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REIMPRESSÕES

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"Mercantilismo e capitalismo"



A confusão com que historiadores e ensaístas têm encarado os problemas próprios da fase em que a navegação oceânica proporcionou as grandes descobertas, e estas a colonização, obriga a uma atenção maior para o quadro do tempo, naquilo que originou a referida confusão, no fundo uma confusão entre mercantilismo e capitalismo, problema de Economia Política a que a História não pode ficar indiferente. A elucidação desse problema permitirá um entendimento mais claro de alguns aspectos fundamentais do desenvolvimento histórico na época da expansão ultramarina: o da transferência sucessiva de predomínio econômico das repúblicas italianas para os países da península ibérica, destes para a Holanda, desta para a Inglaterra; a caracterização do modo de produção predominante no ocidente europeu na fase das descobertas; a caracterização do papel de Portugal na referida fase e particularmente na colonização do Brasil; a caracterização da colonização do Brasil, finalmente. Sem distinguir com clareza o mercantilismo, processo peculiar ao tempo das descobertas, do capitalismo, processo e modo de produção posterior àquele tempo, o quadro permanecerá confuso e propício a deformações. Produzir é uma coisa; trocar é outra coisa. Os que produzem são os que trocam, por vezes; por vezes não são. Quase tudo que é objeto de uso é produzido; nem sempre é trocado. Ao destinar-se à troca, ao destinar-se ao mercado, assume o caráter de mercadoria: não é produzido para consumo imediato e local, deve ser transportado ao mercado e trocado. É trocado por outra mercadoria qualquer, por mercadoria especial básica ou por dinheiro. Com o passar dos tempos, as trocas se desenvolvem, cresce o mercado, as relações tornam-se complexas. Tais relações terminam por especializar atividades: uns produzem, outros trocam. A especialização surge, entre outras razões, em virtude do fato de que há, na época a que nos referimos, um hiato entre a produção e a troca. Quando o modo escravista caracterizou a classe dominante como proprietária da terra e do escravo e fez surgir o Estado, as trocas adquiriram um grande impulso. Isto nos prova que o comércio, como o uso do dinheiro, remontam a tempos muito recuados. Foi a necessidade de produzir mais, devida à pressão do comércio, que forçou as transformações que fizeram a sociedade evoluir do modo escravista para o modo feudal de produção, com a fase intercalar do colonato. Daí em diante, a classe dominante tinha a propriedade da terra mas do servo apenas uma propriedade incompleta. Antes, sob modo escravista, tirava dos que trabalhavam a totalidade do que produziam, utilizando-os como animais. O feudalismo mostra que os que exerciam a propriedade tiravam do servo não mais a totalidade mas uma contribuição, em trabalho, em espécie ou em dinheiro, para consumo do senhor ou para a troca do senhor, e que a contradição repousava na disputa dessa contribuição, que o proprietário deseja cada vez maior. Quando o feudalismo declina e as trocas assumem o novo impulso que anuncia o mundo moderno, a divisão social do trabalho ampliara largamente o seu campo e, na medida em que as atividades se separavam, as coletividades trocavam o que produziam umas com as outras. Nessa fase de declínio feudal é que aparece o mercado interno, o mercado nacional. Dentro de determinadas áreas geográficas, particularmente naquelas em que se operou a centralização monárquica, em que os poderes foram unificados, principalmente o de tributar, uns dedicam-se às atividades da terra, outros às atividades urbanas, uns trocam com os outros o que produzem, empregando o dinheiro para facilitar as trocas. Começa a ter uma função destacada o capital comercial e, logo depois, muitas vezes ao mesmo tempo, começa a operar o capital usurário. Capital comercial é o que se forma, o que se gera na troca de mercadorias. Capital usurário o que se forma, o que se gera do emprego do dinheiro. Quando surge a fase dos descobrimento ultramarinos, são estas as formas de capital que o homem conhece e utiliza. É da mesma fase a transformação na produção que faz surgir e desenvolver-se a manufatura. É indispensável conhecer e distinguir perfeitamente o papel daquilo que se conhece como capital comercial na época dos descobrimentos e daquilo que é o capital comercial hoje, o modo capitalista de produção. Este aparece quando a produção domina o comércio, subordina-o ao seu desenvolvimento; aquele, ao contrário, aparece quando a produção simples de mercadorias alcança um certo desenvolvimento e o dinheiro facilita as trocas. Desenvolve-se com a ampliação do mercado e com o aumento da produção de mercadorias, “mas o seu desenvolvimento, em si mesmo, é insuficiente para poder realizar e explicar a passagem de uma ordem de produção a outra”, isto é, da ordem feudal à ordem capitalista. [1] O aparecimento do capital comercial é muito anterior, assim, ao aparecimento do capitalismo como modo de produção. O primeiro é capital aplicado unicamente na esfera da circulação de mercadorias: todo produto suscetível de troca era apoderado pelo capital comercial, fosse produzido como fosse, que auferia lucro da exploração dos extremos com os quais operava. Diz, então, a esse respeito um mestre: “Um desenvolvimento independente e predominante do capital como capital comercial equivale à insubmissão da produção ao capital, isto é, ao desenvolvimento do capital sobre uma base que lhe é estranha e sob uma forma social de produção dele independente.” [2] No regime capitalista de produção o capital comercial perde, ao contrário, a sua independência anterior, para converter-se em dependente, em servidor do capital industrial. “Não cabe a menor dúvida, — diz o mesmo autor, — e precisamente este fato deu lugar a conceitos completamente errados, que nos séculos XVI a X V III as grandes revoluções que tiveram lugar no comércio, decorrentes das descobertas geográficas, e que intensificaram rapidamente o desenvolvimento do capital comercial, constituem um momento principal no estímulo à passagem da ordem de produção feudal à capitalista. A súbita ampliação do mercado mundial, a multiplicação das mercadorias em circulação, a concorrência entre as nações europeias para apoderar-se dos produtos asiáticos e dos tesouros americanos, e o sistema colonial, contribuíram essencialmente para romper as barreiras feudais de produção. A ordem moderna de produção, todavia, em seu primeiro período, o da manufatura, somente se desenvolveu onde as condições para a manufatura se tinham criado dentro da Idade Média. Compare-se, por exemplo, a Holanda com Portugal.” [3] O processo de que surge o capitalismo é, pois, endógeno; ele surge de condições internas do país ou região em que se implanta; não surge de condições externas, não surge do capital comercial, como causa única e necessária. Surge na esfera de produção, quando duas condições são satisfeitas: — a existência de uma produção simples de mercadorias suficientemente desenvolvida e em processo de desintegração em que os poucos artesãos e camponeses enriquecidos se transformam em capitalistas; e os muitos arrumados, em operários assalariados; — a existência de uma acumulação primitiva, seja decorrente da atividade comercial e predatória, seja decorrente da expropriação violenta e em massa de camponeses e artesãos. Mas é evidente que, mesmo quando não levam a uma etapa em que as duas condições acima especificadas são satisfeitas, o capital comercial e o capital usurário têm um papel auxiliar na transformação de que surge o capitalismo. Contribuem, em primeiro lugar, para formar uma fortuna em dinheiro independente da propriedade da terra. O dinheiro aparece, cada vez mais, como riqueza verdadeira, como riqueza universal. A usura tem um efeito duplo: constitui, ao lado da classe mercantil, uma fortuna em dinheiro independente, e apropria-se, de outro lado, das condições de trabalho, arruinando os antigos proprietários destas e contribuindo poderosamente para realizar as condições do trabalho industrial. A usura aparece por força de empréstimos de dinheiro a senhores pródigos, principalmente proprietários de terras, e por empréstimos de dinheiro a pequenos produtores, senhores de suas próprias condições de trabalho, aqui compreendidos os artesãos, mas principalmente os camponeses. De um lado, assim, a usura ataca e destrói a antiga riqueza e a antiga propriedade feudal; de outro lado, ataca e destrói a pequena produção camponesa e artesanal, sob todas as formas em que o produtor aparece ainda como proprietário do campo que ele cultiva, da matéria-prima que trabalha, dos animais que utiliza. A expropriação do pequeno produtor, operada pelo capital usurário, corresponde a uma verdadeira subversão no modo de produção porque, em lugar de permanecerem isolados, como pequenos produtores, artesãos e camponeses são reunidos em vastas oficinas onde seu trabalho se encadeia e se completa, cada um fazendo uma parte desse trabalho. Os instrumentos, que antes utilizavam, quando produziam para si, cedem lugar às máquinas, que produzem para o capitalista. O modo de produção não permite mais, no seu desenvolvimento inexorável, a dispersão dos instrumentos de produção da fase da pequena propriedade, assim como não permite o trabalho isolado do operário. A usura centraliza, também, a fortuna em dinheiro nas áreas em que, até então, os meios de produção estavam dispersos. Ela não modifica o modo de produção, liga-se a ele, — diz um economista, — “como parasita e torna-o miserável”. Esse enfraquecimento das formas antigas de produção torna-as exaustas de sentido, operando em condições cada vez mais difíceis. Daí o ódio que o povo votava à usura, ódio particularmente forte, acentua um historiador: “quando o direito de propriedade do produtor sobre suas condições de trabalho constituía, ao mesmo tempo, a base da organização política e da independência do cidadão.” Um país ou região, assim, só consegue atingir a fase capitalista de produção quando: — dispõe de uma massa de trabalhadores sem posses, pessoalmente livres mas privados dos meios de produção e de subsistência, obrigados por isso a trabalhar mediante salário para o capitalista; — dispõe de uma acumulação de riqueza em dinheiro necessária à criação das grandes empresas capitalistas. Na história, houve países que atingiram papel relevante na troca e, assim, geraram um capital comercial vultoso para o tempo, mas não alcançaram, com isso, as condições indispensáveis para passar de um modo de produção feudal a um modo de produção capitalista, ainda que tivessem, na fase mercantil, função vanguardeira. Essa função declinou justamente em consequência de não se ter sucedido à fase mercantil uma fase capitalista, de não ter o capital auferido na esfera da produção substituído o capital auferido na esfera da circulação. Foi este o caso das repúblicas italianas, sob determinadas condições, uma vez que ali as manufaturas encontraram lugar antes que surgissem em outras áreas. Foi este o caso de Portugal e Espanha, onde o capital comercial apresentou relevo singular, já sob outras condições, de vez que as manufaturas não conseguiram alcançar um nível de desenvolvimento que permitisse a transformação subsequente. Na época dos descobrimentos, pois, não há nenhuma razão para admitir a existência de capitalismo. A empresa das navegações é pertinente ao capital comercial. [4] Páginas 21 a 26 de Formação Histórica do Brasil, publicado pela Editora Brasiliense em 1964. Escrito por Nelson Werneck Sodré NOTAS

[1] “Na origem, a transformação dos ofícios e da agricultura feudal em explorações capitalistas tinha como condição o comércio. Este transforma o produto em mercadoria, seja porque lhe abre saídas ou cria novos equivalentes, seja porque fornece à produção novas matérias-primas ou auxiliares e faz nascer novas especialidades repousando diretamente no comércio: elas produzem para o mercado nacional e o mercado mundial e as condições de sua produção decorrem do mercado mundial. Com o seu progresso, a manufatura e a grande indústria sobretudo criaram um mercado que conquistaram com as suas mercadorias. Então, o comércio é subordinado à produção industrial que não pode viver sem expandir continuamente o mercado. Com efeito, a produção em grosso invade cada vez mais o mercado existente e força o recuo dos seus limites. O que limita a produção em massa não é o comércio, enquanto ele não é mais do que a expressão da demanda mas a grandeza do capital em função e a força produtiva do trabalho. O capitalista industrial tem sempre os olhos fixos no mercado mundial; ele é forçado a comparar, e compara sem cessar, os seus próprios preços de custo de fabricação com os preços do mercado de seu país e do mundo inteiro. Antes, os comerciantes eram os únicos quase a fazer esta comparação e asseguravam, assim, ao capital comercial a supremacia sobre o capital industrial. O primeiro estudo teórico do modo de produção moderno, o sistema mercantil, partia necessariamente dos fenômenos superficiais do processo de circulação, tais como se manifestavam no movimento do capital comercial; não se apoiava, portanto, senão em aparências, em primeiro lugar porque o capital comercial é a primeira manifestação autônoma do capital, depois porque, nas primeiras alterações da produção feudal e no início da produção moderna, ele exerceu uma influência preponderante. A verdadeira ciência da economia moderna não começa senão no dia em que o estudo teórico passa do processo de circulação ao processo de produção.” (Karl Marx — op. cit. — págs. 120/122, X I.) [2] “O desenvolvimento autônomo e predominante do capital como capital comercial significa que o capital não é submetido à produção, mas que se desenvolve segundo uma forma social que se lhe tornou estranha. O desenvolvimento autônomo do capital comercial está, portanto, na razão inversa do desenvolvimento econômico geral da sociedade. No capital comercial autônomo, considerado como forma predominante do capital, o processo de circulação toma-se independente de seus extremos, os produtores que fazem as trocas. O produto torna-se aqui mercadoria pelo comércio; e não é o comércio que é devido ao movimento da mercadoria produzida. O capital como capital manifesta-se, portanto, em primeiro lugar, no processo de circulação, onde o dinheiro se converte em capital. É na circulação que o produto começa a se desenvolver como valor de troca, como mercadoria e como dinheiro. O capital pode e deve formar-se no processo de circulação, antes de saber dominar seus extremos, as esferas de produção entre as quais a circulação serve de meio termo. A circulação de dinheiro e de mercadorias pode servir de intermediária às esferas de produção das organizações as mais diversas que, por sua estrutura interna, são principalmente orientadas para a produção de valores de uso. Este caráter autônomo do processo de circulação, em que as esferas de produção são ligadas por um terceiro elemento, exprime duas coisas: em primeiro lugar, que a circulação não se apossou ainda da produção, mas supõem-na; depois, que o processo de produção não absorveu ainda a circulação como um simples elemento. É totalmente ao contrário na produção capitalista. O processo de produção repousa totalmente na produção, e a circulação não é senão uma fase transitória da produção, a simples realização do produto criado como mercadoria, a substituição de seus elementos de produção produzidos como mercadoria. O capital comercial, esta forma diretamente oriunda da circulação, aparece aqui simplesmente como uma das formas do capital engajado em seu movimento de reprodução.” (Karl Marx - op. cit. - pág. 107, X I.) [3] “Anteriormente à sociedade capitalista, é o comércio que domina a indústria; é o contrário na sociedade moderna. O comércio reagira mais ou menos sobre os grupos que dele participam; cada vez mais ele orientará a produção para o valor de troca, porquanto os meios de subsistência e de gozo dependerão cada vez mais da venda e da utilização imediata do produto. Ele destrói, portanto, a antiga organização. Ele aumenta a circulação do dinheiro. Ele não absorve mais simplesmente o excedente da produção; domina pouco a pouco a produção inteira. Mas este efeito depende muito da natureza do grupo produtor. (...) “O capital comercial, se é o único senhor, representa, portanto, um sistema de pilhagem; seu desenvolvimento é marcado, aliás, nos povos comerciantes da antiguidade como nos tempos modernos, devastação, de pilhagem marítima, de escravidão e de servidão nas colônias. Foi este o caso de Cartago, de Roma, de Veneza, entre os portugueses, os holandeses, etc.” (Karl Marx — op. cit. — pág. 112, X I.) [4] “E a revolução operada nos séculos XVI e X V II teve por base sobretudo a produção capitalista já criada. É o mercado mundial que institui a base desse modo de produção. Mas como esse modo tem como tendência imanente expandir a produção sem cessar, é necessário alargar, sem cessar o mercado mundial; não é o comércio que revoluciona a indústria, é a indústria que revoluciona constantemente o comércio. E mesmo a dominação comercial é então ligada à maior ou menor preponderância das condições da grande indústria. Exemplo: a Inglarra e a Holanda. A história da decadência da Holanda enquanto nação comercial é a história da subordinação do capital comercial ao capital industrial.” (Karl Marx — op. cit. — pág. 116, X I.)

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