Plekhanov: "Dialética e Lógica"
A filosofia de Marx e Engels não é apenas uma filosofia materialista, ela é materialista e dialética. No entanto, levantam duas objeções contra essa doutrina. Dizem-nos, em primeiro lugar, que a dialética em si não é livre de críticas e, em segundo, que o materialismo seria incompatível com a dialética. Vamos examinar essas objeções.
O leitor provavelmente se lembra de como Bernstein explicou o que ele chamou de "erros" de Marx e Engels. Eles eram causados, disse ele, por conta da influência nefasta da dialética. A lógica formal sustenta-se na sentença: "Sim é sim, e não é não"; ao passo que a sentença diametralmente oposta seria "Sim é não, e não é sim". Reprovando essa última sentença, Bernstein afirma que ela nos levaria a tentação de cometer os mais perigosos erros.
Provavelmente a maioria dos leitores que passaram pela chamada "educação" estará de acordo com Bernstein, visto que, em face disso, a sentença "Sim é não, e não é sim" está claramente em contradição com as leis fundamentais e imutáveis do pensamento. É essa questão que examinaremos agora.
As leis fundamentais da lógica formal são três:
A lei da identidade;
A lei da não contradição;
A lei do terceiro excluído.
A lei da identidade (identitatis principium) declara que: A é A (omnisubjectusest praedicatum sui), ou A=A.
A lei da não contradição, A não é um não-A, é nada mais do que a forma negativa da primeira lei.(1)
De acordo com a lei do terceiro excluído (principium exclusi tertii), duas proposições contraditórias, mutuamente exclusivas, não podem ser ambas verdadeiras. Na verdade, ou A é B, ou A não é B. Se uma dessas proposições é verdadeira, a outra é necessariamente falsa; e vice-versa. Não há, e nem poderia haver, qualquer outra solução.
Ueberweg saliente que a lei da não contradição e a lei do terceiro excluído podem ser unificadas na seguinte regra lógica: para cada questão dada, entendida em um sentido dado, para saber se dada característica corresponde a um determinado objeto, é necessário responder ou sim ou não, não podemos responder sim e não.
É realmente difícil levantar qualquer objeção contra isso. Mas se a afirmação é verdadeira, implica que a fórmula "Sim é não, e não é sim" deve estar errada. Nada nos resta a não ser rir, como Bernstein, e levantar nossas mãos para os céus, quando percebermos que pensadores tão sério como Heráclito, Hegel e Marx acharam essa sentença mais satisfatória do que "Sim é sim, e não é não", uma sentença solidamente baseada a partir das três leis fundamentais do pensamento citadas anteriormente.
Essa conclusão, fatal para a dialética, parece irrefutável. Mas, antes de aceitá-la, vamos examinar o assunto mais de perto.
O movimento da matéria é comum a todos os fenômenos da natureza. Mas no que consiste esse movimento? É uma contradição evidente. Se alguém lhe perguntar se um corpo em movimento está em um local em um dado momento, você não será capaz, mesmo que com a melhor vontade do mundo, responder a essa pergunta de acordo com a regra lógica de Ueberweg, isto é, de acordo com a sentença "Sim é sim, e não é não". Um corpo em movimento está em um local, ao mesmo tempo em que não está lá.(2) Nós só podemos considerá-lo de acordo com a sentença "Sim é não, e não é sim". Esse corpo em movimento apresenta-se, portanto, como um argumento irrefutável a favor da "lógica da contradição"; e quem está relutante em aceitar essa lógica será forçado a declarar, junto com Zeno(3), que o movimento é apenas uma ilusão dos sentidos.
Mas de todos aqueles que não negam o movimento nós devemos questionar: "O que nós estamos pensando sobre essa lei fundamental do pensamento que contradiz o fato fundamental do ser? Não devemos tratá-la com algum cuidado?
Parece que estamos entre a cruz e a espada.(4) Ou devemos aceitar as leis fundamentais da lógica formal e negar o movimento, ou, então, devemos admitir o movimento e negar essas leis. O dilema é certamente desagradável. Vejamos se não há uma maneira de escapar dele.
O movimento da matéria é inerente a todos os fenômenos da natureza. Mas o movimento é uma contradição. Devemos considerar essa questão dialeticamente, quer dizer, como diria Bernstein, de acordo com a sentença "Sim é não, e não é sim". Dessa maneira, somos obrigados a admitir que ela consiste na base de todos os fenômenos que temos no domínio da "lógica da contradição". Mas as moléculas da matéria em movimento combinam-se umas com as outras, formam certos combinações, coisas e objetos. Essas combinações caracterizam-se por maior ou menos solidez; elas resistem por mais ou menos tempo, mas por fim desaparecem, e são substituídas por outras. A única coisa que permanece eterna é a o próprio movimento da matéria, a matéria em si, a substância indestrutível. Mas depois que esse movimento estabeleceu uma dada combinação de matéria e enquanto ele mesmo não a desfez, a questão da sua existência deve ser tratada em seu sentido positivo. É por isso que, se alguém nos aponta o planeta Vênus e nos pergunta "Aquele planeta existe?", nos vamos responder, sem hesitação, "Sim". Mas se alguém nos pergunta se bruxas existem, nós vamos responder, também sem hesitar, "Não". O que isso significa? Isso significa que se tratando de objetos distintos, devemos em nossos juízos, proceder de acordo com a regra de Ueberweg mencionada acima; e devemos, em geral, ficar em conformidade com as leis fundamentais do pensamento. Neste domínio prevalece a fórmula aceita por Bernstein: "Sim é sim, e não é não".
Mesmo assim, porém, a abrangência dessa respeitável fórmula não é irrestrita. Quando somos questionados sobre a realidade de um objeto que de fato existe, respondemos positivamente. Mas quando um objeto apresenta-se em um estado de vir a ser, em vias de se tornar, nós temos boas razões para hesitar em nossa resposta. Quando vemos um homem que perdeu a maioria de seus cabelos, dizemos que é careca. Mas como determinar em que momento exato da perda do cabelo faz um homem careca?
Para cada pergunta específica sobre se um objeto possui essa característica ou aquela, nós devemos responder que "sim" ou "não". Mas apenas sobre aquilo que não se pode ter qualquer dúvida. Mas quando respondemos quando um objeto está passando por uma mudança, quando está na iminência de perder uma dada característica ou de adquirir uma outra? A resposta pode ser, naturalmente, de acordo com a regra. Mas a resposta não será definitiva a menos que esteja de acordo com a fórmula "sim é não, e não é sim", pois seria impossível responder definitivamente de acordo com a fórmula "sim ou não", tal como nos recomenda Ueberweg.
A objeção pode, naturalmente, se fundar no argumento de que a característica que o objeto está perdendo ainda não deixou de existir, e que a característica que o objeto está adquirindo já existe, de tal maneira que uma resposta regida pela fórmula "ou sim, ou não" é possível, na verdade obrigatória, mesmo quando o objeto em questão está em processo de transformação. Mas tal afirmação é errônea. Um jovem que deixar crescer os pelos sob o queixo, certamente terá uma barba, mas ainda não o podemos falar dele como um homem de barba. Pêlos sob o queixo não são por si só uma barba, embora virão a ser. Para uma mudança atingir um grau qualitativo, deve atingir um limite quantitativo. Aquele que se esquece disso é incapaz de expressar uma opinião definitiva sobre as qualidades dos objetos.
"Tudo está em fluxo, tudo muda", disse no passado, o filósofo de Éfeso.(5) As combinações de que falamos demonstram como os objetos estão em um estado permanente, mais ou menos rápido, de mudança. Na medida em que essas combinações permanecem as mesmas, podemos julgá-las de acordo com a fórmula "sim é sim e não é não". Mas na medida em que elas mudam e que deixam de existir, como anteriormente, temos que recorrer à lógica da contradição, mesmo correndo orisco de ofender Bernstein e toda a tribo de metafísicos, e dizer que "sim é não, eles existem e eles não existem".
Assim como a inércia é um caso especial do movimento, em conformidade com as regras da lógica formal (em conformidade com as "leis fundamentais do pensamento"), é um caso especial do pensamento dialético. Heráclito certa vez afirmou que "não podemos descer duas vezes o mesmo rio".(6) Crátilo, um dos discípulos de Platão, discordando de Heráclito insistiu que não poderíamos fazê-lo sequer uma vez, na medida em que o rio iria mudando ao longo do percurso, enquanto fôssemos descendo; se transformando em outro rio. No caso em questão, o objeto é mais governado, por assim dizer, pelo fator de transformação. Mas esse é um abuso da dialética, não seu uso justo. Hegel observa: "O algo é a primeira negação da negação".
Dentre nossos críticos, os que não ignoram completamente a literatura filosófica, gostam de se referir a Trendelenburg, que teria pretensamente refutado todos os argumentos, em favor da dialética. Mas estes senhores, como bem se vê, leram mal Trendelenburg, se é que o leram. Eles esqueceram completamente — se é que alguma vez conheceram, do que não estou absolutamente certo — a seguinte bagatela: Trendelenburg reconhecia que a lei da contradição é aplicável, não ao movimento, mas unicamente aos objetos por ele criados. E isto é justo. Mas o movimento nada mais faz que criar os objetos. Como nós já havíamos dito, ele os modifica constantemente. E precisamente por esta razão que a lógica do movimento ("lógica da contradição") jamais perde seus direitos sobre os objetos criados pelo movimento. Eis porque, mesmo rendendo a devida homenagem às leis da lógica formal, não devemos esquecer que estas leis são válidas apenas dentro de certos limites, na medida em que elas não nos impeçam de reservar também, à dialética, seu lugar. E assim que, na realidade, a lei se apresenta segundo Trendelenburg, se bem que ele próprio não tenha tirado todas as conclusões que decorrem do princípio por ele formulado, princípio de uma importância excepcional para a teoria do conhecimento.
Deixe-me acrescentar, de passagem, que a Logische Untersuchungen [Estudos de Lógica - N.T.] de Trendelenburg contêm um certo número de observações que, embora não dizem respeito ao meu ponto de vista, testemunham a nosso favor. Isso pode parecer estranho mas pode ser explicado pelo simples fato de Trendelenburg combater a dialética idealista. Ele vê como defeito da dialética a sua concepção de um movimento inerente à ideia pura, movimento que é a auto criação do ser. Certamente, tal afirmação envolve um profundo erro. Mas quem não sabe que essa falácia é atribuída exclusivamente à lógica idealista? Quem não conhece o fato de que Marx começou a trabalhar para por a dialética "de pé", que ela estava invertida, justamente por conta de sua utilização idealista? Aqui está outro exemplo. Trendelenburg diz que, na realidade, no sistema de Hegel, o movimento é o fundamento dessa lógica (e, ao que parece, não necessita de quaisquer fundamentações). Essa afirmação é correta,mas é mais uma afirmação em favor da dialética materialista. Agora, um terceiro exemplo e o mais interessante de todos eles. Trendelenburg nos diz que é errado imaginarmos, de acordo com Hegel, que a natureza é nada mais do que lógica aplicada. Pelo contrário, a lógica de Hegel não é de modo algum uma criação da ideia pura, mas sim, o resultado de uma abstração antecipada da natureza: na dialética hegeliana, quase tudo é derivado de uma experiência, e se a experiência a privasse de tudo que lhe emprestou, a dialética estaria arruinada. Perfeitamente! Mas isso é o que foi dito exatamente pelos discípulos de Hegel, que se rebelaram contra o idealismo de seu mestre e passaram para a concepção materialista.
Eu ainda poderia citar numerosos exemplos semelhantes, mas isto me distanciaria demais de meu objeto. Eu apenas quis mostrar a nossos críticos que, em sua luta contra nós, melhor fariam se não invocassem Trendelenburg.
Continuemos. Eu disse que o movimento é uma contradição em ação, e que, consequentemente, as leis fundamentais da lógica formal não poderiam ser aplicadas a ele. Devo explicar essa proposição para que ela não seja mal interpretada. Quando tratamos da passagem de um tipo de movimento para outro (suponhamos, a passagem de energia mecânica para a térmica), também estamos de acordo com a regra fundamental de Ueberweg. Devemos dizer: "esse movimento é tanto térmico quanto mecânico, ou então e assim por diante. Isso é óbvio. Mas se assim é, o é justamente porque, dentro de certos limites, as leis da lógica formal são aplicadas ao movimento. Daí concluímos que, mais uma vez, a dialética não suprime a lógica formal, mas apenas suprime seu caráter absoluto que os metafísicos lhe têm atribuído.
Se o leitor foi atento ao que foi dito acima, não terá dificuldades em compreender como é inútil a alegação de que a dialética é incompatível com o materialismo. Pelo contrário, nossa dialética é, justamente, baseada na concepção materialista da natureza. Se essa concepção fosse refutada, seria também nossa dialética. Por outro lado, sem dialética, a teoria materialista do pensamento é incompleta, unilateral, nada mais e isso é impossível.
No sistema de Hegel a dialética se apóia na metafísica. Para nós, a dialética se fundamenta na própria natureza.
No sistema de Hegel, o demiurgo(7) da realidade (para usar a frase de Marx) é a ideia absoluta. Para nós, a ideia absoluta é apenas uma abstração do movimento pelo qual todas as combinações e todos os estados da matéria são produzidos.
Segundo Hegel, o pensamento avança conforme vai descobrindo soluções e superando as contradições contidas nos conceitos. De acordo com nossa doutrina materialista, as contradições contidas nos conceitos são apenas o reflexo, a tradução para a linguagem do pensamento, das contradições existentes nos fenômenos, devido à sua própria natureza contraditória, a que chamamos de movimento.
De acordo com Hegel, a evolução das coisas é determinada pela evolução das ideias; segundo nós, a evolução das ideias é explicada pela evolução das coisas; a evolução do pensamento pela evolução da vida.
O materialismo põe a dialética de pé e assim retira-lhe o véu de mistificação posto por Hegel. Além disso, ao fazê-lo, exibe o caráter revolucionário da dialética.
"Em sua forma mistificada, a dialética se tornou moda na Alemanha porque parecia elucidar o estado de coisas existente. Na sua forma racional, é um escândalo e uma abominação para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, porque, ao fornecer uma compreensão positiva do atual estado de coisas, ao mesmo tempo, fornece uma compreensão da negação desse estado de coisas e permite-nos reconhecer que esse estado de coisas inevitavelmente ruirá; é uma abominação para eles por que se refere a cada forma social desenvolvida historicamente como no movimento de fluidos, como transitório, porque não deixa nada intimidar, mas é na sua própria natureza crítica e revolucionária" (Do prefácio à segunda edição alemã do primeiro volume d'0 Capital, 1873, nova tradução 1928).
É natural que a burguesia, essencialmente reacionária, tenha tomado horror pela dialética materialista. Mas, sinceramente, que as pessoas simpatizem pelo movimento e desaprovem a doutrina materialista é ridículo e deprimente — é o ápice do absurdo.
Mais um ponto deve ser considerado. Nós já sabemos que Ueberweg estava certo — e em que medida ele estava — ao exigir lógica daqueles dão respostas definitivas a questões definitivas sobre esta ou aquela propriedade de um dado objeto. Agora, porém, suponhamos que temos de fazer isso com um objeto complexo, e que possui propriedades diametralmente conflitantes. Pode o julgamento exigido por Ueberweg ser aplicado a esse objeto? Não, e o próprio Ueberwg, tão adversário quanto Trendelengur à dialética hegeliana, considera que neste caso devemos julgar de acordo com outra regra, conhecida na lógica sob o nome de "coindcidentia oppositorum principium" (princípio da coincidência dos opostos). A questão é que a maioria dos objetos tratados pelas ciências naturais e sociais se enquadra nesse tipo de objeto. Um simples glóbulo de protoplasma, a vida em uma sociedade no mais primordial estágio de evolução — um e outro apresentam propriedades diametralmente conflitantes. É evidente, então, que temos de reservar um grande espaço para o método dialético nas ciências naturais e sociais. E desde que se começou agir assim, essas ciências têm avançado a passos largos.
Será que o leitor gostaria de saber como a dialética tem garantido uma posição reconhecida na biologia? Deixe-o lembrar as discussões sobre a natureza das espécies que foram despertadas pela teoria da evolução. Darwin e seus seguidores declararam que as várias espécies de uma mesma família de animais ou plantas são apenas os descendentes diferenciados de uma forma primitiva em comum. Além disso, de acordo com a teoria da evolução, todos os gêneros de uma ordem provêm, da mesma maneira, de uma forma primitiva; é possível afirmar o mesmo sobre todas as ordens pertencentes a uma única classe. Por outro lado, de acordo com os adversários de Darwin, todas as espécies de animais e plantas são completamente independentes uma das outras e apenas dos indivíduos pertencentes a uma única espécie pode-se dizer que compartilham de um ancestral em comum. Esta última concepção já havia sido formulada por Lineu, que afirmou: "Há tantas espécies quanto o Ser Supremo criou nos primórdios". Essa é uma concepção claramente metafísica, pois os metafísicos consideram as coisas e os conceitos como "distintos, imutáveis, objetos rígidos, dados de uma vez por todas, para ser examinado um após o outro, cada qual independente do outro" (Engels). O dialético, ao contrário, nos diz Engels, trata das coisas e dos conceitos em seu contexto, em suas relações, no seu movimento, em seu surgimento e desaparecimento. Essa concepção tem trilhado seu caminho na biologia após o desenvolvimento da teoria de Darwin e aí permanecerá, quaisquer que sejam as retificações feitas na teoria da evolução pelo desenvolvimento da ciência.
Para sublinhar a importância da dialética para a sociologia, basta recordar como o socialismo se desenvolveu a partir do utopismo para a ciência.
Os socialistas utópicos se limitavam a concepção abstrata de "natureza humana" e avaliavam os fenômenos sociais de acordo com a fórmula "sim é sim e não é não". A propriedade estava ou não em conformidade com a natureza humana; a família monogâmica estava ou não em conformidade com a natureza humana, e assim por diante. Tendo a natureza humana como imutável, era justo que os socialistas utópicos esperassem que, dentre todas as formas de organização social, haveria uma mais apropriada para tal natureza humana. Daí a vontade de descobrir qual seria esse sistema possível, o mais compatível à natureza humana. Cada fundador de uma escola acreditava ter encontrado tal sistema, cada um defendendo sua utopia particular. Marx introduziu a dialética ao socialismo, transformando-o em ciência e infligindo um golpe mortal ao utopismo. Marx não invoca nenhuma natureza humana, não conhece nenhuma instituição social que corresponda ou não a ela. Em Misere de la Philosophie, encontramos isso claramente em uma crítica endereçada a Proudhon:"Monsieur Proudhon não reconhece que a história não é outra coisa senão a modificação contínua da natureza humana" (Misere de la Philosophie, Paris, 1896, p. 204)
No Capital, Marx diz que o homem, agindo sobre a natureza exterior e modificando-a, muda sua própria natureza. Este é um ponto de vista dialético a partir do qual uma nova perspectiva sobre os problemas sociais é lançada. Tomemos, por exemplo, a questão da propriedade privada. Os utopistas já haviam escrito e discutido muito entre si e com os economistas se ela deveria ou não existir, ou seja, se ela era compatível com a natureza humana. Marx colocou essa questão no terreno concreto. De acordo com sua doutrina, as formas e as relações de propriedade são determinadas pela evolução das forças de produção. Para uma fase uma fase de evolução específica corresponde uma forma específica de propriedade, para uma outra fase, uma outra forma — não há e nem pode haver uma solução absoluta, pois tudo está em fluxo, tudo muda. "A sabedoria se torna loucura, prazer e dor."
Hegel diz: "A contradição faz avançar". Na luta de classes, a ciência encontra uma confirmação notável dessa concepção dialética. Se não a considerarmos, se não levarmos em conta a luta de classes, é impossível compreender a evolução da vida social e intelectual de uma sociedade de classes.
Mas porque essa "lógica da contradição", que, como vimos, é o reflexo mental do eterno processo de movimento, deveria ser chamada de dialética? Não cabe aqui tamanha consideração, mas para responder a essa questão usarei uma citação de Kuno Fischer:
"A vida humana se assemelha a um diálogo no sentido de que, com a idade e a experiência, nossas opiniões sobre as coisas e as pessoas vão se transformando, como a opinião dos interlocutores ao decorrer de uma amigável e frutífera conversa. É nessa mudança involuntária e necessária dos nossos pontos de vista da vida e do mundo que consiste a experiência. É por isso que Hegel, ao comparar a evolução da consciência com a de uma conversa filosófica, deu-lhe o nome de dialética, ou movimento dialético. Essa expressão foi utilizada por Platão, Aristóteles, Kant, cada um em um sentido importante e peculiar, mas em nenhum sistema adquiriu tamanha abrangência e significação como em Hegel."
1907
Escrito por Georgui Plekhanov
Notas:
(1) Essa lei diz que uma data sentença não pode se contradizer, ou seja, não pode afirmar simultaneamente algo e seu oposto. Em outras palavras, não podemos afirmar, simultaneamente, que algo está quente e está frio, molhado e seco. Simbolicamente ficaria da seguinte maneira: se A é A, portanto A não pode ser não-A; ou seja, A=A e A*~A
(2) Um outro exemplo poderia ser o seguinte: um motorista e seu acompanhante estão parados se considerarmos um em relação ao outro. Entretanto, ambos estão em movimento em relação ao ambiente externo (N.T.).
(3) Zeno foi um pensador grego que elaborou um método dialético, antecipando Sócrates. Ficou conhecido pelo fato de que se apropriava das premissas de seus oponentes e utilizando-as para provar contradições gritantes. Um dos "Paradoxos de Zeno" mais conhecidos é o da corrida entre Aquiles, o herói grego, e a tartaruga, onde justamente Zeno prova ser o movimento uma ilusão dos sentidos (N.T.).
(4) "...between the horns of a dilemma" (N.T.).
(5) Éfeso foi uma cidade grego-romana, uma das doze que compuseram a Liga Jônica. Está localizada, atualmente, à extremo oeste da Turquia, na província de Esmirna. A expressão "filósofo de Éfeso" refere-se a Heráclito, considerado o pai da dialética (N.T.).
(6) A justificativa de Heráclito seria de que na segunda vez, o rio não seria o mesmo, assim como nós não seríamos os mesmos (N.T.).
(7) O termo "demiurgo" possui inúmeras significações, mas todas elas possuem em comum a ideia daquele que trabalha, que molda, que constrói a materialidade. Na Grécia antiga, o termo se referia aos artesãos, ferreiros, carpinteiros, ceramistas etc. Em um sentido mais mítico e religioso, o termo pode se referir ao criador do mundo material, ao Grande Arquiteto do Universo, embora cada concepção (cristã, maçônica, hermética etc.) atribua esse título a uma "entidade" diferente. Para nós, o termo vem do latim (demiurgus) e tem sua origem no grego, onde significa "o que produz para o povo" (N.T.)