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REIMPRESSÕES

Foto do escritorNOVACULTURA.info

Charles Fourier e as mulheres



François Marie Charles Fourier nasceu em Besançon (1772-1837), que entrou para a história como um socialista utópico pela crítica marxiana, foi um pensador excêntrico, crítico ferrenho da ineficiência da Revolução Francesa e da sociedade burguesa e cristã vigente no seu tempo. Definitivamente, não era um filósofo entusiasta dos ideais iluministas. Pelo contrário, defendia que a liberdade podia ser medida pelo grau de rejeição da submissão da razão. Era a valorização dos sentidos e não a atividade intelectual que levaria a humanidade a um desenvolvimento de fato.


Defendia a existência de uma força natural, que atrairia todos os seres e planetas. Este impulso, denominado atração passional, cria uma relação de interdependência entre todos os componentes do universo, faz com que os seres vivos se atraiam entre si. A ideia é inspirada na ideia de Isaac Newton sobre a atração gravitacional delimitada no campo da física. Por analogia, a atração passional agiria na vida social assim como a gravidade age sobre os corpos na natureza. Nas palavras do autor, esta atração seria “o impulso dado pela natureza anteriormente a reflexão e persistente apesar da oposição da razão, do dever, do preconceito”.


O prazer era entendido como objetivo final da vida humana, portanto deveria se manifestar em todas as formas possíveis. E o livre exercício das paixões era a forma de alcança-lo. Sendo a paixão uma criação divina, Fourier defendia que ele só pode ser bom, e vai além, era o único caminho de ligação entre Deus, os seres vivos e o cosmo, alcançar esta unidade só podia ser conquistado com a satisfação plena de todos os impulsos passionais.


Segundo a definição Fourier, as paixões humanas são, ao todo, doze. As cinco primeiras dizem respeito a cada sentido: paladar, visão, audição, etc. A segunda categoria diz respeito a sentimentos universais acerca das relações humanas: a amizade, o amor, a ambição e o familismo. E por fim, um grupo formado pela “compósita”, paixão do entusiasmo por um ideal, pela “borboleteante”, paixão pela variedade, e pela “cabalista”, paixão responsável pelo equilíbrio entre individuo e coletivo.


Toda paixão natural, quando cerceada, produz um efeito negativo e nocivo a vida humana. A impossibilidade de uma paixão se desenvolver livremente causa uma espécie de contrapaixão, que impossibilita que o ser humano possa buscar sua felicidade. Idéia semelhante aparecerá mais tarde na psicanálise, analisada como recalque.


Nesse sentido, faz uma crítica da moral e consequentemente, da filosofia. Para o autor, não passa de “uma catarata das mais espessas que cega o espírito humano. Uma catarata se compõe de 600 mil volumes que discursam contra as paixões e contra a atração, em vez de estuda-las”. Portanto, não se trata aqui de criar um novo código moral ou reformar o já existente de forma racional. A única opção para a humanidade seria aceitar a primazia das paixões como regra geral moralmente válida, a atração passional como uma ética natural.


A aceitação dessa verdade universal seria o caminho para a construção de uma nova sociedade, batizada como “Harmonia”, que seria a superação da existente, a “Civilização”, baseada na repressão das paixões, na falsidade familiar, no vício comercial e opressão industrial. Este novo regime societário proposto, guiado pela atração passional, tendo como objetivo a satisfação total de todas as paixões humanas, seria o remédio para os males impostos pela sociedade burguesa de sua época.


É nesta busca que o filósofo francês dá a mulher um papel fundamental nesta superação de estágio da sociedade. As mulheres, uma das principais vítimas da opressão moral, ajustada para atender a manutenção do status quo social, deveriam se rebelar, renegar a idéia de casamento monogâmico consagrado pela sociedade, e agir na busca do seu prazer e se negar a cumprir o papel de submissão reservado a ela.


O grande filósofo alemão Friedrich Engels, que em sua obra clássica “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, ressalta essa postura “pró-feminista”, definindo como “magistral” a crítica fourierista sobre a relação entre os sexos e a posição destinada à mulher dentro da estrutura social burguesa. O filósofo alemão destaca que ele foi o primeiro a “proclamar que o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral”. Conforme aponta o filósofo Leandro Konder em sua obra “Fourier, o socialismo do prazer”, o socialista francês colocava a mulher como o melhor indicador possível do progresso social autêntico de uma sociedade, quanto mais a s mulheres de um determinado corpo social avançavam em direção à liberdade, maior seria o desenvolvimento histórico e cultural conquistado.


Para tal objetivo, o amor seria um artifício revolucionário, na medida em que se torna subversivo ao opor-se ao casamento monogâmico imposto pela Civilização, uma instituição contrária à natureza. Postas dentro de uma sociedade que as obrigava “a escolher entre a prostituição mais ou menos evidente ou disfarçada e a escravidão conjugal”, as mulheres deveriam recusar à fidelidade obrigatória, para poder dar vazão às suas paixões.


O casamento monogâmico recebe três críticas na obra fourierista: a primeira diz respeito a sua condição antinatural, isto é, baseado na premissa de repressão de paixões característica da Civilização, o elo conjugal permanente e exclusivo castra o desenvolvimento humano, transforma a relação amorosa em monotonia irremediável, além de criar uma espécie de agressividade oriunda da impossibilidade do exercício da natureza passional do indivíduo.


O segundo argumento contrário a união monogâmica critica a posição de submissão e inferioridade dedicada a mulher. Para Fourier, na Civilização “o sexo forte oprime os dois sexos fracos, as mulheres e as crianças”. Assim, o matrimônio se transformava em uma relação de despotismo na esfera doméstica, reduzindo a mulher a condição de propriedade do marido.


Por fim, o casamento também cria uma fragmentação social, isto é, cria uma unidade voltada para si mesma, assim reproduz o individualismo e egoísmo, considerados pelo autor como sintomas da degradação presente na Civilização. É desta forma que Fourier denuncia o casamento burguês, relação que explicita a hipocrisia da sociedade industrial, que transforma a via amorosa, que deveria ser o livre e pleno exercício das paixões em uma forma de coação, de redução da figura feminina.


A manutenção da ideia de casamento monogâmico após a Revolução Francesa, na visão do filósofo francês, era mais um dos fatos que comprovavam a ineficiência da tão aclamada revolução. O matrimônio seguiu como apenas um meio de ascensão social, onde um homem vil, por meio da sedução e astúcia, poderia usar uma mulher para atingir mais facilmente a fortuna e a respeitabilidade. Assim, só sobraria às mulheres viver sob a coerção de um marido que não a desejava de forma passional, ou seja, estariam condenadas a ter uma existência sob condições insuportáveis.


Fourier se solidarizava às mulheres consideradas adúlteras, pois considerava que com esta postura de infringir as regras do matrimônio impostas pela sociedade vigente, elas proporcionariam alegrias aos seus amantes e a elas mesmas, ou seja, a traição criaria condições para que o amor pudesse satisfazer-se totalmente, sem as limitações convencionadas pelos civilizados. Indo mais além, condicionava a felicidade do gênero masculino justamente à negação desta convenção da lealdade extrema feminina, os homens seriam felizes na proporção direta da resistência das mulheres à ideia de obrigação de fidelidade absoluta na sua relação conjugal.


De forma satírica, o autor ao fazer campanha contra o casamento explora a figura do marido traído, criando 144 espécies de cornos, dentre eles o corno sarcástico, o corno mimado, o corno viajante, o corno resignado, o corno marcial, o corno inconformado, o corno politicamente hábil, o corno cínico, o corno perplexo, entre outros tipos. Assim, por meio do humor, Fourier defendia o exercício da liberdade feminina em busca da prática do amor, conceito chave em sua obra.


Para ele, “a liberdade amorosa desenvolve preciosas qualidades nas classes que dela mais desfrutam: as senhoras da alta sociedade, as cortesãs de bom-tom e as pequeno-burguesas solteiras. É entre essas três espécies de mulheres que podem ser percebidos os desenvolvimentos mais felizes. Reunidas as qualidades delas constituiriam a perfeição”. Essa postura libertária, da qual todas as mulheres deveriam compartilhar, as qualificariam como finas, cordiais, generosas, simpáticas, compreensivas, além de deixá-las familiarizadas com o prazer.


Assim, as mulheres devem buscar adquirir experiência em sua vida amorosa, porém com uma prudência estratégica, enquanto a nova sociedade não é alcançada. Neste cenário ainda hostil à liberdade feminina, a mulher deve tratar de se preservar, mesmo que usando mentiras e dissimulações quando a situação exigir. Fourier deixa claro que é totalmente legítimo que as mulheres, quando oprimidas, utilizem da falsidade como defesa. E esvazia todo o valor moral que o ato teria, já que a culpa dele é exclusiva da civilização que a oprime.


Para ele, as mulheres na civilização carregam um peso inumano. São julgadas pela sociedade com base nos costumes originados pela opressão da própria sociedade, são consideradas dissimuladas por assim agirem em reação a supressão de sua liberdade. Assim, há essa inversão de causa e efeito, a dissimulação que seria uma reação à repressão masculina passa a ser justificativa da coerção. Assim os civilizados aceitam que a falsidade é “um atributo natural e invariável do sexo feminino”. Assim, a partir desta operação ideológica, a mulher, considerada falsa e dissimulada, deve ser um dos focos da educação civilizada: todo o esforço deve ser no sentido de inserir um espírito de docilidade e obediência, para que estejam preparadas a se sujeitar ao papel submisso de esposa.

por Lucas Medina

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