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REIMPRESSÕES

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Mariátegui: "Filosofia moderna e Marxismo"



Com linguagem bíblica, o poeta Paul Valery expressou uma linha genealógica em 1919: “E foi Kant que gerou Hegel, que gerou Marx, que gerou...”. Embora a Revolução Russa já estivesse em andamento, ainda era cedo para não se contentar com prudência com essas elipses, quando se tratava dos descendentes de Marx. Mas em 1925, C. Achelin os substituiu pelo nome de Lenin. E é provável que o próprio Paul Valéry não tenha achado ousado demais esse modo de completar seu pensamento.


O materialismo histórico reconhece em sua origem três fontes: a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês. Este é precisamente o conceito de Lenin. Segundo este, Kant e Hegel precedem e originam Marx, primeiro, e Lenin, depois. Acrescentamos da mesma forma que o capitalismo precede e origina o socialismo. A atenção que tais representantes conspícuos da filosofia idealista, como os italianos Croce e Gentile, dedicaram ao pano de fundo filosófico do pensamento de Marx, certamente não é alheia a essa óbvia filiação ao materialismo histórico. A dialética transcendental de Kant prenuncia, na história do pensamento moderno, a dialética marxista.


Mas essa filiação não importa nenhuma servidão do marxismo a Hegel ou à sua filosofia que, segundo a famosa frase, Marx se levantou, contra a tentativa de seu autor, que o havia detido de cabeça para baixo. Marx, em primeiro lugar, nunca propôs a elaboração de um sistema filosófico de interpretação histórica, destinado a servir de instrumento para a realização de sua ideia política e revolucionária. Sua obra, em parte, é filosofia, porque esse tipo de especulação não se reduz a sistemas propriamente ditos, nos quais, como adverte Benedetto Croce, para quem a filosofia é todo pensamento de caráter filosófico, às vezes encontra apenas sua exterioridade. A concepção materialista de Marx nasce, dialeticamente, como a antítese da concepção idealista de Hegel. Essa mesma relação não parece muito clara para críticos astutos como Croce. “A ligação entre as duas concepções, diz Croce, parece-me, antes de tudo, meramente psicológica, porque o hegelianismo foi a pré-cultura do jovem Marx e é natural que cada uma vincule os novos aos velhos pensamentos, como desenvolvimento, como correção como antítese”.


Os esforços daqueles que, como Henri de Man, condenam sumariamente o marxismo como simples produto do racionalismo do século XIX, não poderiam, portanto, ser mais precipitados e caprichosos. O materialismo histórico não é, precisamente, materialismo metafísico ou filosófico, nem é uma filosofia da história, deixada para trás pelo progresso científico. Marx não teve que criar mais do que um método de interpretação histórica da sociedade atual. Refutando o professor Stamler, Croce afirma que “o orçamento do socialismo não é uma filosofia da história, mas uma concepção histórica determinada pelas condições atuais da sociedade e pelo modo como chegou a estas”. A crítica marxista estuda concretamente a sociedade capitalista. Enquanto o capitalismo não tiver transcendido definitivamente, o cânone de Marx permanece válido. O socialismo, isto é, a luta para transformar a ordem social de capitalista em coletivista, mantém viva esta crítica, continua-a, confirma-a, corrige-a. Qualquer tentativa de classificá-la como uma simples teoria científica é inútil, desde que funcione na história como um evangelho e um método de movimento de massa. Porque o “materialismo histórico – Croce fala novamente – surgiu da necessidade de realizar uma determinada configuração social, não mais de um propósito de investigar os fatores da vida histórica; e se formou na cabeça de políticos e revolucionários, não mais de frios e rítmicos bibliotecários sábios”.


Marx está vivo na luta pela realização do socialismo travada no mundo por inúmeras multidões, animadas por sua doutrina. O destino das teorias científicas ou filosóficas, que utilizou, superando-as e transcendendo-as, como elementos de sua obra teórica, não compromete em nada a validade e validade de sua ideia. Isso é radicalmente estranho à fortuna mutável das ideias científicas e filosóficas que a acompanham ou imediatamente a precedem no tempo.


Henri de Man formula seu julgamento assim: “O marxismo é filho do século XIX. Suas origens remontam ao tempo em que o reino do conhecimento intelectual, inaugurado pelo humanismo e pela Reforma, atingiu seu apogeu com o método racionalista. tirou a senha das ciências naturais exatas, às quais se deve o progresso das técnicas de produção e de intercomunicação, e consiste em transportar o princípio da causalidade mecânica, que se manifesta na técnica, para a interpretação dos fatos psíquicos. no pensamento racional, que a psicologia contemporânea só reconhece como função ordenadora e inibitória do psíquico, regra de todo desejo humano e de todo desenvolvimento social”. E então ele acrescenta que “Marx fez uma síntese psicológica do pensamento filosófico de seu tempo” (concordando que era “única na própria ordem sociológica, tão nova e vigorosa que não é lícito duvidar de sua genial originalidade”), e que “o que é expresso nas doutrinas de Marx não são os movimentos de ideias, que só surgiram, depois de sua morte, das profundezas da vida profissional e da prática social; É o materialismo causal de Darwin e o idealismo teleológico de Hegel. das profundezas da vida profissional e da prática social.


As sentenças irrecorríveis proferidas, por um lado, pelo Futurismo[1] e, por outro, pelo tomismo, contra o socialismo marxista. Marinetti reúne em um só fardo, para matá-los de forma mais rápida e implacável, Marx, Darwin, Spencer e Comte, sem cuidar das distâncias que podem mediar entre esses homens, em seus conceitos igualmente setecentistas e, portanto, executáveis. E os neotomistas, partindo do extremo oposto – da reivindicação da Idade Média contra a modernidade – descobrem no socialismo a conclusão lógica da Reforma e de todas as heresias protestantes, liberais e individualistas. Assim, De Man nem mesmo reivindica o crédito pela originalidade no esforço perfeitamente reacionário de classificar o marxismo entre os processos mentais mais específicos do “estúpido” século XIX.


Não é necessário reivindicar este século contra a diatribe artificial e superficial de seus execradores, para refutar o autor de Além do marxismo. Nem é preciso mostrar que Darwin, como Spencer e Comte, corresponde, em todo caso, de maneiras diferentes, ao modo de pensar do capitalismo, assim como Hegel, de quem descende – com o mesmo título aparente do revolucionário racionalismo de Marx e Engels – o racionalismo conservador dos historiadores que aplicaram a fórmula “todo racional é real”, para justificar despotismos e plutocracias. Se Marx não pôde basear seu plano político ou sua concepção histórica na biologia de De Vries, nem na psicologia de Freud, nem na física de Einstein; nem mais nem menos que Kant em sua elaboração filosófica teve que se contentar com a física newtoniana e a ciência de seu tempo: o marxismo – ou seus intelectuais – em seu curso posterior, não deixou de assimilar a mais substancial e ativa especulação filosófica e histórica pós-hegeliana ou pós-racionalista. Georges Sorel, tão influente na formação espiritual de Lenin, ilustrou o movimento socialista revolucionário – com um talento que Henri de Man certamente não desconhece, embora em seu volume ele omita qualquer citação do autor deReflexões sobre a violência – à luz da filosofia bergsoniana, dando continuidade a Marx que, 50 anos antes, a havia ilustrado à luz da filosofia de Hegel, Fichte e Feuerbach. A literatura revolucionária não abunda, como gostaria de Man, em revelações eruditas da psicologia, da metafísica, da estética etc., porque deve atender a objetivos específicos de agitação e crítica. Mas, fora da imprensa oficial do partido, em revistas como Clarté[2] e La Lutte des Classes[3] em Paris, Unter den Banner des Marxismus[4] em Berlim; etc., acharia as expressões de um pensamento filosófico muito mais sérias do que a de sua tentativa revisionista.


O vitalismo, o ativismo, o pragmatismo, o relativismo, nenhuma dessas correntes filosóficas, no que poderiam contribuir para a Revolução, esteve fora do movimento intelectual marxista. William James não é estranho à teoria dos mitos sociais de Sorel, tão marcadamente influenciada, por outro lado, por Wilfredo Pareto. E a revolução russa, em Lenin, Trotsky e outros, produziu um tipo de homem pensante e atuante, que deveria ter dado o que pensar a certos filósofos baratos cheios de todos os preconceitos e superstições racionalistas, dos quais se imaginam expurgados e imune.


Marx iniciou esse tipo de homem de ação e pensamento. Mas nos líderes da Revolução Russa aparece, com traços mais definidos, o ideólogo realizador. Lenin, Trotsky, Bukharin, Lunatcharsky, filosofa na teoria e na práxis. Lenin deixa, ao lado de seus trabalhos como estrategista da luta de classes, seu Materialismo e Empiriocriticismo. Trotsky, em meio ao alvoroço da guerra civil e da discussão partidária, reserva um tempo para suas meditações sobre Literatura e Revolução. E em Rosa Luxemburgo, o combatente e o artista não se unem em todos os momentos? Quem, entre os professores, que Henri de Man admira, vive com mais plenitude e intensidade de ideia e criação? Chegará um momento em que, apesar dos professores vaidosos, que hoje monopolizam a representação oficial da cultura, a mulher admirável que escreveu aquelas cartas maravilhosas a Luisa Kautsky da prisão despertará a mesma devoção e encontrará o mesmo reconhecimento de uma Teresa de Ávila. Espírito mais filosófico e moderno do que toda a multidão pedante que o ignora – ativo e contemplativo, ao mesmo tempo – põe no poema trágico de sua existência heroísmo, beleza, agonia e alegria, que nenhuma escola de sabedoria ensina.


Em vez de processar o marxismo por indiferença retrógrada à filosofia contemporânea, seria o caso, em vez disso, processar este último por mal-entendido deliberado e temeroso da luta de classes e do socialismo. Um filósofo liberal como Benedetto Croce – verdadeiro filósofo e verdadeiro liberal – já abriu esse processo, em termos de justiça inapelável[5] antes que outro filósofo, também idealista e liberal, continuador e exegeta do pensamento hegeliano, Giovanni Gentile, aceitasse uma posição no brigadas do fascismo, em sociedade promíscua com os neotomistas mais dogmáticos e os anti-intelectualistas mais incandescentes (Marinetti e sua patrulha).


A falência do positivismo e do cientificismo, como filosofia, não compromete absolutamente a posição do marxismo. A teoria e a política de Marx são invariavelmente fundamentadas na ciência, não no cientificismo. E hoje, como observa Benda, querem basear todos os programas políticos na ciência, sem excluir os mais reacionários e anti-históricos. Brunetière, que proclama a bancarrota da ciência, não lhe agradava casar o catolicismo e o positivismo? E Maurrás também não se diz filho do pensamento científico? A religião do futuro, como pensa Waldo Frank, repousará sobre a ciência, para que alguma crença se eleve ao status de verdadeira religião.


Por José Carlos Mariátegui


Da obra Defensa del Marxismo

NOTAS:


[1] Ver os ensaios sobre Futurismo nas obras do autor La Escena Contemporánea, El Alma Matinal e El Artista y la Epoca ( N. da E.).

[2] Clareza. Veja o ensaio do autor em The Artist and the Age.

[3] “A luta de classes”.

[4] “Sob as bandeiras do marxismo”.

[5] Investigando as faltas das gerações imediatamente anteriores, Croce as define e denuncia assim:


“Duas grandes faltas: uma contra o Pensamento, quando por protesto contra a violência causada às ciências empíricas (que era o motivo legítimo de certa forma) e por ignavia mental (que era a ilegítima) se quis, depois de Kant, Flchte e Hegel, para voltar, e o princípio do poder do pensamento foi abandonado para abranger e dominar toda a realidade, que não é, e não pode ser, outra coisa senão espiritualidade e pensamento. no da observação e do experimento; mas, como esses procedimentos empíricos devem necessariamente se mostrar insuficientes, a realidade real apareceu como um além inapreensível, um incognoscível, um mistério, e o positivismo gerou o misticismo e renovou as formas religiosas. Por isso disse que os dois períodos examinados não podem ser nitidamente separados e contrastados entre si: o positivismo deste lado, o misticismo na frente; porque este é filho daquele. Um positivista atrás da geleia nos armários, não acho que ele tenha nada mais caro do que o incognoscível, essa é a geleia na qual o micróbio do misticismo é cultivado”. Seria como tentar anular a Revolução Francesa, que criou o domínio da burguesia; além disso, o absolutismo esclarecido do século XVIII, que preparou a revolução; e pouco a pouco suspirar pela restauração do feudalismo e do Sacro Império Romano, e ainda pelo retorno da história às suas origens: onde não sei se o comunismo primitivo dos sociólogos (e a linguagem única do professor Trombetti) seria encontrado, mas a civilização certamente não seria encontrada. Quem começa a combater o socialismo, não apenas neste ou naquele momento da vida de um país, mas em geral (digamos, em suas reivindicações) é constrangido a negar a civilização e o próprio conceito moral em que se baseia a civilização. Negação impossível; negação que a palavra se recusa a pronunciar, e que por isso deu origem aos ideais inefáveis ​​da força pela força, do imperialismo, do aristocratismo, tão feios que seus próprios afirmadores não têm coragem de propô-los em toda a sua rigidez, e agora os moderam misturando elementos heterogêneos, agora se apresentam com certo ar de bizarrice fantástica e paradoxo literário, que deve servir para torná-los aceitáveis. Ou ele fez surgir; pelo contra-ataque, os ideais, piores que feios, tolos, de paz, de quietismo e de não resistência ao mal”. Ou ele fez surgir; pelo contra-ataque, os ideais, piores que feios, tolos, de paz, de quietismo e de não resistência ao mal”. Ou ele fez surgir; pelo contra-ataque, os ideais, piores que feios, tolos, de paz, de quietismo e de não resistência ao mal”.(Crítica, 1907 e La letteratura della nuova Italia, vol. IV , p. 187). (Nota do autor)

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