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REIMPRESSÕES

Foto do escritorNOVACULTURA.info

"A FRELIMO é o povo moçambicano em armas"


1. O discurso proferido pelo general Spínola ao País, em 27 de Julho último, encerra, por forma constitucional e legalista, uma etapa do processo de descolonização cuja iniciativa pertenceu aos Movimentos de Libertação.


“Estamos prontos a partir de agora a iniciar o processo da transferência de poderes para as populações dos territórios ultramarinos. Estamos assim, e desde este instante, abertos a todas as iniciativas para o começo dos trabalhos de planificação, programação e execução do processo de descolonização, com a aceitação desde já do direito à independência política, a proclamar em termos e datas a acordar”.


A afirmação solene e oficial contida nestas palavras do Presidente da República representa uma nova vitória dos Movimentos de Libertação desencadeados nas colónias portuguesas africanas. Uma vitória que nem mesmo a ausência de referência ao MPLA, FRELIMO, PAIGC e MLSTP pode ensombrar.


O 25 de Abril é pertença fundamental das contradições geradas e agudizadas pela guerra colonial. Foi o povo angolano ao pegar em armas em 1961 sob a direção do MPLA, foi o campesinato guinéu encabeçado pelo PAIG-O que desencadeou a luta armada em 1963, e foram os 200 guerrilheiros mal armados da FRELIMO que em 25 de Setembro do ano seguinte iniciaram a sua luta armada contra o domínio colonialista, foram eles quem subscreveram em primeira mão a “ordem de operações” do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho.


“Os acontecimentos que acabam de ocorrer em Portugal —declarou Samora Machel, presidente da FRELIMO, referindo-se ao 85 de Abril— estão intimamente ligados ao desenvolvimento da nossa luta, armada, são um reflexo do combate anticolonialista”.


O 25 de Abril é de facto, em primeira instância, pelo lado português, a recusa duma guerra que tecnicamente se torna impossível vencer.


Serão depois as pressões populares, as manifestações anticoloniais de rua por iniciativa de grupos da esquerda revolucionária, e pelos próprios naturais das colónias, será também a política do facto consumado (a pás na Guiné-Bissau e em certas zonas de Moçambique, que foi estabelecida para além das conveniências políticas de conversações oficiais, tornou irreversível o processo de descolonização), serão ainda “as críticas dos apressados manipuladores da opinião, como lhe chamou o general Spínola, quem ditaram subsidiariamente aos próprios Movimentos Nacionalistas o reconhecimento inequívoco do direito à independência dos Povos das colónias. Não deixa de ser evidente que se trata, pois, de uma nova vitória dos Povos africanos em armas, mais do que a resultante de uma qualquer combinação de forças de um especial governo de coligação. Mais do que uma qualquer boa vontade de um gabinete bem intencionado 1. A luta de classes não se circunscreve à manifestação de boas vontades ou à enunciação de princípios saudáveis, mas refere-se à utilização da violência revolucionária capaz de destruir o inimigo das classes produtoras, a burguesia, e no caso das colônias, numa primeira fase, capaz de aniquilar os agentes e a estrutura colonialista. A violência liberta. Mostraram-no os povos de África. Provou-o dentro de limites classistas o 25 de Abril, ao instaurar uma certa liberdade burguesa. Nem vias eleitoralistas, nem referendos nos levam ao que só a violência revolucionária organizada produz: — a liberdade política, econômica, social e cultural de um povo em toda a sua dimensão de classe trabalhadora.



2. Não deixa de ser significativa no discurso do general Spínola a já referida lacuna quanto aos representantes legítimos dos Povos das colônias. A ausência parece querer estender os limites da manobra política. Todavia, o processo de descolonização consubstancia-se no reconhecimento “de jure” da República da Guiné-Bissau (de que faz parte o arquipélago de Cabo-Verde), e em acordar os meios técnicos de transmissão do poder ao MPLA, à FRELIMO e ao MLSTP. O processo de descolonização tem de afastar irreversivelmente o neocolonialismo, o referendismo-federalismo, e contribuir ativamente para a emancipação efetiva aos Povos das colônias.



“Só a independência total e completa poderá permitir aos moçambicanos dirigirem o seu pais, libertarem a sua economia da dominação dos monopólios estrangeiros, acabarem com a exploração e fazerem viver e desenvolver a sua cultura”, afirmou Samora Machel no discurso acima transcrito.


A recusa de qualquer forma de domínio colonial é indiscutível por parte da FRELIMO, cujo Comité Executivo declarou logo após o pronunciamento militar que “assim como a época de Caetano demonstrou amplamente que não existe fascismo liberal, é necessário compreender claramente que não há colonialismo democrático”.


Ao reunirmos hoje em livro uma série de discursos de Samora Machel, presidente da FRELIMO, que consideramos verdadeiramente exemplares, pensamos contribuir para a compreensão e conhecimento da Frente de Libertação de Moçambique, para o entendimento da justeza da sua ação, e para verificarmos que a sua luta será conduzida até às últimas consequências: até à destruição do colonialismo e do imperialismo, e até que o povo moçambicano assuma efetivamente o seu destino construindo uma sociedade onde não mais seja possível a exploração do homem, pelo homem.


3. A 25 de Junho de 1963 reuniam-se no interior de Moçambique três agrupamentos políticos que atuavam, contra o colonialismo português em países limítrofes: — UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique, fundada em 1960, em Salisbury, na Rodésia), MANU (União Nacional Africana de Moçambique, criada em 1961, na Tanzânia), e UNAMI (União Nacional Africana de Moçambique Independente, também surgida em 1961, no Malawi). A estas organizações juntaram-se moçambicanos que se encontravam na própria colônia, e com o esforço dos elementos mais conscientes assiste-se à unificação das três organizações políticas, que dão origem á Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). “Como leader da FRELIMO foi escolhido o malogrado dr. Eduardo MONDLANE, assassinado sete anos mais tarde, barbaramente, pelos colonialistas portugueses e cuja morte, em circunstâncias trágicas, o tornaram herói nacional do povo de Moçambique”. A atitude das três organizações constitui um momento decisivo para a construção de uma unidade de ação anticolonial. Até aí, a atuação dos elementos que ansiavam por um Moçambique livre era dispersa, ineficaz, e circunscrita ao pacifismo de atividades legalistas.


Em 1956, desencadeara-se uma greve no porto de Lourenço Marques, sobre a qual se abateu a repressão colonialista que causou a morte de Jf9 estivadores. Em Junho de 1960, durante o célebre levantamento de Mueda, assiste-se ao massacre de 600 moçambicanos e à prisão de muitos outros. O acontecimento exprimia toda a violência do aparelho repressivo colonial, mas não abafava as lutas dos trabalhadores do algodão (Mueda), dos trabalhadores da cana-de-açúcar (Zambeze), dos estivadores de Lourenço Marques, dos trabalhadores do arroz ou dos pescadores de Manica/Sofala. A política repressiva sempre foi incapaz de suster a sucessão posterior de lutas dos mineiros de Tete, dos trabalhadores de chá nas terras altas do Gurúe, ou dos palmares da Companhia da Zambézia. E tudo isto não pode fazer-nos esquecer a exportação de mão- de-obra para as plantações de algodão e tabaco da Rodésia racista, e para minas da África do Sul, mãe do “apartheid”, onde morrem anualmente 2 500 negros moçambicanos por “acidentes de trabalho”, e muitos outros regressam, mutilados.


Em 1962, a população negra moçambicana sentia na carne todo o peso da exploração colonial, e tinha já à vista o exemplo do povo angolano, que um ano antes se havia levantado em armas contra a presença portuguesa, sob a direção do MPLA.


“Muitas revoltas e manifestações de protesto contra o colonialismo foram esmagadas porque se tratava de ações isoladas, sem ligação, e por isso, embora dispondo de forças numericamente inferiores, o colonialismo pôde vencer-nos. Foi a compreensão desta situação que levou os militantes a juntarem-se em 25 de Junho de 1962 para porem em comum todas as suas capacidades e esforços, a fim de construírem um instrumento de luta capas de derrubar a dominação colonial no nosso país”, afirmou Samora Machel no 10° aniversário da fundação da FRELIMO.


4. Nesse mesmo ano de 1962, em 23 de Setembro, realiza-se o I Congresso da FRELIMO. Os objetivos da Frente são bem determinados:


“conquistar a independência do regime colonial português; estabelecer uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem; construir uma, nova nação que aceite a realidade da nossa pobreza material, mas reconheça o espírito dinâmico de um povo livre”.


Para a concretização de tais objetivos, propunha-se a luta armada, a mobilização política do povo, e um sistema de educação e estruturas de poder conducentes à destruição do colonialismo e ao aparecimento do poder popular.


A linha de orientação da FRELIMO abria amplas possibilidades de luta, recusando o sectarismo e englobando nas suas fileiras largas camadas populares, independentemente de raças, credos, língua, origem social, sexo ou quaisquer outras discriminações.


Em 25 de Setembro de 1964, os guerrilheiros desencadeiam a sua primeira ação armada em Chai, na província de Cabo Delgado. Então, a FRELIMO não compreendia mais que 25O combatentes mal armados. O início da luta armada surgia após aturado trabalho político junto das massas camponesas.


As ações violentas vinham assim responder à recusa sistemática pelo Governo português de conceder a independência por via pacifica, e assumiam o carácter de libertação e reconstrução nacionais. Ao avanço da guerrilha correspondia o alargamento da sua base popular, e o aparecimento de zonas libertadas. A estes três factos se deve o esforço de reconstrução nacional manifestado pela criação de estruturas económicas, educacionais e sanitárias autenticamente populares.


O desenvolvimento e a amplitude da guerrilha são também expressos pela criação do “Destacamento Feminino” (1967) onde as mulheres se empenham na luta armada, assegurando a defesa militar das zonas libertadas, participando em ações nas monas de avanço, desempenhando uma ação política “fundamental na mobilização e educação política do povo e dos guerrilheiros”. Simultaneamente, ao Destacamento cabiam responsabilidades nos sectores da saúde, da educação e da produção agrícola para assegurarem a manutenção das frentes de luta.



Desde a primeira hora que a FRELIMO demarcou claramente que não lutava contra os brancos, mas contra o colonialismo e o imperialismo representados pelas companhias e capitais americanos, ingleses, franceses, alemães e japoneses instalados em Moçambique.


A luta armada desenvolve-se especialmente nas zonas rurais, onde o campesinato adere e a assume. Mas a luta política clandestina nas cidades e noutras zonas sob controle colonial não é abandonada; através dela se preparam e criam as condições indispensáveis para o desencadear da luta armada, mobilizando e organizando o proletariado e outros sectores explorados da população.


Em 1967, observa-se uma crise no seio da FRELIMO, motivada, por posições reacionárias defendidas por Lázaro Kavandame, e expressas pelo seu racismo, pelo seu tribalismo., pelo seu elitismo, e pela sua defesa da manutenção do sistema de exploração ao propor unicamente a mudança da cor dos exploradores.


L. Kavandame é hoje o dirigente da “Unipomo”, grupo político fantoche surgido em Moçambique.


O II Congresso da FRELIMO, realizado em Julho de 1968, avança sobre a crise, que é sanada. Esse avanço reflete-se nos novos programa e estatutos da FRELlMO, então adoptados.


O novo programa representa um significativo salto político e ideológico da organização em relação ao do primeiro Congresso, e os estatutos reforçam o poder de intervenção dos elementos de base e da prática da democracia no seio da FRELIMO.


Em Fevereiro de 1969, Eduardo Mondlane é assassinado. A guerrilha atuava já nas provindas de Gabo Delgado, Niassa e Tete. Marcelino dos Santos, até então secretário político da organização, Samora Machel e Uria Simango constituem, nessa altura, o triunvirato que vai assegurar a direção da Frente. Nesse mesmo ano, em novembro, Uria Simango anuncia o seu rompimento com os outros dois dirigentes. Após sair da FRELIMO, acaba por se tornar dirigente da “Coremo”, outro grupo político que não representa de modo algum o povo moçambicano.


Em 1970 a presidência e vice-presidência da FRELIMO são ocupados, respectivamente, por Samora Machel e Marcelino dos Santos.


O livro que agora se publica reúne uma série de discursos proferidos por Samora Machel, na sua qualidade de Presidente da FRELIMO, que vão de 1971 a 1974. Iniciamos a antologia com o discurso de S. Machel sobre o significado e perspectivas do 25 de Abril, e encerramo-la com uma profunda análise sobre o estabelecimento do poder popular nas zonas livres de Moçambique, em que é elaborada uma ampla síntese dos avanços e recuos da luta do povo moçambicano.


5. A subida à presidência da, FRELIMO de Samora Machel constitui, quanto a nós, um fator decisivo para o avanço político, ideológico e militar da Frente de Libertação. O movimento assume por forma programática e prática uma inequívoca linha de massas.


“Apoiando-nos nas massas, aprendendo a guerra na guerra, contando com as nossas próprias forças, saberemos ganhar a batalha da educação”.


A estas palavras deste dirigente, referidas especificamente para o problema educacional, podemos acrescentar estas outras:


“Trata-se para nós de organizar as vastas massas, libertar a sua energia criadora, para progressivamente transformar o nosso potencial humano em força que esmaga o inimigo. A nossa força principal, a nossa razão de ser, é o Povo. Para a resolução dos nossos problemas devemos primeiramente apoiar-nos nele, seguir uma linha de massas. Por outras palavras, devemos apoiar-nos no Povo para definir os interesses objetivos e lutar pela sua realização”.


Uma linha de massas para servir o Povo, pois o poder nas zonas livres não só pertence às massas trabalhadoras como são elas o critério de avaliação da justeza da linha e prática políticas e suas defensoras intransigentes.


“São as massas a fonte de vida da nossa organização, são elas a força principal e decisiva no processo da libertação da nossa Pátria e na construção da nova sociedade. O combate é feito e ganho por elas e destina-se a satisfazer os seus interesses”.


Como corolário lógico desta linha de massas defendida por Samora Machel, impôs-se a prática da democracia interna no seio da FRELIMO:


“A democracia no seio do Partido é uma condição indispensável para que todos e cada um se sintam empenhados e responsáveis da situação, pois que a criação e desenvolvimento da situação sempre foram associados”.


Ao defender a livre discussão, a submissão da minoria à maioria, a responsabilidade coletiva, a crítica e a autocrítica do trabalho e comportamento, métodos de trabalho incluídos nos próprios estatutos da organização, o Presidente da FRELIMO está assim a assegurar, por forma explicita, a prática da democracia política, que se estenderá necessariamente aos aspectos militares e económicos da luta de Libertação e da Revolução. Esta posição do dirigente moçambicano é bastante clara quando expressamente ele recusa os processos burocráticos de decisão:


“a decisão burocrática, isto é, a decisão tomada pura e simplesmente pelo chefe ou direção sem, que haja um debate ou explicação com, as massas, embora possa ter um conteúdo excelente — o que é difícil — não mobiliza as massas, que em última análise são quem a deve assumir, pôr em aplicação e defender. A decisão burocrática arrisca-se, embora tendo um bom conteúdo, a não corresponder ao nível de compreensão das massas, por outras palavras, a ser irrealista e a criar uma contradição que teria sido evitada se uma discussão tivesse tido lugar”.


Simultaneamente são afastados os processos repressivos, como meios de correção de quaisquer erros cometidos.


Através destas citações, pertencentes ao discurso “Estabelecer o poder popular para servir as massas”, proferido muito provavelmente no início deste ano, verificamos que pela primeira vez Samora Machel fala em PARTIDO. Antes ele sempre referira FRELIMO ou organização. O uso do termo PARTIDO é indício claro do avanço da luta de classes no seio da Frente. Já em 1913, Samora Machel declarava:


“podemos dizer que uma vez destruída a presença física do colonialismo, um novo conflito mais decisivo surge. A luta de classes no plano internacional, entre o nosso povo e o inimigo colonialista e imperialista, sucede-se, no plano interno, a luta de classes contra as forças nacionais com vocação exploradora. Quer isto dizer ainda que a demarcação anterior entre colonizados e colonizadores tem que ser completada por uma demarcação mais profunda ainda, entre explorados e exploradores. Esta demarcação atinge todos os níveis e primeiramente o nível ideológico e cultural”.


É o desenvolvimento e agudização da luta de classes que enquadra estas palavras do dirigente moçambicano:


“À antiga ditadura da minoria exploradora sobre o povo, substitui-se o poder do povo, que se impõe a todas as forças colonialistas e classes reacionárias, o Poder da maioria esmagadora que submete a ínfima minoria e destrói a exploração”.


A ditadura da minoria opõe-se o novo poder, a ditadura da maioria, afinal a democracia popular. O problema não é “africanizar” o poder, mas conquistá-lo pelas e para as massas.


Não é assim difícil entender que a luta ideológica tenha sido considerada tão importante quanto a luta armada. Não é estranha, pois, a palavra de ordem de armar ideologicamente os guerrilheiros e o povo para assumirem a linha política da organização. Nestes termos se entende a proposta de S. Machel no sentido de ser posta “a política nos postos de comando em todas as atividades”. Recusando a hipótese de fracções no seio do Partido, e defendendo que a unidade ideológica indispensável à vitória final resulta e fortalece-se na prática revolucionária das largas massas, da crítica e da autocrítica, do trabalho coletivo e do estudo em conjunto, refere que pertence ao


“Partido político a tarefa de dirigir, organizar, orientar e educar as massas; a tarefa das estruturas administrativas é pôr em prática as decisões nos diferentes campos da vida económica e social, enquanto que a tarefa da estrutura militar é apoiar as massas e protegê-las, expulsar o inimigo da Pátria, defender a Pátria e participar ativamente na sua reconstrução. O Partido dirige e orienta a reorganização da vida das massas e a reconstrução nacional, como orienta e dirige o exército, definindo-lhe os alvos, educando a consciência. O exército cria as condições para libertar o povo e a terra. A administração, ela põe em aplicação as diretrizes sobre a reconstrução nacional”.



A política sobrepõe-se assim a todos os outros aspectos, e cabe-lhe presidir ao desenvolvimento da luta nas frentes militar, económica, sanitária, educacional e administrativa.


Foi esta linha, e a sua prática, que fortaleceram a FRELIMO e ampliaram, a sua base. Em consequência, assiste-se em 25 de Julho à abertura de uma nova frente de luta armada na província de Manica/Sofala. Significativo: foi a guerrilha em Tete que concedeu apoio logístico a este novo avanço. Há apenas alguns dias, concretamente no dia 1 de Julho, a guerrilha iniciou a sua atividade no distrito da Zambézia, um dos mais ricos e prósperos de todo o Moçambique.


O avanço militar é acompanhado por paralelo avanço nos sectores da produção, da saúde, da educação e da formação política e ideológica. Nas zonas libertadas reforça-se a produção artesanal e agrícola e o comércio. Aos princípios de desencadear a luta armada e enraizá-la, e de institucionalizar o poder popular, seguiu-se o desencadear da luta de classes no seio da própria FRELIMO. Ao avanço da sua luta não são alheios os massacres em Mukumbura (1971), Wiriyamu (1972), Chawola (1973) e Inhaminga (1974), alguns deles confirmados já pelas instâncias e comissões especializadas da ONU.


Importa referir igualmente que o autor dos discursos sempre salientou o carácter internacionalista da luta do povo moçambicano, enquanto integrada no levantamento mundial contra o imperialismo


“Os nossos objetivos iniciais de independência nacional aprofundaram-se no processo de desenvolvimento da guerra, popular, criando as bases da revolução nacional democrática e popular para instaurar o poder popular, o poder das largas massas trabalhadoras do nosso país. A extensão da luta armada para zonas onde dominam grandes interesses económicos e estratégicos do imperialismo, levou-nos a uma confrontação directa com este, tornando imediato e concreto o conteúdo anti-imperialista do nosso combate”.


A FRELIMO integra-se assim nas lutas de libertação do TERCEIRO MUNDO, e demonstra na prática através da luta armada a sua vocação internacionalista, a sua solidariedade com os povos oprimidos expressa pelo carácter anti-imperialista da sua Revolução.


6. Em Moçambique algumas tropas portuguesas alcunharam o Presidente da FRELIMO de “Che Guevara do Norte de Moçambique”. Importa, todavia, deixar aqui claro que, quanto a nós, Samora Machel não é de modo algum guevarista. “Che” defendia, a teoria do “foco insurrecional” como processo de engendrar as condições indispensáveis à eclosão da Revolução. Ao teorizar sobre a guerrilha insistiu bastante nos aspectos técnico-militares, secundarizando o fator político. Verificamos já que o Presidente da FRELIMO põe a “política no comando”. “Che” Guevara parte da guerrilha (mais propriamente do “foco insurreccional”) para a movimentação de massas. Samora Machel defende ativamente uma linha de massas revolucionária, que mobilize e organize as camadas populares e as conduza à necessidade e à prática da guerrilha. Aqui também a política precede a luta armada. Pode hoje afirmar-se, caso não recusemos a prática como processo de conhecimento e de apreciação da justeza, ou não das linhas revolucionárias, que Guevara não se libertou de um certo idealismo. A sua experiência boliviana, que ilustra por forma exemplar o fracasso da teoria do “foco insurrecional”, veio mostrar-nos o mecanismo (o idealismo) guevarista, e os erros trágicos a que conduziu. O mesmo se poderá afirmar acerca da palavra de ordem “. Criar dois, três, muitos Vietnã”, visão também mecanicista do internacionalismo entre (e dos) povos oprimidos.


Segundo Samora Machel, a vocação internacionalista da luta de Libertação e a solidariedade com os povos do Terceiro Mundo exprime-se pelo reforço da própria luta da FRELIMO e pelo avanço da Revolução, que irão permitir sejam desferidos golpes cada vês mais decisivos sobre o imperialismo.


Marx e Lenin estiveram no caminho teórico e ideológico percorrido por Samora Machel. Mas é a leitura atenta de Mao Tsé-tung que pesa decisivamente na sua formação e lhe permite a apropriação da “ideologia científica das massas exploradas”, e a aplicação criadora do marxismo-leninismo à realidade moçambicana.


É ele mesmo quem o afirma:


“líamos Marx, líamos as suas obras. Mas Marx ainda não podia prever o imperialismo inteiramente. E nós fomos encontrá-lo teorizado em Lenine que fala também na luta armada, na violência como parteira da nova sociedade, a luta armada começa aí a ser corretamente definida. No entanto, Lenine considera que a luta armada deve ser iniciada nas cidades — o que está correto para as condições da Rússia no seu tempo, íamos depois para Mao Tsé-tung e estudávamos o que era a guerra de guerrilha e repetíamos: a guerra é a forma suprema da política, é a continuação da política, nós temos que usar a luta armada quando a política não consegue por si só vencer certos obstáculos.


É assim que faz Mao Tsé-tung: a guerra é para resolver o antagonismo que existe entre nós e o inimigo — e isto está, sem dúvida, corretamente definido: ao fim de dez anos de luta já trouxemos o inimigo para a mesa das conversações, já temos uma plataforma para discutir com o inimigo. Mao Tsé-tung aplicou de uma maneira criadora o marxismo-leninismo e é isto que importa fundamentalmente: como aplicar o marxismo-leninismo em determinadas condições. Só deste modo não faremos do marxismo-leninismo um dogma, não transformaremos em dogma o marxismo-leninismo. Deixa de ser marxismo-leninismo se dele fizermos um dogma. Inserido nas condições da China, Mao Tsé-tung concluiu que a luta armada tem que começar pelo campo, porque as condições da China são específicas e diferentes, por exemplo, das da Europa. Na Europa há um proletariado. Na China predomina o campesinato. Então como aplicar a teoria de Lenine na China? Era impossível: foi o nosso caso”.


Em Moçambique a classe produtora compreende fundamentalmente o campesinato. É este facto que sugere a aplicação dialética do marxismo-leninismo, e o aproveitamento ideológico e prático do maoísmo na condução da luta de Libertação Nacional pela FRELIMO.


Afirmamos hoje sem dificuldade que consideramos Samora Machel o mais lúcido e eficaz dirigente vivo do Terceiro Mundo. Foi o seu enraizamento profundo nas massas que lhe permitiu defender uma linha revolucionária correta e colocar a FRELIMO na ponta dos Movimentos de Libertação Africanos.


É de resto significativo, que este marxista-leninista tenha transformado, com o amplo apoio ativo das massas, uma luta de Libertação Nacional em Revolução.


“Nós dizemos frequentemente — considera Samora Machel — que no curso da nossa luta a nossa grande vitória foi saber transformar a luta armada de libertação nacional em Revolução. Por outras palavras, o nosso objetivo final de luta não é içar uma bandeira diferente da portuguesa, fazer eleições mais ou menos honestas em que pretos e não os brancos são eleitos, ou ter no Palácio da Ponta Vermelha em Lourenço Marques um Presidente preto, em vez de um governador branco. Nós dizemos que o nosso objetivo é conquistar a independência completa, instalar um Poder Popular, construir uma Sociedade Nova sem exploração, para benefício de todos aqueles que se sentem moçambicanos”.


É aqui que reside de facto a grande vitória da FRELIMO.


Ao organizarmos esta antologia, entendemo-lo como uma forma de solidariedade para com o Povo moçambicano. Uma solidariedade cuja eficácia total só tem sentido, se nos servirmos criadoramente dos textos de Samora Machel, aplicando-os dialeticamente à transformação da realidade portuguesa. Nesta atitude residiria a mais nobre das expressões de solidariedade e de luta anticolonial. Cabe-nos também impedir que o imperialismo se instale em Moçambique. Cabe-nos, dentro dos nossos limites, afastar a hipótese do neocolonialismo. “A paz é inseparável da independência”. E o povo português ambiciona a paz.


Queluz, 30 de Julho de 1974

José A. Salvador


Introdução à coletânea com textos de Samora Machel intitulada A Luta Continua


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