"Mulheres, Poder e Revolução"
Cerca de duas semanas antes de eu ingressar no SNCC [Comitê Coordenador Estudantil Não-violento, em tradução livre], “Black Power” [Poder Preto] substituiu “Freedom Now” [Liberdade Já] como o grito de guerra. Nós, jovens mulheres e homens que se juntaram às linhas de frente da guerra contra a segregação, estávamos contestando o legado remanescente da escravidão racial. O que buscávamos eliminar eram as limitações legais, sociais, psicológicas, econômicas, e políticas ainda impostas em nossos direitos humanos, e em nossos direitos como cidadãos. Esse era o contexto no qual nós lutamos para remover limitações impostas pelo gênero, claramente cientes de que não poderiam ser combatidas como uma questão isolada.
Durante aquela era, nós não havíamos desenvolvido muito linguajar para falar sobre a eliminação da discriminação de gênero. Racismo e pobreza, impostos por terroristas sanguinários sustentados pelo poder do Estado, pareciam tão esmagadores à época, e o horrível pano de fundo da guerra do Vietnã nos manteve alertas para o que estava em jogo. Não é que a discriminação de gênero não era aparente. Era evidente nos assuntos mais íntimos — banheiros separados marcavam “mulheres de cor” ou “moças brancas”; era óbvio nos fatos de que tantas escolas não permitiam que mulheres as frequentassem, e que tantos empregos não estavam disponíveis se você fosse uma mulher. Mas do início até a metade dos anos 1960, a primeira ordem dos negócios não era como avançar nossa causa como mulheres, mas como capacitar a comunidade da qual nós éramos uma parte, e como proteger nossas vidas no processo.
Estar no Movimento deu a mim e a todos que nele ingressaram uma educação tremenda. Aquela experiência nos ensinou como entender o mundo ao nosso redor, como pensar as questões do que poderíamos fazer por nós mesmos para promover a causa dos nossos povos, como organizar nossa própria população para mudar o mundo à nossa volta, e como enfrentar o terrorismo. Tudo que aprendi na SNCC eu levei comigo para o iniciante Partido dos Panteras Negras. Eu comecei a trabalhar lá em novembro de 1967, três ou quatro semanas depois de Huey Newton ser preso sob a acusação de matar um policial de Oakland em um tiroteio de madrugada. Eu organizei demonstrações. Eu escrevi panfletos. Eu realizei conferências de imprensa. Participei de audiências em tribunal. Eu desenhei cartazes. Eu apareci em programas de televisão, eu discursei em manifestações. Eu até concorri para cargos políticos a fim de organizar a comunidade em torno do programa do Partido e mobilizar apoio para libertar Huey Newton.
Às vezes, durante uma sessão de perguntas e respostas depois de um discurso que eu dei, alguém perguntava, “Qual é o papel da mulher no Partido dos Panteras Negras?” Eu nunca gostei dessa pergunta. Eu dava a resposta curta: “É o mesmo que o dos homens.” Nós somos revolucionários, eu explicava. Naquela época, eu não entendia por que eles queriam pensar o que os homens faziam e o que as mulheres faziam como separados. Levou-me anos, literalmente cerca de vinte e cinco anos, para entender que o que eu realmente não gostava era a a suposição escondida motivando a pergunta. A suposição sustentava que ser parte de um movimento revolucionário estava em conflito com o que o entrevistador foi socializado a acreditar ser uma conduta apropriada para uma mulher. Essa concepção complexa nunca entrou na minha cabeça, embora eu esteja certa de que ela era muito mais amplamente aceita do que eu jamais percebi.
Hoje em dia, as perguntas são mais sofisticadas: “Quais eram as questões de gênero no Partido dos Panteras Negras?” “O Partido dos Panteras Negras não era sexista?” Etc., etc., etc. Mas ninguém parece colocar a questão que eu tinha: Onde eu posso ir para me envolver na luta revolucionária? Me parece que parte da gênese da questão de gênero, e isto é apenas uma opinião, reside na maneira como ela desvia a atenção de confrontar a crítica revolucionária que nossa organização fazia da ampla sociedade, e a volta internamente para olhar que tipo de dinâmicas e conflitos sociais caracterizavam a organização. Para mim, essa discussão é muito menos atraente do que a que envolve os meios que planejamos para lutar contra as dinâmicas opressivas e conflitos sociais que o conjunto maior da sociedade nos impunha. Não muitas das respostas para as “questões de gênero” levam em consideração o que eu experimentei. O que eu li ou ouvi como respostas geralmente parecem responder a um modelo particular de inquérito acadêmico que exclui o que eu acredito ser central: Como você empodera um povo empobrecido e oprimido que luta contra o racismo, o militarismo, terrorismo, e machismo? Quer dizer, como você faz isso? Essa é a verdadeira pergunta.
Minha geração se tornou consciente durante um período de profunda turbulência mundial, quando a guerra do Vietnã e incontáveis insurgências na África, Ásia, e América Latina desafiaram o controle dos recursos do mundo pelas potências capitalistas. Elas enfrentavam uma enorme investida. Aqueles dentre nós que foram atraídos para o recente Partido dos Panteras Negras eram apenas mais um grupo insurgente de jovens homens e mulheres que se recusaram a tolerar a violência e abuso sistemáticos sendo distribuídos aos negros pobres, negros de classe média, e quaisquer negros idosos comuns. Quando olhamos para a nossa situação, quando vimos violência, péssimas moradias, desemprego, educação podre, tratamento injusto nos tribunais, bem como ataques diretos da polícia, nossa resposta foi nos defendermos. Nós nos tornamos parte daquela investida contra as potências capitalistas.
Num mundo de polarização racista, nós buscamos solidariedade. Nós chamamos por poder preto para o povo preto, poder vermelho para as pessoas vermelhas, poder pardo para as pessoas pardas, poder amarelo para as pessoas amarelas, e, como Eldridge Cleaver costumava dizer, poder branco para pessoas brancas, porque tudo que eles conheciam era o “poder porco”. Nós organizamos a Rainbow Coalition [Coalizão Arco-íris], reunimos nossos aliados, incluindo não apenas os porto-riquenhos Young Lords [Jovens Lordes], a gangue de jovens chamada Black P. Stone Rangers, os chicanos Brown Berets [Boinas Marrons], e os asiáticos I Wor Kuen (Guardas Vermelhos), mas também o predominantemente branco Peace and Freedom Party [Partido Paz e Liberdade] e os apalachianos Young Patriots Party [Partido dos Jovens Patriotas]. Nós colocamos um desafio não apenas teórico mas também prático para a maneira que nosso mundo estava organizado. E nós éramos homens e mulheres trabalhando juntos.
As mulheres que compunham as fileiras da nossa organização não tinham papéis sexuais especificamente designados. Algumas mulheres trabalhavam no jornal, como Shelley Bursey, que se tornou uma grande resistente no júri quando foi presa por se recusar a responder uma das investigações sobre o jornal do Partido. Algumas de nós, como Ericka Huggins, viram seus maridos assassinados, e então foram presas elas mesmas. No caso da Ericka, ela foi encarcerada junto com Bobby Seale e a maior parte da seção de New Haven sob acusações de conspiração para homicídio. Ela foi absolvida posteriormente, mas imagine o que acontece a uma organização quando catorze pessoas são presas de uma vez sob acusações capitais. Isso não deixa muito tempo para organizar, ou ter uma vida familiar. Talvez esse fosse o tipo de pressão que eles esperavam que nos forçasse a desistir.
Eu criei a posição de Secretária de Comunicações, baseada no que eu vi Julian Bond fazer no SNCC. Eu enviei comunicados de imprensa, eu tinha fotógrafos e jornalistas para publicar sobre nós, eu escrevi artigos para o nosso jornal. Eu concorri a um cargo político na legenda do Peace and Freedom Party, contra o incumbente representante Democrata do estado — que, aliás, era Willie Brown (agora prefeito de São Francisco). Nós publicamos um cartaz da campanha no jornal Pantera Negra, que era um desenho de Willie Brown com a sua boca costurada, seu corpo amarrado com uma corda. A legenda dizia: O posicionamento de Willie Brown na Guerra do Vietnã, presos políticos, e racismo, você pega a ideia. Nós éramos imaginativos na nossa abordagem à organização política. Matilaba [J. Tarika Lewis], uma das primeiras mulheres membras dos Panteras Negras, publicou desenhos no jornal junto com Emory Douglas. Connie Matthews, uma jovem jamaicana que trabalhava para a ONU em Copenhague, conheceu Bobby Seale quando ele foi para lá em visita, se juntou ao Partido, e se tornou nossa Coordenadora Internacional. Assata Shakur, que ingressou na seção de Nova York, mais tarde foi condenada pela morte de um policial estadual depois de um tiroteio na rodovia de Nova Jersey no qual ela saiu ferida e outro Pantera, Zayd Shakur, foi assassinado. Temendo ser morta, ela escapou da prisão, viveu na clandestinidade por um tempo, e no fim recebeu asilo em Cuba.
De fato, segundo uma pesquisa feita por Bobby Seale, em 1969, dois terços dos membros do Partido dos Panteras Negras eram mulheres. Eu tenho certeza que você está imaginando, por que esta não é a imagem que você tem dos Panteras Negras? Bem, pergunte a si mesmo: de onde veio a imagem dos Panteras que você tem em sua cabeça? Você leu aqueles artigos plantados pelo FBI no jornal? Você ouviu os âncoras que anunciavam o que eles decidiram ser significante (geralmente quantos Panteras foram presos ou mortos)? Quantas fotos de mulheres Panteras você viu? Pense nisso: quantos fotógrafos de jornais eram mulheres? Quantos redatores de jornais eram mulheres? Quantos âncoras eram mulheres? Quantos produtores de televisão eram mulheres? Quantos editores de revistas, livros, jornais? Quem estava tomando as decisões sobre quais informações circulariam, e quando essa decisão foi tomada, quem você acha que eles decidiram apresentar? É possível, e esta é só uma pergunta, que a realidade do que estava realmente acontecendo dia a dia no Partido dos Panteras Negras fosse bem menos noticiável, e fornecesse nenhuma justificativa para a campanha de destruição que as agências de inteligência e a polícia travavam contra nós? Será que as imagens e histórias dos Panteras Negras que você viu e ouviu foram orientadas para algo diferente de transmitir o que realmente estava acontecendo?
O que eu penso ser característico sobre as relações de gênero no Partido não é como elas duplicavam o que acontecia no mundo ao nosso redor. Na verdade, aquele mundo estava extremamente misógino e autoritário. Isso é parte do que nos inspirou a lutar contra ele. Quando as mulheres sofriam hostilidade, abuso, negligência e agressão — isso não era algo que surgisse das políticas ou estrutura do Partido das Panteras Negras, algo ausente do mundo — isso era o que estava acontecendo no mundo. A diferença que estar no Partido fez foi que ele colocou uma mulher em uma posição quando tal tratamento ocorria para contestá-la. Eu sempre vou me lembrar de um mini-julgamento específico que aconteceu em uma de nossas reuniões. Um membro do Partido foi acusado de estuprar uma irmã, que estava de visita da seção de Los Angeles, e ele foi votado para sair do Partido na mesma hora. Bem ali na reunião. Em 1970 o Partido dos Panteras Negras assumiu uma posição formal na libertação das mulheres. O Congresso estadunidense fez qualquer declaração sobre a libertação das mulheres? O Congresso permitiu que a Emenda de Direitos Iguais se tornasse parte da Constituição? A polícia de Oakland emitiu uma posição contra a discriminação de gênero? É neste contexto que as relações de gênero — um termo que nós não tínhamos naquela época — no Partido dos Panteras Negras deveriam ser examinadas.
Eu penso ser importante colocar as mulheres que lutaram contra a opressão como Panteras Negras junto com a longa tradição de lutadoras da liberdade como Sojourner Truth, Harriet Tubman, Ida Wells-Barnett, que encararam um mundo inteiramente opressivo e insistiram que sua raça, seu gênero, e sua humanidade sejam todos respeitados ao mesmo tempo. Não destacados, cada um em separado, mas todos ao mesmo tempo. Você não pode segregar um aspecto da nossa realidade e esperar uma imagem clara do que essa luta se trata. Em alguns casos, aqueles que levantam questões de gênero estão respondendo ao que eles pensam ser o retrato unilateral dos Panteras Negras como um grupo revolucionário machista. Mas olhe de onde a imagem está vindo antes de concluir que a resposta apropriada é investigar dinâmicas de gênero dentro do Partido. Não estou criticando o projeto, mas sim o ângulo.
A forma como as mulheres negras têm sustentado a nossa comunidade é fenomenal. Historicamente, nós não vivemos no isolamento de um mundo patriarcal, nós fomos empurradas para a brutal igualdade de escravidão imposta. Nossas antepassadas sabiam que teríamos de enfrentar o mundo sozinhas, e elas tentaram nos preparar para isso. O que eu penso necessitar ser examinado e explicado mais plenamente são as contribuições poderosas que as mulheres fizeram à nossa resistência contra a escravidão, à nossa resistência contra segregação, nossa resistência contra o racismo. Colocar a participação das mulheres no Partido dos Panteras Negras dentro desse contexto ilumina uma longa tradição de mulheres guerreiras.
1998
Escrito por Kathleen N. Cleaver, ex-membra do Partido dos Panteras Negras