A Hungria socialista e o revisionismo
“(...) da mesma forma que nas Ciências Naturais, as leis do desenvolvimento econômico são leis objetivas, que refletem os processos do desenvolvimento econômico, que se realizam independente da vontade dos homens. (...) Uma das peculiaridades da economia Política consiste no fato de que as suas leis, diferentemente das leis das Ciências Naturais, não são duradouras. Pelo menos a maioria delas atua no decorrer de um determinado período histórico, depois do qual cede lugar a novas leis. (...)”.
“Assim, as leis da economia Política no socialismo são leis objetivas, que refletem o caráter regular dos processos da vida econômica, que se realizam independentemente da nossa vontade”.
De forma didática, Stálin, resumia bem o que os clássicos do marxismo-leninismo (Marx, Engels e Lênin) escreveram sobre o desenvolvimento da Economia Política e suas leis objetivas para as transições do capitalismo para o socialismo e do socialismo para o comunismo. O teórico e líder soviético já falava nos problemas econômicos do socialismo na União Soviética, aliás, título de um dos seus últimos trabalhos e escrito pouco antes de falecer em 1952, e alertava para os danos que esses problemas poderiam causar ao desenvolvimento socialista não somente na União Soviética, bem como nos países de democracia popular do leste europeu.
Stálin também destacava que na transição do socialismo para o comunismo a luta de classes ainda se fazia presente e toda atenção, por parte da vanguarda revolucionária, era pouca. Mas, infelizmente, os dirigentes da Hungria e do seu Partido dos Trabalhadores [1] não tiveram os devidos cuidados com estes dois aspectos: as leis econômicas objetivas do socialismo e a luta de classes dentro do próprio socialismo. Estes erros foram fatais para que forças anti marxistas-leninistas e inimigos declarados do socialismo iniciassem um processo de decomposição do sistema socialista e que levou à sua derrubada total no final dos anos de 1980.
O revisionismo dentro do Partido dos Trabalhadores Húngaros começou a mostrar de fato as suas garras logo após o desaparecimento de Stálin, em março de 1953. No entanto, não podemos esquecer que a fusão com os social-democratas (em 1948) já trouxe, naquele momento, uma gama de militantes não marxistas para o centro do Partido e do Poder na República Popular da Hungria. Outro fato relevante era a mudança ocorrida na própria União Soviética, com a subida ao Poder – imediatamente após a morte de Stálin – de Lavrenti Béria. Béria assumira o controle do Estado Soviético e surpreendeu até mesmo seus inimigos mais próximos com um pacote de reformas que modificava de forma gradual e rápida as práticas políticas e econômicas dos últimos trinta anos na URSS.
Foi nessa onda transformadora que o Partido húngaro, principalmente a linha liderada por Imge Nagy, ganhou prestígio e ascendeu ao Poder. As ideias reformistas de Nagy chamaram a atenção da nova liderança soviética, mesmo com os soviéticos já realizando reformas e, em junho de 1953, os principais dirigentes húngaros são chamados a Moscou. Essa reunião, aconteceu com as presenças de: Béria, Malenkov e Kruschióv (que já começava a ocupar espaços dentro do Partido Comunista soviético) e dos líderes húngaros (Mátyás Rákosi, primeiro-ministro e secretário-geral do Partido; Ernö Gerö; Imge Nagy; István Hidas; Béla Szalai; András Hegedius; Rudolf Földuari e István Dobi). Neste encontro, Malenkóv (primeiro-ministro soviético), falou de sua insatisfação com os andamentos do socialismo na Hungria e das cooperativas agrícolas que não funcionavam, segundo ele, com eficácia. Béria (de fato o novo líder da URSS) criticou duramente Rákosi que, após elogios da nova liderança soviética (“grande talento e aberto às reformas exigidas”) a Imge Nagy, foi obrigado a ceder a chefia do governo ao novo protegido de Moscou. Deste conclave, duas questões foram acordadas em um documento: 1) corrigir os erros do passado (leia-se “do stalinismo”) e melhorar o funcionamento do sistema socialista; 2) que o Partido húngaro convocasse uma reunião extraordinária para assumir essas propostas e que fosse realizada uma autocrítica profunda de Rákosi, Gerö, Joséf Révái (ideólogo do Partido húngaro) e toda a direção ligada a Rákosi.
Em 27 de junho de 1953 o Comitê Central do Partido dos Trabalhadores Húngaros se reúne em Budapeste. Rákosi faz a autocrítica orientada pelos dirigentes soviéticos em Moscou, incluindo críticas sobre seu poder exercido até então e uma espécie de autocondenação do seu próprio “culto à personalidade”. Nagy aproveita a autocrítica do rival e critica o andamento da economia, dizendo que tudo foi “uma aventura”. O jornal do PTH, Szabad Nép (Povo Livre), dá total repercussão às mudanças ocorridas no CC. A desintegração da unidade partidária e do próprio sistema socialista estavam apenas começando na Hungria.
Assumia, em 4 de julho de 1953, uma nova liderança na Hungria Socialista, um bom vivant, um socialdemocrata de fato, comprometido em realizar reformas que - de fato - restauravam o capitalismo no país: Imre Nagy. Entre as principais mudanças defendidas por Nagy, batizadas por ele de “novo socialismo” e aprovadas pelo Comitê Central do Partido húngaro, estavam as seguintes: 1) promover a democratização do Partido, o que significava inclusive a reabilitação dos inimigos do povo; 2) Recriar a Frente Popular Patriótica como força real para a governança do país, na prática, seria acabar com a força do Partido como dirigente único do país; 3) o Parlamento teria um peso maior no Governo, se assemelhando aos parlamentos burgueses, bastante elogiados pelas novas lideranças revisonistas; 4) quanto à economia, Nagy propunha a diminuição gradativa do controle estatal na indústria pesada e suspensão da planificação central vigente, além da modificação no direcionamento econômico. O novo dirigente da Hungria também defendia a normalização das relações comerciais com os países ocidentais, capitalistas, e a melhora da indústria de bens de consumo, avançando na privatização do campo, eliminando, assim, as fazendas coletivas. Além desses pontos, Nagy defendia a anistia aos criminosos inimigos do povo com penas até dois anos, o fim dos campos de reeducação e a autorização para que deportados voltassem ao país. Com essa última medida, mais de 13 mil húngaros que viviam no Ocidente puderam voltar ao país e, com a volta deles, a ideologia burguesa era reintroduzida com toda força na Hungria. Na questão agrária, já em fins de 1953, 12% das fazendas coletivas são fechadas (correspondendo a mais de 120 mil camponeses), chegando essa porcentagem a 50% no início de 1955. A restauração capitalista no campo estava em ritmo acelerado.
Ao mesmo tempo em que Nagy conduzia a dissolução do socialismo na Hungria, a oposição a ele crescia. Mátyás Rákosi, que continuava liderando o Partido (embora sem ter a maioria do seu Comitê Central), não deixava de criticar as reformas e a linha de Nagy, principalmente após a abertura do processo – em junho de 1954 – do antigo chefe da Segurança, Gábor Péter, utilizado por Nagy contra Rákosi. Segundo Péter, Rákosi teria criado provas falsas contra os revisionistas Laszló Rajk e János Kádar. A crise política, após a ascensão de Nagy, afeta gravemente a economia e as reformas restauradoras começam a fracassar. O descontentamento popular cresce. O Partido Comunista da União Soviética, à esta altura sob a liderança de Nikita Kruschióv [2], começa a perder a paciência com os dirigentes húngaros e uma nova reunião é convocada para 5 de maio de 1954. Mesmo revisionista, o PCUS não via com bons olhos a velocidade com que o socialismo na Hungria era dissolvido. Após essa reunião, o Partido húngaro realiza seu 3º Congresso, em 24 de maio de 1954. Na ocasião, Rákosi fala dos 10 anos de êxitos do socialismo na Hungria e volta a criticar os erros cometidos pela atual liderança do país liderada por Nagy. O Congresso aprova, entre outras medidas: 1) a paralisação dos processos de reabilitação política; 2) duras criticas contra as reformas que, segundo o Partido, tinham sido desviadas e fracassaram totalmente; 3) frear a Frente Patriótica e reconduzir o Partido dos Trabalhadores à liderança da construção socialista. Apesar de o Congresso ter uma maioria contra as reformas, o Comitê Central do Partido continuava a favor de Nagy e no Pleno de 8 de setembro de 1954, as reformas são aprovadas pelo CC. Em outubro, Nagy publica um artigo no Szabad Nép “reafirmando seu compromisso com as reformas”. A oposição a Nagy estava de mãos atadas e o Partido soviético (representado nesta ocasião por Mikhail Suslov, homem de confiança de Kruschióv), cada vez mais insatisfeito, convoca os líderes da oposição húngara (Mátyás Rákosi, Lajos Ács, Béla Szalai e Mihály Farkas) e Nagy (que compareceu sozinho) para conversas sobre o andamento das reformas. Após essa reunião, em 8 de janeiro de 1955, o PCUS sai em defesa de Rákosi e seu grupo. Em 1º de fevereiro, Nagy sofre um ataque cardíaco e se afasta do poder. Em 2 de março, Rákosi se reúne com o CC (que agora estava com maioria fiel a ao dirigente) e Suslov. Em 14 de abril, o CC aprova uma Resolução acusando Nagy de antimarxista, anticomunista e revisionista. Quatro dias depois, Nagy é demitido das suas funções como primeiro-ministro e em dezembro de 1955 é expulso do Partido. András Hegedüs assume a chefia de Governo e a liderança do Partido húngaro continuaria com Rákosi, agora, com mais poder após a direitista Frente Patriótica perder sua força.
No entanto, por todas as reformas que a Hungria passara, lideradas por Nagy, já era tarde: o revisionismo contaminara grande parte do Partido dos Trabalhadores Húngaros e da liderança do Estado Operário. Os ventos restauradores do capitalismo que sopravam na Hungria acabariam por contaminar todo o Leste e iniciar uma contrarrevolução violenta no país que só acabariam após a intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia, mas deixariam entulhos que - décadas mais tarde - acabariam voltando com toda força e reiniciando o processo final da dissolução do socialismo e a restauração capitalista na Hungria.
Escrito por Clóvis Manfrini
Notas
[1] O Partido dos Trabalhadores Húngaros nasceu da fusão do Partido Comunista Húngaro (fundado em 1944) com o Partido Social Democrata Húngaro, realizada em 1948 e teve seu nome novamente modificado em 1956 para Partido Socialista Operário Húngaro.
[2] Em 26/27 de junho de 1953, Nikita Kruschióv, com a colaboração da maioria do Presidium do PCUS e de militares como Zhukov, lidera um Golpe de Estado que toma o Poder na União Soviética, prendendo – e depois assassinando – Béria.