Marx: "A Burguesia e a Contrarrevolução"
Quando o dilúvio de Março — um dilúvio en miniature — passou, não deixou à superfície da terra berlinense quaisquer prodígios, quaisquer colossos revolucionários, mas criaturas do estilo antigo, figuras burguesmente atarracadas — os liberais da Dieta unida, os representantes da burguesia prussiana consciente. As províncias que possuíam a burguesia mais desenvolvida, a Província Renana e a Silésia, forneciam o contingente principal para os novos ministérios. Atrás deles, todo um séquito de juristas renanos. À medida que a burguesia era empurrada para um plano secundário pelos feudais, nos ministérios, a Província Renana e a Silésia cediam lugar às primitivas províncias prussianas. O ministério Brandenburg só ainda tem ligação com a Província Renana através de um tory de Elberfeld. Hansemann e von der Heydt! Nestes dois nomes reside, para a burguesia prussiana, toda a diferença entre Março e Dezembro de 1848!
A burguesia prussiana foi atirada para os píncaros do Estado, porém, não, como tinha desejado, por meio de uma transição pacífica com a Coroa, mas por meio de uma revolução. Não eram os seus próprios interesses, mas os interesses do povo, que devia representar contra a Coroa, isto é, contra si própria, uma vez que um movimento popular lhe tinha preparado o caminho. Aos seus olhos, a Coroa era, porém, precisamente apenas o escudo pela graça de Deus por detrás do qual se deviam ocultar os seus interesses próprios profanos. A inviolabilidade dos seus interesses próprios e das formas políticas correspondentes ao seu interesse, traduzida na linguagem constitucional, devia soar [assim]: inviolabilidade da Coroa, Daí o entusiasmo da burguesia alemã e, especialmente, da prussiana pela monarquia constitucional. Daí que, se a revolução de Fevereiro com todas as suas sequelas alemãs, foi bem recebida pela burguesia prussiana, porque por ela o leme do Estado lhe foi posto nas mãos, ela igualmente foi um golpe nos seus cálculos, porque, deste modo, a sua dominação ficava ligada a condições que ela não queria cumprir nem podia cumprir.
A burguesia não tinha mexido um dedo. Tinha permitido que o povo se batesse por ela. A dominação para ela transferida não era, portanto, a dominação do general que vence o seu adversário, mas a dominação de um comité de segurança a quem o povo vitorioso confia a defesa dos seus interesses próprios.
Camphausen sentia ainda inteiramente o incômodo desta posição e toda a fraqueza do seu ministério deriva deste sentimento e das circunstâncias que o condicionaram. Uma espécie de rubor envergonhado ilumina, portanto, os atos mais desavergonhados do seu governo. A desvergonha e a impudência descaradas eram o privilégio de Hansemann. A teinte vermelha constitui a única diferença entre estes dois pintores.
Não se pode confundir a revolução prussiana de Março, nem com a revolução inglesa de 1648, nem com a francesa de 1789.
Em 1648, a burguesia estava ligada à nobreza moderna contra a realeza, contra a nobreza feudal e contra a Igreja dominante.
Em 1789, a burguesia estava ligada ao povo contra realeza, nobreza e Igreja dominante.
A revolução de 1789 tinha por modelo (pelo menos, na Europa) apenas a revolução de 1648, a revolução de 1648 apenas a insurreição dos Países Baixos contra a Espanha. Ambas as revoluções estavam avançadas um século, não apenas pelo tempo, mas também pelo conteúdo, relativamente aos seus modelos.
Em ambas as revoluções, a burguesia era a classe que realmente se encontrava à cabeça do movimento. O proletariado e as frações da população urbana não pertencentes à burguesia não tinham ainda quaisquer interesses separados da burguesia ou não constituíam ainda quaisquer classes, ou setores de classes, autonomamente desenvolvidas. Portanto, ali onde se opuseram à burguesia, como, por exemplo, de 1793 até 1794, em França, apenas lutaram pela prossecução dos interesses da burguesia, ainda que não à maneira da burguesia. Todo o terrorismo francês não foi mais do que uma maneira plebeia de se desfazer dos inimigos da burguesia, do absolutismo, do feudalismo e da tacanhez pequeno-burguesa.
As revoluções de 1648 e de 1789 de modo algum foram revoluções inglesas ou francesas, foram revoluções de estilo europeu. Não foram a vitória de uma classe determinada da sociedade sobre a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para a nova sociedade europeia. Nelas, a burguesia venceu; mas a vitória da burguesia foi então a vitória de uma nova ordem social, a vitória da propriedade burguesa sobre a feudal, da nacionalidade sobre o provincianismo, da concorrência sobre a corporação, da divisão [da propriedade] sobre o morgadio, da dominação do proprietário da terra sobre o domínio do proprietário pela terra, das luzes sobre a superstição, da família sobre o nome de família, da indústria sobre a preguiça heroica, do direito burguês sobre os privilégios medievais. A revolução de 1648 foi a vitória do século XVII sobre o século XVI, a revolução de 1789 a vitória do século XVIII sobre o século XVII. Estas revoluções exprimem mais ainda as necessidades do mundo de então do que das regiões do mundo em que se deram, a Inglaterra e a França.
Na revolução prussiana de Março nada disto [se dá].
A revolução de Fevereiro tinha abolido a monarquia constitucional, na realidade, e a dominação burguesa, na ideia. A revolução prussiana de Março devia instituir a monarquia constitucional, na ideia, e a dominação burguesa, na realidade. Muito longe de ser uma revolução europeia, foi apenas a repercussão atrofiada de uma revolução europeia num país atrasado. Em vez de estar avançada em relação ao seu século, estava mais de meio século atrasada em relação ao seu século. Era desde o princípio secundária, mas é sabido que as doenças secundárias são mais difíceis de curar e simultaneamente desgastam mais o corpo do que as primitivas. Não se tratava do estabelecimento de uma nova sociedade, mas da ressurreição berlinense da sociedade falecida em Paris. A revolução prussiana de Março nem sequer era nacional, alemã; desde o princípio, era provincial-prussiana. As insurreições de Viena, de Kassel, de München, toda a espécie de insurreições provinciais, se deram nas proximidades dela e disputaram-lhe o primado.
Enquanto 1648 e 1789 tinham o infinito orgulho de estarem no cume da criação, a ambição de 1848 berlinense era constituir um anacronismo. O seu brilho assemelhava-se ao brilho das estrelas que só chega até nós, habitantes da Terra, 100.000 anos depois de os corpos que o irradiavam estarem extintos. A revolução prussiana de Março era, em ponto pequeno — aliás, era tudo em ponto pequeno —, uma dessas estrelas para a Europa. O seu brilho era o brilho de um cadáver de sociedade, há muito apodrecido.
A burguesia alemã tinha-se desenvolvido tão indolente, covarde e lentamente que, no momento em que se contrapôs ameaçadoramente ao feudalismo e ao absolutismo, avistou frente a si própria, ameaçadores, o proletariado e todas as frações da população urbana cujos interesses e ideias se aparentam com o proletariado. E viu como inimiga não apenas uma classe atrás de si, mas toda a Europa diante de si. A burguesia prussiana não era, como a francesa de 1789, a classe que defendia toda a sociedade moderna face aos representantes da velha sociedade, a realeza e a nobreza. Tinha descido a uma espécie de estado [ou ordem social — Stand], tão marcadamente contra a Coroa como contra o povo, desejosa de opor-se a ambos, indecisa face a cada um dos seus adversários tomado isoladamente, uma vez que os via sempre atrás ou diante de si; inclinada desde o princípio para a traição contra o povo e para o compromisso com o representante coroado da velha sociedade, uma vez que já ela própria pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma nova sociedade contra uma velha, mas interesses renovados dentro de uma sociedade envelhecida; ao leme da revolução não porque o povo estivesse atrás de si, mas porque o povo a empurrava para diante de si; à cabeça não porque representasse a iniciativa de uma nova época da sociedade, mas o rancor de uma velha; um estrato do velho Estado, que não conseguiu vir ao de cima, atirado por um tremor de terra para a superfície do novo Estado; sem fé em si própria, sem fé no povo, resmungando contra os de cima, tremendo perante os de baixo, egoísta para com os dois lados e consciente do seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiando das suas próprias palavras de ordem, com frases em vez de ideias, intimidada pela tempestade mundial, explorando a tempestade mundial — energia em nenhuma direção, plágio em todas as direções, vulgar, porque não era original, original na vulgaridade — traficando com os seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si própria, sem fé no povo, sem vocação histórica universal — um velho amaldiçoado que se viu condenado a dirigir e a desviar no seu próprio interesse senil os primeiros arroubos juvenis de um povo robusto — sem olhos, sem ouvidos, sem dentes, sem nada — assim se encontrava a burguesia prussiana depois da revolução de Março ao leme do Estado prussiano.
Artigo de Karl Marx, publicado na Neue Rheinische Zeitung de 15 de Dezembro de 1848.