe operária. Ela é a dona dos destinos do mundo que surge. Não somos reformistas. Nem dogmático. Sabemos que compete, historicamente, à classe operária a vanguarda da revolução socialista. Sabemos também que nos países semicoloniais e subdesenvolvidos as revoluções são democráticas pelo fato de a maioria do povo ser formado de camponeses. Não desconhecemos que, embora recaia sobre o dorso de milhões de homens do campo a maior carga de revolução social, cabe à classe operária e as massas urbanas desferirem o golpe final contra a classe dominante.
Urge, assim, que organizemos as massas camponesas, como meio mais eficiente de dar força as lutas da classe operária e garantir-lhe a hegemonia na frente única contra o imperialismo e o latifúndio.
XIII
Vale, finalmente, anotar, que, além de todos aqueles fatores positivos que facilitam a organização dos camponeses - o jurídico, o financeiro e o econômico - e, ainda, o caráter político que, de imediato, assume a luta do campesinato, ocorre, no caso do Brasil, um fato que muito nos anima em insistir na mobilização da classe camponesa: é a constatação de que existem cerca de quarenta milhões de camponeses, enquanto que o número de assalariados agrícolas não alcança, entre nós, cinco milhões.
Temos motivos para acreditar nos argumentos que acabamos de expender, mas não reivindicamos o direito de dar a última palavra sobre esta questão.
Com os precários instrumentos intelectuais de análise de que dispomos concluímos, sujeito à impugnação, que o revolucionário sem vaidade acatará, terem sido os fatores já assinalados a causa do sucesso das Ligas Camponesas, e nunca o esforço, a obstinação, o sacrifício, a dedicação com que, no curso de todos esses anos, nos atiramos a luta para arrancá-los do silêncio em que viviam, mobilizá-los, uni-los e organizá-los. As coisas não acontecem por acaso. Nem dependem da vontade de um homem.
Por Francisco Julião