"Cinema e Imperialismo no Brasil"
Entre os meios de comunicação que padronizam o comportamento de milhões, e são por isso chamados de massa, o cinema é o mais antigo, entre nós. A imprensa o antecedeu, certamente, mas a problema cronológico não é o essencial, no caso. Exigindo alfabetização, a imprensa, ainda que exercendo grande influência, não teve, particularmente no passado, característica de meio de comunicação de massa. A antecedência do cinema, assim, parece indiscutível. E cinema pode ser apreciado, e deve, sob o aspecto cultural e sob o aspecto econômico, material. Nos dois, fomos, por longos decênios, aqui, protagonistas de papel passivo: consumimos influências culturais estranhas, sofremos de sua penetração e domínio, ao mesmo passo que constituímos mercado consumidor de proporções crescentes para a produção estrangeira de filmes. Até a Primeira Guerra Mundial, quando o cinema estava na infância, consumimos preponderantemente filmes europeus; daí por diante, passamos a constituir um dos grandes mercados da indústria cinematográfica norte-americana. Já em 1921, Amador Santelmo podia escrever, com veracidade: “Na indústria do filme, o Brasil ainda dorme envolto em faixas, sem saber balbuciar uma palavra, e no mercado de exibições é um dos grandes importadores a enriquecer fábricas estrangeiras” [1].
Os esforços para fundar e desenvolver a indústria cinematográfica nacional começaram cedo, no Brasil; os obstáculos que esses esforços encontraram, como se verifica do pronunciamento antes referido, também foram cedo denunciados, Alberto Cavalcanti, diretor brasileiro que firmou o seu nome na Inglaterra e passou algum tempo entre nós, servindo a uma das tentativas de desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, fez diagnóstico indiscutível: “O cinema nacional sofre da moléstia do cosmopolitismo. Enquanto essa fase não for superada, nada irá adiante entre nós, em favor do desenvolvimento da sétima arte. Atores não nos faltam. O que nos falta é capital e trabalho de equipe”. Já fora do Brasil, em 1958, entretanto, colocava com exemplar clareza o problema. Não progredíamos, em produção cinematográfica nacional “por causa dos americanos, em primeiro lugar. Como o Brasil é um dos maiores mercados mundiais para o filme de Hollywood, não interessa aos americanos a existência de um cinema brasileiro” [2].
A história da nossa imprensa só pode ser bem compreendida sob a divisão em duas fases, a artesanal e a industrial, esta peculiar ao desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil. A do cinema deve relegar ao plano pioneiro, a uma espécie de proto-história, tudo o que, aqui, antecedeu a fase do desenvolvimento das relações capitalistas. Requer esse desenvolvimento um nível muito mais avançado do que aquele exigido pela imprensa, para mudar sua qualidade e passar à segunda fase. Porque, na realidade, o problema da fundação de uma indústria cinematográfica nacional só pode ser colocada após a Revolução de 1930. E até a legislação, não por coincidência, assinala essa mudança de condições. Ela é praticamente inaugurada em 4 de maio de 1932, com o Decreto-lei 21.240, que nacionalizou o Serviço de Censura Cinematográfica para Educação Popular. Dez anos depois, sob o Estado Novo, apareceu o Decreto-lei 4.064, de 29 de janeiro de 1942, que criou, no DIP. (Departamento de Imprensa e Propaganda), o Conselho Nacional de Cinematografia, Dez anos depois, o Governo encaminhou ao Congresso Nacional um anteprojeto de lei, eriado uma autarquia industrial, com atribuições para indicar medidas de fomento à indústria, comércio e arte cinematográficos.
Na primeira fase de sua campanha, os homens de cinema, no Brasil, haviam congregado esforços e conseguido alcançar do Governo algumas medidas: a obrigatoriedade da exibição de um “complemento nacional” em todos os programas do cinema do país; e a obrigatoriedade da exibição de um filme brasileiro de longa metragem em cada quadrimestre, no modesto total de três por ano. Mais tarde, a proporção seria elevada para um filme de longa metragem para cada grupo do oito filmes estrangeiros. A realização de dois Congressos Nacionais do Cinema Brasileiro assinalou novo avanço. No segundo, ficou fixada a definição de filme brasileiro: capital totalmente brasileiro, realizado em estúdios e laboratórios brasileiros, com argumento e diálogos escritos por brasileiros e com equipes técnica e artística obedecendo à Iei dos dois terços. Ficou estabelecida, também, a criação de uma Escola Nacional de Cinema, na Universidade do Brasil; a criação de cursos de história e estética cinematográficas, nas faculdades oficiais de Filosofia; o estudo do mercado cinematográfico brasileiro, para fixação das quotas máximas de importação de filmes estrangeiros, revendo-se, periodicamente, a lei de proporcionalidade (1 por 8), na medida do desenvolvimento da produção nacional; a liberdade de importação de filme virgem, estimulada sua produção no Brasil; o estabelecimento de condições para o financiamento à produção cinematográfica. Esse rol de reivindicações mostra o grau de conscientização a respeito do cinema, já em 1953, quando do II Congresso Naciomal do Cinema Brasileiro, realizado em São Paulo.
Surgia, em 1956, a Comissão Federal de Cinema, de composição heterogênca, mas de cujos trabalhos se originou o projeto de lei criando o Instítuto Nacional de Cinema, a proposta de emenda à lei aduaneira para taxação ad valorem dos filmes importados, a proposta de transferência do Serviço de Censura para o Ministério da Educação e Cultura, a recomendação sobre a necessidade de ser cumprida a lei que tratava da remessa de lucros das distribuidoras estrangeiras para o exterior. O Brasil importava um total de filmes superior à sua capacidade de consumo: possuindo, na época, cerca de 3.000 cinemas, vinha importanto, no decênio, mais de 500 filmes por ano; podendo girar no país durante cinco anos, equivaliam a 2.500 filmes estrangeiros em circulação; ao mesmo passo, havia 150 filmes nacionais no mercado, à base da média anual de 30. O volume dos negócios realizados na área de exibição era já enorme. Segundo o Anuário Estatístico do Brasil (1952), já em 1950 o número de espectadores era de 180.653.657, sobre 2.411 salas de exibição, estimando-se, para 1953, um total de 250 milhões de entradas vendidas; ao preço médio de 5 cruzeiros (da época, já se vê), o movimento, naquele ano, não seria inferior a Cr$ 1.250.000.000,00 [3]. Cavalheiro Lima advertia, a esse repeito: “No ano máximo da produção nacional, em 1953, o movimento de vendas foi realizado por 34 fitas brasileiras, contra 578 longa-metragens, de enredo, importadas, das quais 344 dos EUA, distribuídas em sua quase totalidade por empresas subsidiárias da produtora, carreando assim cerca de dois terços das rendas para o exterior” [4].
Alex Viany, na sua excelente “Introdução ao cinema brasileiro”, define o problema com clareza: “A raiz de todos os males, em qualquer estudo honesto, é encontrada na crescente penetração dos monopólios estrangeiros, direta ou indiretamente, na estrutura do movimento cinematográfico no Brasil” [5]. Viany mostrou como o campo da distribuição “vem sendo, há muitos anos, dominado pelas agências dos monopólios estrangeiros, especialmente dos norte-americanos”; como, “por meio de processos em geral ilícitos, esses agentes têm sempre dificultado a divulgação dos filmes brasileiros em nosso próprio mercado”; como há um dumping “favorecido pela ausência de barreiras alfandegárias” [6]. Denunciava como, curiosamente, distribuindo filmes nacionais e colocando-os na cabeça de lotes de maus filmes estrangeiros, os distribuidores operavam uma transformação: “E para aumentar ainda mais a evasão de divisas, já que parte da renda do filme brasileiro foi adicionada aos lucros exportáveis da distribuidora norte-americana” [7]. A lei – sempre burlada – permitia, depois de 1958, remeter 70% de tais lucros ao câmbio livre e 30% ao câmbio oficial.
A copiagem obrigatória por laboratórios brasileiros de filmes estrangeiros, instituída em 1952, e que poderia ter constítído forte impulso à implantação de infra-estrutura indispensável ao desenvolvimênto da indústria cinematográfica nacional, provocou grandes investimentos nessa área; quinze meses depois, em 23 de março de 1954, a famigerada SUMOC reduzia à metade a obrigação da copiagem e aqueles investimentos entraram em colapso. A Associação Profissional da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo acusou, na oportunidade, o Governo de atender “unilateralmente os interesses da Motion Pictures Association, entidade representativa das grandes companhias americanas”. Na Câmara, o deputado Aurélio Viana, baseado em estatísticas fornecidas pela Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, denunciava a remessa de lucros dos exibidores norte-americanos como ultrapassando 685 milhões de cruzeiros, só em 1955 [8]. O depoimento, na época, de outro parlamentar, o deputado Celso Brant, era no mesmo sentido: “Como presidente substituto da Comissão Federal de Cinema, tive oportunidade de observar a pertinácia com que os representantes do cinema americano lutam contra o cinema nacional. Depois de árduos trabalhos, chegou aquela comissão à conclusão de que faria muito se conseguisse do governo brasileiro tratasse o nosso cinema em igualdade de condições com o cinema estrangeiro. E isto porque, tanto legal como ilegalmente, as nossas autoridades têm dado preferência de tratamento ao cinema norteamericano” [9].
Em 1963, a economia do cinema, em escala infernacional, denunciava a crise ligada à concorrência da televisão: a disputa de mercados tornou-se mais violenta. O Brasil, agora com cerca de 4.000 cinemas, representava um dos grandes mercados do mundo. Discutia-se esse problema no GEICINE, entidade encarregada de estudar tudo o que se referisse ao cinema no Brasil. Aqui, entretanto, assistia-se à guerra dos exibidores aos curta-metragens nacionais, cuja produção constituía a única escola prática para os nossos cineastas. Ao mesmo passo, “O pagador de promessas”, premiado em Cannes em 1962, era proibido na Espanha, enquanto, aqui, estavam em exibição cerca de 200 filmes espanhóis, “entrados sem censura, sem taxas, sem impostos, sem nada” [10]. Num debate sobre os problemas do cinema no Brasil, Luís Carlos Barreto mostraria que “a questão da regulamentação da importação de filmes estrangeiros é tão importante para o cinema nacional quanto a do ‘petróleo é nosso’. O cinema estrangeiro traz uma mensagem político-ideológica, traz uma mensagem cultural que está desservindo a cultura e a formação de uma mentalidade nacionalista no Brasil”. Completava assim sua denúncia: “Isso precisa ser frisado, mas com a maior veemência. O cinema estrangeiro, que aqui se importa a preço de banana, com os impostos liberados, traz uma mensagem cultural, ideológica e política e nós não damos a mínima atenção a isso. Estão infiltrando sua mensagem de graça. O IBAD pelo menos ainda paga para subornar alguém” [11].
José Carlos Burle, conhecedor do problema, já havia, em 1956, discriminado com clareza as formas de atuação dos monopólios cinematográficos norte-americanos. Sua explicação é muito interessante: “A história econômica do cinema mostra que, desde a formação, nos Estados Unidos, de um monopólio de produção de filmes, todos os cinemas nacionais passaram a viver num estado de dificuldade permanente. À razão dessa dificuldade reside na própria natureza do produto cinematográfico. Enquanto qualquer produto industrial não pode ser vendido a um preço inferior ao de seu custo, sem causar prejuízos ao produtor, o filme, já pago no mercado de origem, pode ser exportado e exibido até gratuitamente, sem prejuízos ao produtor. De modo que se chega a esta situação paradoxal: um filme de quatrocentos milhões de cruzeiros (já pago no mercado de origem) pode ser oferecido ao comerciante exibidor por um preço muito mais barato do que um filme de dois milhões de cruzeiros, de produção nacional, que precisa ser pago ainda no mercado interno. De outra parte, o espectador, com os mesmos doze cruzeiros, pode assistir a um filme de quatrocentos ou de dois milhões. A concorrência é flagrantemente desigual e favorável ao mercado de maior potencial econômico. Daí o domínio de Hollywood sobre o mercado mundial”.
Assim, estava intrinsecamente ligada à essência capitalista a questão do domínio exercido pelo cinema norte-americano. Mas, apesar disso, repetiam-se as tentativas de desenvolvimento do cinema nacional. Burle explica essas tentativas da maneira seguinte: “As nações e os governos entenderam, porém, que por serem os filmes, antes de simples mercadorias e objetos de comércio, um veículo de cultura e de afirmação nacional indispensável, havia necessidade, mesmo ao preço de subvenções, de criar e desenvolver tal indústria”. Ora, aqui é preciso um aparte: enquanto, no Brasil – e só podemos argumentar com o caso que conhecemos e nos preocupa – as relações capitalistas não alcançaram determinado nível, que se pode admitir como tendo sido alcançado com o após-guerra, em 1945, o problema do cinema nacional não se colocara ainda – salvo para aqueles diretamente vinculados às suas atividades – como questão controversa. Na realidade, embora o motivo alinhado por Burle, de natureza cultural, tenha importância, o cinema nacional apresenta-se como problema, no Brasil, quando o desenvolvimento das relações capitalistas o exige. Reconhecendo, de maneira indireta, essa causação. Burle mostraria, em sua análise, que a indústria cinematográfica brasileira atravessa uma fase de crise por força de três fatores: o tabelamento dos ingressos a preço vil, a invasão desenfreada do nosso mercado pela produção estrangeira e a ausência de auxilio financeiro da parte dos poderes públicos. Mostrava como as classes pobres, por sua alta frequência aos cinemas, possibilitavam às classes ricas um cinema barato, enquanto reduzindo a renda em cruzeiros, aumentava essa renda em dividas, pelo artificio de uma taxa cambial extremamente favorável aos produtos estrangeiros, “que exportam 70% de suas rendas ao câmbio oficial e mais ágio de Cr$ 25,00 por dólar, e 30% ao câmbio livre, favorecendo assim a evasão de dividas, com prejuízo da balança comercial e da nossa indústria cinematográfica”.
Burle denunciava como o Brasil se tornara um dos maiores importadores de filmes do mundo, de tal forma que, enquanto, em 1954, trezentos e cinquenta filmes conseguiam abastecer o mercado interno norte-americano, mais de dez vezes superior ao nosso, este admitia quinhentos e quarenta filmes de procedência estrangeira. Enquanto outros países coibiam esse dumping, por acordos comerciais limitando ou disciplinando as importações, na base da reciprocidade, ou oneravam a entrada de filmes em taxas alfandegárias e outras, tudo em defesa da produção nacional, no Brasil não existia nenhum acordo comercial a respeito e a tarifa de entrada praticamente inexistia. Em consequência, a renda média de um filme estrangeiro, aqui, era da ordem de Cr$ 7000.000,00, enquanto a do filme brasileiro atingia a casa dos três milhões, provando quanto o mercado interno o aceitava. Para Burle, finalmente, cinema é problema de governo, concluindo: “Mas os problemas só se tornam problemas de governo depois de tomarem corpo na consciência do país. O cinema brasileiro só existirá se o povo e seus representantes sentirem sua necessidade [12].
A luta pelo cinema nacional se desenvolveu na medida do desenvolvimento aqui das relações capitalistas. A estrutura cinematográfica que surgia das condições antes imperantes começaria a estalar e a ruir, sendo contestada e superada pelas novas condições. Em 1964, o filme nacional Vidas Secas, calcado no romance de Graciliano Ramos, ganhava três prêmios especiais no XVIII Festival de Cannes; Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, era consagrado pelo critica estrangeira. Ora, essa indústria que, no nível artístico, havia atingido posição tão destacada não poderia aceitar a estrutura comercial vigente no mercado interno. A crise surgiu em 1966: o representante do Sindicato dos Exibidores da Guanabara, Gilberto Ferrez, vinculava a crise à cobrança de pesados impostos e taxas, à concorrência da televisão e à inflação; as empresas Lívio Bruni e Luís Severiano Ribeiro, que dominavam 70% da exibição na Guanabara, pediam concordata, mencionando a contradição entre as entradas caras e o poder aquisitivo baixo da população.
Intervindo no debate, o crítico Alex Viany combatia “o absurdo tratamento de privilégios concedidos aos distribuidores que, para películas como James Bond-007, Beatles, etc., exigem aluguel na base de 70% da arrecadação do cinema que as exibem”, reivindicando “tratamento de igualdade aos [filmes] do cinema nacional, ou seja 50% sobre a arrecadação”. Concluía: “Limitando o lucro das películas estrangeiras e ratificando a margem atual de 50% dos filmes nacionais, poder-se-á atingir dois objetivos: melhorar a situação financeira das exibidoras – que assim, poderão cobrir eventuais prejuízos com a arrecadação obtida com as fitas de qualidade inferior – e oferecer oportunidade ao cinema do Brasil de competir com o alienígena”[13].
O Presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica, Ronaldo Lupo, denunciava aqueles pedidos de concordata como parte de um plano “para derrubar a lei de compulsoriedade de exibição de filmes nacionais e conseguir maiores vantagens para empresas estrangeiras, cujo interesse é obter o maior número de datas para os seus filmes, em detrimento dos nacionais”[14]. Ferrez voltava à discussão afirmando agora claramente “que os atuais filmes brasileiros, em que são abordados problemas sociais, principalmente os do Nordeste, afugentam uma grande camada de público, em virtude da clara tendência esquerdista, da brutalidade desnecessária e o grande número de palavrões”. Além de denunciar os produtores nacionais ao DOPS, assim, Ferrez afirmaria que a obrigatoriedade de exibir filmes nacionais estava acarretando prejuízos aos exibidores [15]. A lei determinava que os cinemas deviam reservar 56 dias por ano à exibição de filmes brasileiros, à razão de 14 dias por trimestre. “Qualquer estatística realmente séria – definiria Alex Viany – mostrará que o filme brasileiro rende mais, em média, do que o filme estrangeiro, executando-se uns poucos exemplares da superprodução internacional que vem carregados de estrelas e publicidade. Mas, pau a pau, vence sempre o nacional” [16].
A crise provocou a intervenção do Conselho Administrativo de defesa da Economia (CADE). Seu procurador-geral Paulo Germano Magalhães, seria incisivo em seu pronunciamento: “As companhias exibidoras boicotam o cinema nacional porque, ao assinarem contrato com as empresas estrangeiras de cinema, comprometem-se a apresentar filmes como A noviça rebelde e My fair lady, pelos quais dão até 70% da renda”. Acrescentava: “Vamos realizar agora uma pericia na escrita das empresas exibidoras, para apurar a denuncia de que os exibidores exigem dos produtores nacionais recibo referente ao recebimento de 50% de renda da apresentação de seus filmes, quando, na verdade, no muito, pagam-lhes 40%”. Detalhava: “A recusa dos exibidores em dobrar a apresentação de um filme nacional é consequência do interesse da programação estrangeira”. E rematava: “A CPI revelou que, enquanto, nos Estados Unidos, há 2,3 milhões de assistentes para 526 filmes; na Alemanha Ocidental, 609 milhões de assistentes para 552 filmes; na Inglaterra, uma plateia de 515 milhões de pessoas para 308 filmes; na Itália, 527 filmes são vistos por 745 milhões de cidadãos, e que, na França, há 372 milhões de público para 426 filmes, no Brasil há 3030 milhões de espectadores para 749 filmes. Tais dados indicam que o Brasil enviou para o exterior 68 milhões e 741 mil dólares, pela importação de filmes, no período de 1954-60” [17]. Em 1966, realmente, o cinema norte-americano faturou 1 bilhão e 5 milhões de dólares. No Brasil, um sucesso de bilheteria já podia atingir, apenas no mercado interno, 1 bilhão de cruzeiros de faturamento [18]. Diante disso tudo, entretanto, permanecia inerte o recém-criado instituto Nacional do Cinema.
Em 1969, alterando suas formas de ação, Hollywood fundava a “Latin American Performing Arts Foundation” que, segundo a revista “Film and television Daily”, visaria “promover relações de emprego equânimes na indústria cinematográfica”, mas, na verdade, confirme acusaria o cineasta brasileiro Luís Carlos Barreto, pretendia, tal como fizera na Espanha, no México e mesmo na Itália, controlar “mercados de produção mais barata”, produzindo aqui filmes “turísticos e exóticos”, aproveitando “mão-de-obra a baixo do custo” e inflacionando o mercado [19]. Quais as dimensões da indústria cinematográfica brasileira e de nosso mercado para absorver a sua produção? Em fins de 1968, existiam, no Brasil, 3 926 salas de exibição, quando em 1948, existiam apenas 2 248; nesse ano, foram ao cinema, aqui, 185 568 360 pessoas, mas em 1968 esse numero seria muito maior: 321715 384. Já em 1967 era o Brasil oitavo entre os principais mercados cinematográficos mundiais, superado apenas pelos Estados Unidos, Inglaterra, Japão, Índia, Alemanha e França; naquele ano, em todo o mundo haviam sido arrecadados, com a venda de entradas de cinema 6 bilhões de dólares; ainda em 1967, os investimentos totais, na indústria cinematográfica mundial, haviam atingido a um bilhão e trezentos milhões de dólares. No Brasil, as vendas de entradas, naquele ano, haviam chegado a 180 bilhões de cruzeiros, e os investimentos em produção, importação, exibição, estúdios, laboratórios e instalações industriais diversas atingiam 20 milhões de dólares ou, ao câmbio da época, 80 bilhões de cruzeiros. Desde 1909, quando se fez no Brasil, o primeiro longa-metragem, produzimos um total de 1 000 filmes; 87 no período entre 1965 e 1968, exigindo investimentos da ordem de 8,7 bilhões de cruzeiros, na média de cem milhões por filme. Em 1968, a produção nacional correspondera a cerca de 15% do volume total de filmes importados, que haviam atingido a 600 [20].
Em 1969, ao reunir esforços para reivindicar dos poderes públicos uma orientação favorável ao desenvolvimento do cinema nacional, nossos cineastas assim realizavam o balanço do que havíamos alcançado: “Com uma produção superior a 70 filmes por ano e uma arrecadação de Cr$ 180 milhões, em 1968 colocando entre os principais mercados cinematográficos do mundo e oferecendo trabalho para 50 mil pessoas, o cinema brasileiro vai se firmando com uma indústria capaz de auto sustentá-lo. Os produtores tem apenas uma reivindicação básica e imediata: aumento de reserva de mercado para filmes nacionais de 56 para 112 dias por ano. Sem isso, dizem, o cinema brasileiro irá à falência em seis meses, por cerca de 40 filmes já estão nas prateleiras, aguardando data para exibição. O INC estuda a questão: suas tendências é aumentar a obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros, mas apenas para 74 dias. Depois de conseguir 38 prêmios internacionais em quatro anos, de investir Cr$ 15 milhões no setor da produção para criar sua infra-estrutura industrial e de triplicar o número de filmes em um ano, o cinema brasileiro vai deixando o amadorismo de lado. Hoje já se vê o cinema como uma indústria capaz de produzir lucros como outra qualquer” [21].
Há que penar, também, na deformação cultural: Há mais de meio século, o cinema norte-americano trabalha o espirito de massas brasileiras, apresentando o seu Way of Life, insto é, o cow-boy, o gangster, a violência desenfreada, e as suas glórias, os seus mitos, os seus heróis – a cultura, em suma. Que isso tenha sido assim, e continue a ser assim, constitui, por si só, anomalia indiscutível, das mais graves e profundas a que já foi submetida a cultura, em qualquer época, em qualquer país; mas que, além disso, essa gigantesca deformação tenha sido financiada pelas próprias vítimas – como se aos condenados coubesse pagar o serviço dos carrascos – constitui um dos problemas singulares da época histórica em que vivemos. A deformação se apresenta como dimensões tão extraordinárias e com duração tão longa que chegou ao cúmulo de ganhar foros de naturalidade, como se o contrário é que fosse absurdo.
Por longos e longos decênios, foram familiares aos brasileiros padrões de comportamento inteiramente diversos dos aqui vigentes, e hábitos, e normas, e regras. Por longos e longos decênios, nossas crianças adoraram heróis estrangeiros, sentiram-se fascinados por seus feitos, incorporaram impressões e sentimentos deles derivados à sua cultura. Por longos e longos decênios as massas brasileiras aprenderam histórias norte-americanas, cultuando feitos norte-americanos, adotando posições norte-americanas. E, por tudo isso, há longos e longos decênios, vem pagando, e pagando caro. Nossos jovens mal conhecem Rondon, mas certamente estão familiarizados com a conquista do oeste norteamericano, mal conhecem os comandantes que, à frente de nossos pracinhas, estiveram em Monte Castelo em Montese, mas estão perfeitamente a par do papel dos Eisenhower e dos MacArthur; mal sabem os nomes das tribos que viviam em nosso litoral, mas distinguem facilmente apaches e comanches. Pior do que isso: assimilam padrões culturais de uma civilização em crise, angustia entre sexo e violência. Esse tem sido o papel de descaracterização cultural que o cinema norte-americano vem desenvolvendo, há mais de meio século, no Brasil. Não há talvez, em toda a história, exemplo tão gigantesco de alienação cultural.
Escrito por Nelson Werneck Sodré, in. Síntese de História da Cultura Brasileira, págs. 79-92.
REFERÊNCIAS
[1] Amador Santelmo: “A arte cinematográfica no Brasil”, in “A Fita, Rio”, 7 de maio de 1921, citado por Alex Viany: “Introdução ao cinema brasileiro”, Rio, 1969, págs. 15 e 56.
[2] Citado por Alex Viany: op. Cit., pág. 139.
[3] O cálculo é de Cavalheiro Lima: “Problemas da economia cinematográfica”, São Paulo, 1954, pág. 1.
[4] Idem, pág. 1.
[5] Alex Viany: op. cit., pág. 157. É impossível conhecer a história e os problemas do cinema brasileiro sem consulta a essa fonte fundamental.
[6] Idem, págs. 157-158.
[7] Idem, pág. 160.
[8] O Semanário, Rio. 29 de outubro de 1960.
[9] Idem, 3 de novembro de 1960.
[10] Última Hora, Rio, 3 de Agosto de 1963.
[11] Idem, 27 de julho de 1963.
[12] José Carlos Burle: “Cinema, problema de Governo”, in para todos, Rio, 12 de setembro de 1956.
[13] Correio da Manhã, Rio, 29 de maio de 1966.
[14] Idem, 31 de maio de 1966.
[15] Idem, 12 de junho de 1966.
[16] Folha da Semana, Rio, 16 de junho de 1966.
[17] Correio da Manhã, Rio, 10 de julho de 1966.
[18] Idem, 2 de agosto de 1967.
[19] Idem, 22 de janeiro de 1969.
[20] Rui Rocha: “Cinema é indústria”, in Correio da manhã, Rio 3 de junho de 1969.
[21] Álvaro Caldas: “Cinema vai se firmando como indústria”, in jornal do Brasil, Rio, 22 de junho de 1969.