Fanon e a questão nacional: raízes e tensionamentos
Introdução
A obra Fanoniana é uma obra perpassada pelo problema político e por questões de reconhecimento. O reconhecimento do negro pelo branco e do branco perante o negro [1], o auto reconhecimento do negro vis a vis a estrutura do colonialismo [2], o reconhecimento da Nação e da questão nacional [3], enfim, em última instância o reconhecimento da urgência da tomada de consciência e da criação de um novo homem.
Dentre estes temas optamos por compreender a categoria da Questão Nacional em Fanon como lugar onde os diversos reconhecimentos se unem a uma prática revolucionária cujas bases remontam à obra Marxiana e a alguns autores do Marxismo Leninismo que buscaram em fontes comuns o arsenal teórico para sua prática de transformação do mundo.
Destarte, nosso trabalho busca ao estudar os nortes da questão nacional em Marx, Lênin e alguns outros escritores/revolucionários que contribuíram para o desenvolvimento sobre o tema na literatura marxista – bem como aqueles cujas lutas nacionais no século XX possuem claras analogias àquela de Fanon e da FLN – compreender como se dá a tessitura da chamada Questão Nacional na obra Fanoniana.
Partimos da hipótese, construída a partir dos escritos de Marx e Engels, os quais seriam aprofundados posteriormente por Lênin, que em um ambiente de opressão colonial, a questão nacional torna-se uma condição sine qua non para que a prática revolucionária possa de fato alcançar seu objetivo de ruptura do tecido social e construção de uma nova sociedade capaz de lidar com as múltiplas questões de reconhecimento, a saber: a) a dialética proletariado x burguesia; b) a dialética escravo x senhor; c) a dialética mulher x patriarcado e d) a dialética colonizado x colonizador.
Vivendo em um país semifeudal [4] onde a questão nacional sempre foi motivo para conflitos e percebendo a evolução da forma-valor no capitalismo e seus consequentes espelhamentos na forma-mercadoria, na forma-política e na formaeconômica, Lênin, o melhor e mais profundo leitor da obra Marxiana na virada do século XIX para o século XX, nos deixou um legado profuso sobre a exploração imperialista, o neocolonialismo e a questão nacional [5].
O legado Marxista-Leninista por sua vez é aprofundado após a revolução Russa principalmente pelas querelas advindas do Congresso de Baku dos Povos Oprimidos, onde o antigo lema da primeira Internacional é ampliado de “proletários do mundo univos” para “proletários e povos oprimidos do mundo, uni-vos”. É sob a égide desse mote plural que autores como Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minh, Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, Mariátegui entre tantos outros irão inscrever na História seus escritos e suas lutas.
Assim sendo, o que pretendemos no presente artigo é trazer, em suas linhas gerais, os seguintes temas: a) a visão da questão nacional na obra Marxiana; b) a visão da questão nacional e seu desenrolar nas obras marxistas desde a II Internacional até os escritos de Stalin; c) uma breve comparação sobre a questão nacional em Fanon, Ho Chi Minh e Mao para finalmente em nossa conclusão traçarmos um panorama geral da Questão Nacional e sua importância na obra de Frantz Fanon.
Já disse Marx em sua célebre tese 11: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” [6]
Fanon foi um desses transformadores. Em sua obra bem como em sua vida Fanon sempre soube aliar a teoria à prática não apenas para compreender e tornar cognoscível o mundo que o cercava e o mundo dentro de si próprio, mas, sobremaneira, para transformá-lo. Dentre as ferramentas de seu vasto arsenal teórico, além de Freud e Hegel, também se encontravam Marx, Lênin e Mao.
É compreendendo Fanon enquanto intelectual e militante cuja prática bem como a teoria bebia nas fontes do Marxismo-Leninismo que se torna tão importante compreender suas categorizações teóricas dentro desse instrumental.
Fanon viveu, na pele, a época revolucionária das lutas pelo fim do colonialismo.
Assim, ele é perpassado por um etos mental análogo ao de outros grandes revolucionários e teóricos que tiveram vivências similares. O estudo comparativo das concepções fanonianas com as desses outros revolucionários permite perscrutar os silêncios e compreender as especificidades de sua construção à guisa de uma visão estrutural. Para tanto pretendemos usar precisamente estes escritos, seus e de seus coevos, para proceder a uma compreensão mais profunda de suas estruturas.
A questão nacional perpassa a vida e a obra de Fanon, desde suas considerações acerca dos antilhanos e sua visão de mundo até sua percepção da realidade argelina que ele ajuda ativamente a transformar. Nos debruçarmos sobre estes escritos é abrir uma janela privilegiada para a compreensão da obra fanoniana.
A Questão Nacional na Obra Marxiana
Para tanto, é preciso primeiro compreender os nortes da Questão Nacional na obra Marxiana. Assim, em um primeiro momento nos debruçaremos em alguns excertos das obras de Marx e Engels para a compreensão desse mote.
A obra Marxiana é permeada por questões acerca do reconhecimento, ou melhor, da dialética ensejada pela ausência deste, entre um grupo oprimido e um grupo opressor [7]. Sua vertente mais estudada e mais famosa é aquela que estuda a relação dialética entre o proletariado (oprimido) e a burguesia detentora do capital (opressores).
Porém, desde que entra em contato com a obra de Engels [8], Marx também estudaria vários outros pares dialéticos onde existe o problema do reconhecimento; a mulher perante a estrutura da família e do patriarcado; o escravo perante seu senhor e a chamada questão nacional onde estuda as dinâmicas de um povo sistematicamente oprimido por um outro povo.
É essa última fronteira de estudos que sobremaneira nos interessa para compreender os desdobramentos históricos e teóricos ulteriores. Assim, estudaremos o que Marx nos diz sobre a formação da nação moderna e do surgimento daquilo que ele passa a chamar de “questão nacional” a partir da questão Irlandesa.
“Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tomar aquilo que não têm. Visto que o proletariado deve, inicialmente, conquistar o poder político, transformar-se em classe nacional, constituir-se em nação, ele é nacional, ainda que de nenhum modo no sentido burguês da palavra (...) à medida que a exploração de um indivíduo por outra é abolida, a exploração de uma nação por outro é também abolida. No dia em que for suprimido o antagonismo entre as classes, no interior da própria nação, desaparecerá também a hostilidade entre nações. ”[9]
“Marx nunca foi um nacionalista”, a frase que se tornou célebre em um ensaio de Hobsbawn [10] em sua polêmica contra Nairn [11] já foi devidamente criticada em sua acepção filocidental [12] por Said [13], ainda assim, valem algumas palavras sobre a citação e sobre sua acepção.
Marx e Engels ao desenvolverem sua obra filosófica e voltarem a mesma em direção a uma prática revolucionária sempre se pautaram pela união do proletariado de todo o mundo, neste sentido, é fácil compreendermos o mote internacionalista do Marxismo. Não obstante, desde seus primórdios, a análise marxiana sempre foi pautada pelas pré-condições materiais que por sua vez definem todo o edifício superestrutural [14], quer dizer, ao analisar as condições materiais do proletariado em uma dada nação e a forma como estes devem superar tais condições, a compreensão da transformação a ser encabeçada pelo proletariado se torna também nacional, pois é no seio da nação que deve se dar a primeira ruptura e será o conjunto das nações socialistas que propiciarão o final das hostilidades entre as nações.
De tal modo existe uma tensão dialética desde a obra Marxiana entre nacionalismo e internacionalismo os quais se repelem e se completam ao mesmo tempo que se pressupõem. Assim, a marcha do proletariado rumo à vitória e à transposição do capitalismo pressupõe uma estruturação nacional e uma solidariedade transnacional. Será contra o nacionalismo burguês, o chauvinismo, que se erguerão as brigadas internacionalistas de cada nação.
Mas como se dá a exportação desse modelo burguês do Estado Nação moderno para todos os rincões do mundo? Modelo esse que ensejará entre nações relações de exploração análogas àquelas que ocorrem entre o proletariado e a burguesia?
“A necessidade de assegurar mercados cada vez mais amplos a seus produtos conduz a burguesia através do mundo inteiro. Ela precisa alojar-se em todas as partes, em todas as partes estabelecer relações (…)
Devido ao rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, às comunicações infinitamente mais fáceis, a burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, na corrente da civilização. Os baixos preços de seus produtos é a artilharia pesada com a qual abre brechas em todas as muralhas da China e obriga a capitular até a mais obstinada xenofobia dos bárbaros. Ela obriga todas as nações, sob ameaça de sua perdição, a adotarem o modo de produção da burguesia; obriga-as a introduzirem a chamada civilização, ou seja, a se tornarem burguesas. Em poucas palavras, cria um mundo à sua própria imagem (...)” [15]
Como sempre, a análise de Marx e Engels parte dos elementos econômicos para entender a construção das superestruturas. É o próprio modelo de produção do capitalismo que lança as burguesias nacionais na aventura colonial. Sua técnica avançada é a sua grande arma a qual usará juntamente com seus exércitos para subjugar quatro quintos da população mundial e transformar o globo terrestre a um só tempo em sua fábrica e no depositório de suas mercadorias.
É essa sanha por lucro que desconhece limites, que desumaniza a maior parte da humanidade, que cinge de forma definitiva os indivíduos vítimas de seu julgo é que ensejará a situação colonial [16], onde os outrora “fornecedores da civilização” cometerão barbáries que nenhum “povo bárbaro” sequer sonharia possível.
Marx atenta para o fato que essa situação ocorre no seio da própria Europa quando escreve sobre a Questão Irlandesa, ainda mais, mostra como essa situação mina os vínculos internacionalistas do proletariado ao criar uma clivagem e uma tensão entre o proletariado da nação explorada e da nação exploradora. Assim, a única solução possível é o rompimento do julgo colonial alhures para que se possa sanar o corpo social da própria nação e do proletariado do país explorador. Para o leitor da obra Fanoniana, o paralelo com as relações entre o proletariado francês e a situação colonial argelina saltam aos olhos [17].
“Pouco a pouco cheguei à convicção, falta apenas inculca-la na classe operária inglesa, de que ela nada poderá fazer de decisivo aqui na Inglaterra, enquanto não romper da maneira mais clara, em sua política irlandesa, com a política das classes dominantes; enquanto não associar seus interesses aos dos irlandeses... É preciso visar essa meta, não por simpatia à Irlanda, mas como uma reivindicação no próprio interesse do proletariado inglês... Todo movimento popular, na própria Inglaterra, está paralisado de antemão pela contenda com os irlandeses que constituem, na própria Inglaterra, uma fração muito importante da classe operária...não se poderá tomar de assalto a cidadela enquanto a aristocracia fundiária preservar, na Irlanda, seus postos avançados fortemente entrincheirados...
Não somente a evolução social interna da Inglaterra está paralisada pelas relações existentes com a Irlanda [como] ...de fato, a Inglaterra jamais governou a Irlanda senão empregando o terror mais ignóbil e a corrupção mais detestável, e, enquanto subsistirem as condições atuais, nunca poderá governa-la de outra forma.” [18]
A Irlanda traz uma situação sui generis dentro da Europa, uma instância de colonialismo intereuropeu. Marx em sua análise da situação irlandesa percebe como a exploração da Irlanda e de seu proletariado é instrumentalizada pela classe dominante da Inglaterra para cooptar os trabalhadores ingleses. Todas as benesses que recebem o trabalhador inglês são atreladas à exploração da massa dos trabalhadores na Irlanda. De igual maneira é vendida a ideia que o fim da exploração do proletariado irlandês traria por sua vez uma maior exploração do proletariado inglês.
Assim, as elites dominantes atraem o movimento operário britânico para um nacionalismo chauvinista e um apoio da situação colonial. Tal estratagema seria usado em longa duração pelas elites britânicas como pode facilmente se apreender do estudo das relações do proletariado inglês com o colonialismo de sua metrópole na Índia e alhures. [19] Da mesma forma, também seria usado por todas as outras potências imperialistas a partir do último quartel do século XIX [20].
A Questão Nacional e o Marxismo – Da Segunda Internacional aos escritos de Stalin
Uma vez traçado esse primeiro panorama é necessário nos debruçarmos sobres os escritos de Lênin sobre o Imperialismo bem como sobre a própria Questão Nacional para compreender a evolução histórica, econômica e política dos estratagemas de dominação e de exploração perpetrados pelas potências centrais bem como suas possíveis respostas por uma via revolucionária.
Dentre todos os autores marxistas do século XIX Lênin empreendeu desde 1890 o maior esforço individual de leitura e compreensão da obra Marxiana e de suas raízes Hegelianas [21]. Isto por sua vez lhe propiciou uma compreensão do instrumental marxiano que o permitiu dar o passo adiante na análise materialista-dialética da História coroado em seu hoje clássico Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo de Abril de 1917 [22].
“Há meio século, a Alemanha era uma absoluta insignificância comparando a sua força capitalista com a da Inglaterra de então; o mesmo se pode dizer do Japão se o compararmos com a Rússia. Será concebível que dentro de dez ou vinte anos permaneça invariável a correlação de forças entre as potências imperialistas? É absolutamente inconcebível.Por isso, as alianças interimperialistas ou ultra imperialistas no mundo real capitalista... seja qual for a sua forma: uma coligação imperialista contra outra coligação imperialista, ou uma aliança geral de todas as potências imperialistas -, só podem ser, inevitavelmente, tréguas entre guerras." [23]
“Uma parte cada vez maior do capital industrial - escreve Hilferding - não pertence aos industriais que o utilizam. Podem dispor do capital unicamente por intermédio do banco, que representa, para eles, os proprietários desse capital. Por outro lado, o banco também se vê obrigado a fixar na indústria uma parte cada vez maior do seu capital. Graças a isto, converte-se, em proporções crescentes, em capitalista industrial. Este capital bancário - por conseguinte, capital sob a forma de dinheiro -, que por esse processo se transforma de fato em capital industrial, é aquilo a que chamo capital financeiro. Capital financeiro é o capital que se encontra à disposição dos bancos e que os industriais utilizam.” (HILFERDING, Rudolf. O Capital Financeiro, 1912, págs. 338-339)
Esta definição não é completa porque não indica um dos aspectos mais importantes: o aumento da concentração da produção e do capital em grau tão elevado que conduz, e tem conduzido, ao monopólio. Mas em toda a exposição de Hilferding em geral, e em particular nos capítulos que precedem aquele de onde retiramos esta definição, sublinha-se o papel dos monopólios capitalistas. “ [24]
Para que o capitalismo possa gerar lucros ainda maiores que aqueles possivelmente absorvíveis pelo mercado interno, a fusão dos bancos com os cartéis industriais produz o capital financeiro que por sua vez é exportado e investido em países estrangeiros com economias subdesenvolvidas.
Tal comportamento financeiro leva à divisão do mundo entre companhias monopolistas e as grandes nações que as representam. Ademais, no curso da colonização de países subdesenvolvidos Companhias e Governos adentrarão em conflitos geopolíticos para determinar quem fará a exploração econômica da maior parte dos países e de suas populações. É assim que o Imperialismo se torna o estágio último do avanço do Capitalismo.
Se baseando nos monopólios de exploração do trabalho e dos recursos naturais e na exportação do capital financeiro em detrimento da exportação de bens para sustentar o colonialismo – o qual é uma necessidade peremptória desse modelo de exploração econômica – os lucros estarrecedores da exploração colonial, vertidos em sua esmagadora maioria para a metrópole colonial, permitem às elites burguesas subornar os políticos da colônia, os líderes trabalhistas bem como a plutocracia do proletariado para evitar a revolta dos trabalhadores.
Ao mesmo tempo, na metrópole, a exploração que agora recaí sobre a colônia permite uma diminuição da exploração do proletariado metropolitano bem como a cooptação do mesmo para as bases de um nacionalismo colonialista e chauvinista. É sob a égide dos desdobramentos do Imperialismo desde a década de 70 do século XIX até a década de 20 do século XX que se desenvolverão no seio da literatura marxistas as querelas sobre a questão nacional.
Traçar os pormenores das discussões acerca da questão nacional em toda a literatura Marxista desde os fundadores da Segunda Internacional (Bauer e Kautsky) até seus ulteriores desenvolvimentos e polêmicas por aqueles que estariam diretamente envolvidos nas revoluções da década de 10 (Lênin e Stalin na Revolução de Outubro na Rússia [25] e Rosa Luxemburgo na revolução de 1918-1919 na Alemanha [26]) sairia do escopo de nosso breve trabalho.
Porém, é imperioso discutirmos alguns nortes que se tornariam as leituras fundadoras dos revolucionários ulteriores a estes movimentos, especificamente aquilo que se tornaria os eixos comuns entre as obras de Ho Chi Minh, Mao Tsé-Tung e Frantz Fanon.
Para tanto podemos resumir toda a querela a partir das interpretações de Lênin, em Notas Críticas sobre a Questão Nacional e Do Direito de autodeterminação Nacional, e de Stalin em A Nação, O Movimento Nacional, Leninismo e Nacionalismo [27].
Em última instância as querelas sobre a questão nacional no seio do movimento marxista nos dois últimos quartéis do século XIX e nos dois primeiros quartéis do século XX foram recortadas por duas grandes contendas estruturantes, a saber: o idealismo contra o materialismo e o especificismo contra a universalidade.
A visão idealista da questão nacional era aquela defendida por Otto Bauer [28] que percebia a categoria nação como “o conjunto de homens unidos numa comunidade de caráter à base de uma comunidade de destinos” [29], a nação de Bauer não possuí bases materiais, é uma categoria metafísica que ligaria a um só tempo pessoas de distintos continentes e vivendo sob a égide de diferentes condições materiais se elas possuíssem um “destino” em comum, como ser judeu ou cigano. Contra essa visão metafísica e idealista se levantou Joseph Stalin, cuja definição de nação trazemos abaixo:
“A comunidade de idioma é, pois, um dos traços característicos da nação...
A comunidade de território é, pois, outro dos traços característicos da nação...
A comunidade de vida econômica, a conexão econômica é, pois, outra das particularidades da nação...
A comunidade de psicologia, refletida na comunidade de cultura, é, pois, outro dos traços característicos da nação...
Só a existência de todos esses traços distintivos, em conjunto, constitui a nação.” [30]
Temos, portanto, uma nação solidamente fundada em sua base material e na construção dos laços imateriais que se soerguem sobre sua base. Aqui o conceito de nação encontra a guarda do materialismo dialético. Nas palavras do próprio Stalin: “Lutando pelo direito de autodeterminação das nações, a socialdemocracia se propõe, como objetivo, dar fim à política de opressão das nações, tornar esta política impossível e, com isso, minar as bases da luta entre as nações, fazê-la menos aguda, reduzi-la ao mínimo. Isso distingue essencialmente a política do proletariado consciente da política da burguesia, que se esforça por aprofundar e fomentar a luta nacional, prolongar e agravar o movimento nacional. ” [31]
A segunda grande querela se deu entre Lenin e Rosa Luxemburgo, por conta dos pontos assumidos por Rosa em sua brochura A Questão Nacional e a Autonomia [32] e seu artigo A Questão Polonesa [33]. Lênin, ao responder ambos [34], reforça a necessidade de se entender o direito a autonomia nacional em uma perspectiva universal em detrimento da perspectiva especifista de Rosa Luxemburgo. Lênin assumia assim na teoria uma postura que viria a defender na prática com as independências da Mongólia e da Finlândia e com os ditames do Congresso de Baku dos Povos do Oriente, “Proletários e povos oprimidos do mundo, uni-vos”.
A defesa da autodeterminação das nações se insere, portanto, contra a opressão do colonialismo, o nacionalismo pressupõe a solidariedade internacional, como diria o próprio Lênin: “Igualdade completa entre nações; direito das nações a disporem de si mesmas; união dos operários de todas as nações; eis o programa nacional ensinado aos operários pelo marxismo, pela experiência do mundo inteiro e pela experiência da Rússia” [35]
Fanon entre Mao e Ho Chi Minh
Findo este momento de construção do panorama é imperioso buscarmos sob a égide de uma história comparativa [36], as distintas soluções coevas propugnadas, a questões que, apesar de suas especificidades, guardam uma profunda analogia, por autores como Ho Chi Minh, Mao e Fanon para compreendermos então as especificidades da construção da Questão Nacional na obra do último.
Nesse sentido, nosso objetivo é compreender a questão nacional em Fanon apreendendo assim seus tensionamentos a partir do desenrolar histórico desde a obra Marxiana e da literatura marxista-leninista posterior bem como dos aportes dessas últimas nas práticas revolucionárias que levaram à independência da Indochina e da China e que foram fontes de pensamento e questionamentos para os escritos de Fanon.
Na quinta parte do segundo volume das obras completas de Fanon, Jean Khalfa nos apresenta uma lista comentada da biblioteca de Frantz Fanon [37]. Este instigante trabalho preenche importantes lacunas na obra Fanoniana. Muitas vezes escrevendo durante suas andanças como revolucionário e representante diplomático da FLN, Fanon não é um adepto das notas de pé de página, tampouco possuía sua biblioteca sempre ao alcance das mãos. Assim, traçar as origens de seu pensamento se torna um jogo de “gato e rato”.
Não obstante, para além do vasto material Marxista presente na Biblioteca, chama atenção especial a quantidade de obras de Lênin [38] e Mao [39], além de estudos sobre as experiências do marxismo periférico, como a da Indochina [40]. É por esta janela entreaberta de suas raízes marxistas que tentaremos fazer escutar os silêncios da obra Fanoniana.
“O objetivo da revolução chinesa na etapa atual não é abolir o capitalismo em geral, mas derrotar a dominação do imperialismo, do feudalismo e do capitalismo burocrático e estabelecer uma república de nova democracia das amplas massas populares, com os trabalhadores como força principal” [41]
“A primeira tática dos países colonialistas consiste em ir buscar apoio aos colaboradores oficiais e aos feudais... As autoridades colonialistas esperam com confiança, depois ansiedade, e finalmente sem esperança, os resultados dessas mensagens. Solicitados de novo, os servidores tomam o hábito, até então desconhecido, de declinar convites, fogem às encenações oficiais e adotam muitas vezes um vocabulário novo. É que o compromisso revolucionário se revela cada vez mais total e os colaboradores tem consciência do gigantesco despertar do povo em armas” [42]
Aqui já podemos ouvir um primeiro eco das leituras maoístas de Fanon em sua interpretação das condições específicas da situação colonial na Argélia. Os colonialistas ao se aperceberem do despertar da Revolução Nacional apelam aos seus mais fiéis súditos, seus colonos e àqueles nacionais aculturados que compõe a burguesia e a burocracia local.
Porém, o despertar da Nação possuí um clamor que desaliena os homens. É necessário então partir para uma guerra total. O despertar do povo em armas romperá a um só tempo os múltiplos mundos econômicos que convivem e se sobrepõe no solo da nação colonizada, a ruptura deve se dar, a um só tempo, com os resquícios do feudalismo bem como com as elites arraigadas.
Uma vez principiada a marcha da conscientização nacional ela se torna indelével, seu processo configura a um só tempo a libertação final da nação e de seus homens. Seu desenvolvimento já pressupõe a sua vitória. Sua base de apoio é toda a nação desperta que caminha, apesar de todos os pesares, para o triunfo.
“Na era do capitalismo monopolista, grandes potências controladas por um punhado de financistas exercem seu domínio sobre os países dependentes e semidepentes; assim, a libertação dos povos dos países oprimidos tornou-se parte integrante da revolução proletária. [...] a luta revolucionária dos povos coloniais e semicoloniais auxilia diretamente o proletariado dos países capitalistas em sua luta contra as classes dominantes, para se libertar do jugo capitalista” [43]
“Dizia-se que num país colonial há entre o povo colonizado e a classe operária do país colonialista uma comunidade de interesses. A história das guerras de libertação levadas a cabo por povos colonizados é a história da não verificação dessa tese.
[...]em momento algum pode estar em questão para os democratas franceses juntarem-se às nossas fileiras ou traírem o seu país. Sem renegar a sua nação, a esquerda francesa deve lutar para que o governo de seu país respeite os valores que se chamam: direito dos povos de dispor de si próprios, reconhecimento da vontade nacional, liquidação do colonialismo, relações recíprocas e enriquecedoras entre povos livres.
A FLN dirige-se à esquerda francesa, aos democratas franceses, e pede-lhes que encorajem qualquer greve levada a cabo pelo povo francês contra a subida do custo de vida, os novos impostos, a restrição das liberdades democráticas em França, consequências diretas da guerra da Argélia”. [44]
A luta contra a colonialidade perfaz um caminho dialético que a um só tempo deve destruir a alienação na colônia, mas também, na metrópole. Uma leitura superficial do excerto citado de Ho Chi Minh pode levar a uma conclusão mecanicista que o excerto fanoniana combate e expõe, não necessariamente que a revolução indochinesa tenha recaído nesse erro de leitura.
Lembremo-nos aqui da citação de Marx sobre a Questão Irlandesa no início de nossa caminhada. Assim como na Inglaterra e na França, seja a primeira diante da Irlanda, seja a última perante indochineses e argelinos, o estratagema das forças coloniais é unívoco, a saber: tentar cooptar as massas trabalhadoras da metrópole para apoiar o irrespaldável, alienar o proletariado metropolitana para cessar a solidariedade internacionalista.
Fanon é taxativo em sua resposta. A situação colonial é igualmente monstruosa para a metrópole e seus trabalhadores. Ela é inextricável da exploração do homem pelo homem onde quer que aconteça. É necessária que democratas e comunistas metropolitanos ouçam as admoestações que partem da colônia e percebam o peso nefasto da exploração colonial sobre a sua própria sociedade.
É somente rompendo-se as bases materiais da exploração no mundo colonial que se romperão verdadeiramente tais bases no mundo metropolitano. A solidariedade metropolitana não é um ato de fé ou de caráter, é a percepção desalienada das condições que mantém o próprio trabalhador metropolitano explorado e alienado.
“Pode um comunista que é internacionalista, ser, ao mesmo tempo patriota? Sustentamos que apenas não pode, como deve sê-lo [..] em consequência, nós, os comunistas chineses, devemos combinar o patriotismo com o internacionalismo”. [45]
“Os povos colonizados reconheceram-se geralmente em cada um dos movimentos, em cada uma das revoluções desencadeadas e levadas a cabo pelos oprimidos. Para além da necessária solidariedade com os homens que, sobre toda a superfície da terra, se batem pela democracia e pelo respeito dos seus direitos, impôs-se, com uma violência inusitada, a firme decisão dos povos colonizados de quererem, para si próprios e para seus irmãos, o reconhecimento da sua existência nacional, da sua existência enquanto membros de um Estado independente, livre e soberano”. [46]
A questão fulcral levantada por estes excertos expõe a dialética dúplice entre colônia e metrópole e nacionalismo e internacionalismo, seja no seio dos colonizadores, seja no dos colonizados.
O despertar nacional conforme já indicava Lênin é a um só tempo nacional e internacional. Assim como a nação só pode ser livre se cada um de seus indivíduos se tornam livres também as nações só podem existir livremente longe do julgo da alienação e da exploração por meio das liberdades nacionais.
Ao contrário da visão simplista de muitos marxistas filocidentais o nacionalismo revolucionário que surge contra a situação colonial bem como o apoio desalienado dos trabalhadores da nação colonizadora são complementares à solidariedade internacionalista que perfaz a égide do movimento comunista mundial.
O despertar das revoluções nacionais faz ecoar de forma triunfante os longos ecos do Congresso de Baku, aqui, de fato, temos a união do proletariado e dos povos oprimidos de todo o mundo.
“[...] Temos de construir uma sociedade inteiramente nova e desconhecida em nossa história. Temos de alterar radicalmente hábitos e costumes milenares, maneiras de pensar e preconceitos .... Nosso país, ignorante e dominado pela pobreza, será transformado numa nação de cultura avançada e vida alegre e feliz. ” [47]
“A tese de que a promoção de uma nova sociedade não é possível senão no âmbito da independência nacional encontra aqui seu corolário. É que ao mesmo tempo que o homem colonizado apoia-se e rejeita a opressão, ocorre nele uma reviravolta radical que torna impossível e escandaloso qualquer tentativa de manter o regime colonial. É verdade que a independência realiza as condições espirituais e os aspectos materiais da reconversão humana. Mas também é a mutação interior e a renovação das estruturas sociais e familiares que impõe com o rigor da lei a emergência da Nação e o florescimento de sua soberania”. [48]
Os indivíduos que (sub)existem sob a psicopatologia colonialista são indivíduos cingidos, frutos incompletos, co-dependentes do conceito hegeliano da dinâmica senhor-escravo que não conseguem plenamente ultrapassá-la [49]. Tanto o senhor (dominador, metropolitano) quanto o escravo (dominado, colonial) não podem ter encontros “reais” enquanto não se livrarem desse nó infraestrutural que perpassa cada etapa de suas dinâmicas sociais. É somente com o advento da libertação do homem em condição colonial da opressão da colonialidade que pode se fundar um novo indivíduo completo e se restaurar tanto para ele quanto para seu antigo dominador a possibilidade de um encontro real, um encontro entre iguais.
Se em Peles Negras, Máscaras Brancas Fanon nos fala das impossibilidades e das psicopatologias geradas pela condição da colonialidade em L’an V de la révolution Algérienne temos precisamente o momento desta ruptura. Será com o processo revolucionário e a tomada de consciência da questão nacional que o povo argelino poderá romper o processo psicopatológico da alienação e finalmente tomar consciência de si enquanto povo livre e, dialeticamente, enquanto homens e mulheres livres.
Da mesma maneira, é sob a égide desta libertação que a cultura sairá de seu imobilismo, das amarras que a mumificavam e veremos um renascer criativo e uma adaptação revolucionária de antigas formas de se vestir [50] ou novos usos de tecnologias que anteriormente somente serviam aos propósitos do colonizador [51].
“Em seu apelo aos revolucionários do Oriente, Lênin escreveu: “[...]seguindo a teoria e a prática do comunismo, aplicando-as às condições específicas que não existem na Europa, vocês tem de adaptá-las às condições em que os camponeses são as grandes massas; a tarefa não é lutar contra o capitalismo, mas contra os vestígios feudais”. Essa é uma instrução valiosa para um país como o nosso, em que 90% da população vide da agricultura, e onde subsistem muitos vestígios medievais” [52]
“No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem desaparecer, a impotência burguesa dos negociantes e de compradores, o proletariado urbano, sempre privilegiado, o lumpen-proletariat dos bairros pobres, todos devem alinhar na mesma posição das massas rurais, verdadeira fonte do exército nacional e revolucionário; nessas regiões, cujo desenvolvimento foi sufocado deliberadamente pelo colonialismo, o campesinato, quando se revolta, aparece imediatamente como a classe radical: conhece a verdadeira opressão, sofreu muito mais que os trabalhadores das cidades e, para não morrer de fome, necessita de derrubar todas as estruturas.[...] [53] E é evidente que nos países coloniais somente o campesinato é revolucionário. [...]A insurreição, aparecida no campo, penetrará nas cidades por intermédio do campesinato bloqueado na periferia urbana, o qual não pôde encontrar ainda um osso para roer no sistema colonial. Os homens obrigados pela crescente população do campo e pela exploração colonial a abandonar a sua terra natal, giram incansavelmente em volta das bonitas cidades, esperando que algum dia possam penetrar nelas. É nessa massa, nesse povo dos bairros de miséria, das casas de lata, no seio do lumpen-proletariat, que a insurreição encontrará a sua ponta de lança urbana. O lumpen-proletariat, coorte de esfomeados, destribalizados, descolonizados, constitui uma das forças mais espontâneas e radicalmente revolucionárias de um povo colonizado. [54]
Uma das contribuições mais geniais de Fanon, contribuição essa profundamente devedora de seus estudos do Leninismo, do Maoísmo e do marxismo periférico [55], é sua análise profunda, profícua e não mecanicista das bases materiais e das classes sociais na Argélia pré-revolucionária.
Fanon ao considerar os resquícios feudais propiciados pela colonização sui generis da Argélia enquanto colônia de povoamento bem como levando em conta como a situação colonial cria clivagens no interior do proletariado colonizado se apercebeu a um só tempo de três fatores fulcrais para o sucesso da revolução nacional na Argélia.
Primeiro, o proletariado autóctone argelino se comporta de forma burguesa e reacionária, é classe extratora de mais valia. Fruto da situação colonial, vivendo de migalhas e prebendas que “sobram” da exploração colonial por França, tal proletariado não é verdadeiramente uma classe revolucionária, tendendo, portanto, muito mais aos conluios e pautas reformadoras dos partidos “nacionais” que propriamente à ruptura revolucionária da guerra de libertação devido exatamente à exploração do campo pela cidade que propicia a essa classe a extração da mais valia sobre o campesinato.
Segundo, dada as condições remanescentes de feudalidade do modelo econômico do colonato argelino somente o campesinato era em Argélia uma classe verdadeiramente revolucionaria. Desclassificado, esfomeado, explorado, rapidamente o camponês descobre que só tem a perder e nada a ganhar. Ademais, no mundo colonial a clivagem entre cidade e campo é ainda mais acentuada e toda a parca mais valia extraída por parte do proletariado urbano o é sobre a exploração das massas camponesas.
Terceiro, dada a situação específica da Argélia a revolução penetraria as cidades a partir dos campos, uma vez que os elementos de vanguarda oriundos da cidade seriam repelidos pelo ambiente burguês citadino e se veriam forçados a buscar abrigo e apoio junto ao campesinato. Ora, as franjas citadinas que permitiriam essa (re)penetração da revolução vinda do campo seria precisamente o lumpen-proletariat, de origem camponesa, que migrou forçosamente para cidade, mas ainda não fora absorvido, vivendo em condições análogas às da exploração do campesinato servindo como exército de reserva aos interesses do capital na situação colonial. Por mais frágil enquanto classe, por mais alienado de sua situação, esse lúmpen ainda era cooptável na situação argelina.
É essa leitura precisa que propicia o sucesso da FLN e que serve como chave estruturante para se entender as revoluções nacionalistas decoloniais bem como para interpretar, a partir das classes que são alavancadas ao protagonismo, suas possibilidades de sucesso e seus ulteriores desdobramentos superestruturais. Fanon aqui nos brinda com o seu gênio único e ao mesmo tempo responde à altura ao chamado de Lênin.
“A cultura revolucionária é para as grandes massas populares uma poderosa arma de revolução. Antes da revolução, prepara ideologicamente o terreno e durante ela, constitui um setor necessário e importante de sua frente geral.... Disto se depreende quão importante é o movimento cultural revolucionário para o movimento prático da revolução. Tanto o movimento cultural quanto o prático devem ser de massas”. [56]
“Pensamos que a luta organizada e consciente empreendida por um povo colonizado para restabelecer a soberania da nação, constitui a manifestação mais plenamente cultural que existe. Não é unicamente o triunfo da luta que dá validade e vigor à cultura, não existe hibernação da cultura durante o combate. A luta, no seu desenvolvimento, no seu processo interno, faz progredir as diferentes direções da cultura e esboça outros caminhos. A luta de libertação não restitui à cultura nacional o seu valor e os seus antigos contornos. Esta luta, que tende para uma redistribuição fundamental das relações entre os homens, não pode deixar intactas as formas nem os conteúdos culturais desse povo. Depois da luta não desaparece apenas o colonialismo, mas desaparece também o colonizado. [...]. É no coração da consciência nacional que se eleva e se aviva a consciência internacional. E esse duplo nascimento não é, definitivamente, senão o núcleo de toda a cultura.”
Para Fanon existem três momentos da cultura nacional sob a égide da situação colonial. Em um primeiro momento ocorre a assimilação, o colonizado se preocupa em apreender a cultura do colonizador e seu público é o público da metrópole. No segundo momento temos a rememoração e o mergulho no passado, seja o passado pessoal seja o passado imemorial dos povos colonizados, é um momento de angústia, uma experiência de náusea e morte que já prevê a “ressureição” e o despertar. O último momento se dá precisamente na fase de luta, nele o colonizado se imiscui no povo e o desperta, finalmente tem-se a ruptura das faixas que mumificavam o povo e a sua cultura, a produção passa a ser pujante e cheia de novidades, a cultura se volta e ao mesmo tempo cria um público interno. Passa-se da letargia à explosão.
Quando Fanon nos fala que a luta de libertação nacional, essa luta que desaliena a um só tempo o homem em seu caráter ontológico e os homens enquanto classe, enseja mudanças nas superestruturas culturais ele nos informa também que essa luta enseja, ao mesmo tempo, uma ruptura essencial nas estruturas materiais e econômicas dessa sociedade.
Fanon vê o despertar da cultura como uma manifestação suprassensível do despertar do homem e da nação, esse movimento tríplice se interpenetra e é a um só tempo causa e consequência da revolução nacional, é a suprassunção de tudo aquilo que jazia subsumido.
Destarte, Fanon propugna uma cultura nacional verdadeiramente popular e combativa, imiscuída no e para o povo, assim, se torna fácil compreender suas querelas contra os conceitos de negritude [57] os quais muitas vezes se baseiam em uma metafísica e um idealismo que se afastam da prática revolucionária, a única capaz de criar definitivamente e transmutar a cultura destruindo o colonialismo, o colonizador e o colonizado. Podemos finalmente entender como o desaparecimento do colonialismo também traz por sua vez o desaparecimento do colonizado, este ascendeu à consciência por meio da luta de libertação nacional.
Conclusão
Ao tencionarmos as leituras marxistas e marxianas de Fanon com sua prática revolucionária podemos concluir que para Fanon, Nação mais que uma realidade é um horizonte, sua concepção é programática e voltada para o futuro. Nação é a própria construção revolucionária onde a consciência ontológica individual se desaliena e torna-se devir epistemológico coletivo.
Estudar Fanon é sempre buscar compreender a um só tempo o revolucionário e o psiquiatra que jamais coloca limites clínicos à sua prática revolucionária nem limites revolucionários à sua prática clínica. O que importa a Fanon não é somente a cura do homem, mas sobremaneira a cura do corpo social que poderá de fato (re)humanizar às vítimas e aos perpetradores da violência colonial.
Escrito por João Carvalho
Notas
[1] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
[2] FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era, 1968; FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980
[3] FANON, Frantz. Sociología de una revolución. Cidade do México: Ediciones Era, 1968; FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2ª ed. Pref. Jean-Paul Sartre. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
[4] Usamos aqui o conceito de feudalismo desenvolvido por Marx e posteriormente aprofundado por Lenin, Stalin e Mao Tsé-Tung. Sobre o conceito de feudalismo na obra marxiana ver MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo, Boitempo: 2007; MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008; MARX, Karl. O Capital, livro I. São Paulo: Boitempo, 2013 e MARX, Karl. O Capital, livro III. São Paulo: Boitempo, 2017. Para uma evolução da discussão do conceito ver TARRITI, Fabien. A transição do feudalismo ao capitalismo interpretada pelo Marxismo Analítico. In: Crítica Marxista. Campinas, vol. 45, 2017, pgs.63-92
[5] Para uma coletânea dos escritos de Lênin sobre este tema em português recomendamos os três volumes de suas Obras escolhidas, a saber: LENIN, Vladmir Ilitch. Obras Escolhidas. Vol. I a II. Lisboa: Editorial Avante, 19821986.
[6] MARX, Karl. Teses sobre Feurbach. In: MARX, Karl. Obras Escolhidas. Edições Progresso Lisboa; Moscou, 1982.
[7] Sobre o assunto do reconhecimento como leitmotif da obra Marxiana consultar: LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. São Paulo: Revan, 2010 e DOMENICO, Losurdo. Fuga da História. São Paulo: Revan, 2012
[8] ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe trabalhadora na Inglaterra. Porto: Afrontamento, 1975.
[9] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. “O Manifesto do Partido Comunista”. In: MARK, Karl e ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladmir Ilitch. Manifesto Comunista e Teses de Abril. São Paulo: Boitempo, 2017.
[10] HOBSBAWN, Eric. “Some Reflections on the Break-Up of Britain”. In New Left Review, Londres, setout., 1977, nº105, p-3-23.
[11] Nairn, Tom. The Break-Up of Britain. Londres: NLB: 1977.
[12] Entendemos por filocidentalismo a crítica feita a partir de um ponto de vista eurocêntrico que renega a validade ontológica e epistemológica da questão colonial para a conceituação da questão do reconhecimento à luz da teoria marxista, para mais sobre o conceito ver LOSURDO, Domenico. O Marxismo Ocidental. São Paulo, Boitempo: 2018.
[13] SAID, Edward. “Temas da Cultura de Resistência. ” In. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo; Editora Companhia de Bolso, 2011.
[14] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. “O Manifesto do Partido Comunista”. In: MARK, Karl e ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladmir Ilitch. Manifesto Comunista e Teses de Abril. São Paulo: Boitempo, 2017.
[15] Nos apropriamos daqui do conceito de Balandier, tantas vezes adotado por Fanon. Sobre o assunto ver BALANDIER, Georges. Sociologia da África negra: dinâmica das mudanças sociais na África Central. Ramada/Luanda: Edições Pedago/Edições Mulemba, 2014 e BALANDIER, Georges; BLANDIER, Georges. “A Noção de Situação Colonial”. In: Cadernos de Campo. São Paulo, 1993, Volume 3, número 3.
[16] Para mais sobre o assunto ver FANON, Frantz. Os intelectuais e os democratas franceses perante a revolução argelina. In: FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980.
[17] Para mais sobre o assunto ver FANON, Frantz. Os intelectuais e os democratas franceses perante a revolução argelina. In: FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980.
[18] MARX, Karl. A questão Irlandesa e o proletariado. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980
[19] Sobre o assunto SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo; Editora Companhia de Bolso, 2011 e DAVIS, Mike. Late Victorian Holocausts. El Niño Famines and the making of the third world. Londres: Verso, 2001.
[20] Para uma análise dos desdobramentos do imperialismo ver LENIN, Vladmir Ilitch. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2008.
[21] Sobre o assunto ver LÖWY, Michael. “Os cadernos filosóficos e a revolução de outubro” e LEFEBVRE, Henri e GUTERMAN, Norbert. “Introdução”. apud LENIN, Vladmir Ilitch. Cadernos Filosóficos. São Paulo, Boitempo: 2018
[22] Para um estudo compreensivo do desenvolvimento das análises de Lênin ver KRAUSZ, TAMÁS. Reconstruindo Lênin. Uma Biografia Intelectual. São Paulo; Boitempo: 2017.
[23] LENIN, Vladmir Ilitch. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2008, p.118-119
[24] LENIN, Vladmir Ilitch. Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2008, p.47
[25] Sobre as acepções da questão nacional na Rússia revolucionária ver LÖWY, Michael. Uma livre federação socialista? A revolução de Outubro e a questão nacional. Apud DORIA, Kim e JINKINGS, Ivana (orgs.) 1917: o ano que abalou o mundo. São Paulo: Boitempo, 2017.
[26] Sobre o desenvolvimento dos eventos na Revolução Alemã ver HAFFNER, Sebastian. A Revolução Alemã (1918-1919). São Paulo: Expressão Popular, 2018.
[27] Todos os artigos acima podem ser encontrados em PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980; os artigos de Stalin também se encontram, os dois primeiros em STALIN, Joseph. O Marxismo e o Problema Nacional. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1946 e STALIN, Joseph. “Sobre os Fundamentos do Leninismo”. In STALIN, Joseph. Obras -6º vol. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1954.
[28] BAUER, Otto. O Conceito de Nação. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
[29] BAUER, Otto. A questão nacional e a Socialdemocracia. apud STALIN, Joseph. O Marxismo e o Problema Nacional. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1946, pg.8
[30] STALIN, Joseph. O Marxismo e o Problema Nacional. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1946, pg.6,7 e 8
[31] STALIN, Joseph. O Marxismo e o Problema Nacional. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1946, pág. 13
[32] LUXEMBURGO, Rosa. A Questão Nacional e a Autonomia. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988
[33] LUXEMBURGO, Rosa. A questão polonesa. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
[34] LÊNIN, Vladmir Ilitch. Do direito de autodeterminação nacional. e LENIN, Vladmir Ilitch. Notas Críticas sobre a Questão Nacional ambos Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
[35] LÊNIN, Vladmir Ilitch. Do Direito de Autodeterminação Nacional. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, pg. 165
[36] Ao se comparar distintas culturas e realidades materiais e sociais é preciso ter cuidado com as generalizações rasteiras e as falsas semelhanças. Para os perigos da História Comparada ver COOPER, Frederick. “Race, Ideology, and the Perils of Comparative History”. The American Historical Review, Washington, Vol. 101, No. 4 (Out. 1996), pgs. 1122-1138 e PRADO, Maria Ligia Coelho. Repensando a história comparada da América Latina. Revista de História, São Paulo, n. 153, p. 11-33, dec. 2005. Pp. 13-14
[37] KHALFA, Jean. La Bibliothéque de Frantz Fanon. Liste établie, présentée et comentée par Jean Khalfa. apud FANON, Frantz. Écrits sur l’aliénation et la liberté: Œuvres II. Ed. Jean Khalfa e Robert Young. Paris: Éditions La Découverte, 2015, pgs.715-798
[38] 11 obras no total, op.cit
[39] 49 obras de Mao mais 10 estudos sobre a Revolução Chinesa, op.cit
[40] 1 tomo de obras escolhidas de Ho Chi Minh, com ênfase para o estudo sobre o colonialismo francês e outras duas obras sobre a revolução na Indochina, op.cit
[41] TSÉ-TUNG, Mao. Sobre o problema da burguesia nacional e dos Shenshi sensatos. apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, pg.217
[42] FANON, Frantz. “Decepções e ilusões do colonialismo francês. apud FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980. Págs. 62.63
[43] MINH, Ho Chi. A Revolução de Outubro e a libertação dos povos do Oriente. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. Pg.261
[44] FANON, Frantz. “Os intelectuais e os democratas franceses perante a Revolução Argelina”. apud FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980. Págs. 91; 100.
[45] TSÉ-TUNG, Mao. Patriotismo e Internacionalismo. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, pg.211
[46] FANON, Frantz. “Carta à juventude africana”. apud FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980. Págs. 137
[47] MINH, Ho Chi. Nacionalismo Revolucionário: Teoria e Prática. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. Pg.255-256
[48] FANON, Frantz. Sociologie d’une révolution (L’an V de la Révolution Algérienne), pág. 149 acessado aos 22.11.2018 em http://classiques.uqac.ca/classiques/fanon_franz/sociologie_revolution/socio_revolution_algerie.pdf
[49] Para o conceito hegeliano da dinâmica senhor escravo ver KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel: aulas sobre a Fenomenologia do Espírito ministradas de 1933 a 1939 na École des Hautes Études reunidas e publicadas por Raymong Queneau. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014 e HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. 9ª ed. Petrópolis, RJ/Bragança Paulista, SP: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2014
[50] O uso do véu na cultura argelina muda drasticamente com o despertar da revolução nacional. Para o assunto ver L’Algérie se dévoile in: FANON, Frantz. Sociologie d’une révolution (L’an V de la Révolution)
[51] O uso do rádio pela FLN bem como sua apropriação pelo povo argelino constitui outra novidade trazida à tona pela revolução nacional. Ver “Ici la voix de l’Algérie” in: FANON, Frantz. Sociologie d’une révolution (L’an V de la Révolution Algérienne), pág. 149 acessado aos 22.11.2018 em http://classiques.uqac.ca/classiques/fanon_franz/sociologie_revolution/socio_revolution_algerie.pdf
[52] MINH, Ho Chi. O Leninismo e a libertação dos povos oprimidos. Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980. Pg.251
[53] SARTRE, Jean-Paul. “Prefácio de Jean-Paul Sartre”, p.8 apud FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969.
[54] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa: Ulisseia, 1969. Págs. 57 e 132
[55] Entendemos aqui por marxismo periférico os desenvolvimentos práticos da teoria marxiana bem como da literatura marxista posterior vis a vis às revoluções e às experiências do socialismo real na Rússia, no Oriente, na África e no chamado terceiro mundo. Tal conceito se constrói em par antagônico àquele de marxismo ocidental, propugnado por Domenico Losurdo e que se preocupa com os desdobramentos de um certo marxismo europeu, filocidental e autocentrado, que desconhece a questão colonial e, portanto, recai em um idealismo dos derrotados. Para mais sobre o assunto ver LOSURDO, Domenico. O Marxismo Ocidental. São Paulo: Boitempo, 2018
[56] TSÉ-TUNG, Mao. Cultura Nacional Científica e de Massas Apud. PINSKY, Jamie (org.) Questão Nacional e Marxismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, pg.216
[57] O movimento literário négritude nasceu do ambiente intelectual de Paris das décadas de 30 e 40 do século XX, foi um produto de escritos negros que se uniram para por meio da língua francesa afirmar sua identidade cultural. Sobre o movimento ver KESTELOOT, Lilya. Black Writers in French: A Literary History of Negritude. Washington: Howard University Press, 1991.
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