"600 mil mortos por Covid: recontextualizando a infâmia"
Em agosto do ano passado, quando o Brasil batia a marca de 100 mil mortos por Covid-19, fizemos um pequeno esforço comparativo: se os brasileiros morressem pela doença na mesma proporção e velocidade que morriam outros povos, quantos mortos teríamos?
O exercício, um tanto lúgubre e possivelmente absurdo, era parte do esforço dessa revista em prover o leitor com um retrato mais palpável da atuação criminosa das autoridades e da burguesia contra os trabalhadores brasileiros durante a pandemia, traduzida numa comparação com os resultados de medidas adotadas em outros países, muitos dos quais continuamente retratados nos jornais como ditaduras ferozes, autocracias infernais ou ilhotas sem importância.
Atualizando os dados, o cenário hoje é que se morrêssemos tanto quanto os venezuelanos, teríamos 30 mil compatriotas mortos (570 mil a menos do que de fato temos); se morrêssemos tanto quanto os chineses, a primeira linha de combate mundial, colocada contra o vírus quando ele ainda era desconhecido, teríamos 694 mortos (mais de 599 mil teriam se salvado da morte estúpida, portanto); se aqui a morte tivesse a velocidade máxima que tem em Cuba, teríamos 147 mil mortos (ou seja, 453 mil dos nossos não teriam morrido); se tivéssemos os atributos do povo e governo vietnamita, teríamos hoje 44 mil mortos (556 mil covas a menos do que tivemos); e mesmo que enfrentássemos o aumento desatinado de mortes por Covid-19 que os argentinos enfrentam nos últimos meses, teríamos 537 mil mortos – ou seja, ao menos 63 mil teriam se salvado.
Até se morrêssemos ao ritmo ditado pelo líder mundial em mortes totais, os Estados Unidos, nossa situação seria melhor. Neste caso, teríamos 455 mil mortos, 145 mil caixões a menos adubando nossa terra. Na região, nossa situação só é pior do que a dos peruanos: se estivéssemos como eles, com 200 mil mortos em uma população de 31,1 milhões, teríamos hoje 1,3 milhões de mortos, tomando em conta a nossa população.
Fato é que esse exercício a esta altura já é inútil, apesar de nos revelar o tamanho do buraco em que fomos metidos e a desfaçatez da grande imprensa, que a todo momento se esquiva dessas comparações ou falsifica abertamente a realidade que elas nos mostram tão claramente. A classificação dos atos que podem prejudicar ou aumentar a popularidade de um líder ou governo sempre foi um tema chave da ciência política. Em um apocalíptico Maquiavel, é explícito o argumento de que a morte ofende menos o povo que a usurpação, aclarada na máxima “os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio”. Não haveria de ser diferente em um País fundado e mantido no descarte da vitalidade. Como lembra Darcy Ribeiro, os escravizados em Pernambuco, Minas Gerais e Bahia duravam vivos no trabalho, em média, cinco anos, no esforço de construir “sociedades-feitorias nas quais se gastavam homens para produzir açúcar ou ouro ou café”, num “modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais […] um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida”. Um País que hoje convive tranquilamente com um saldo de entre 40 e 50 mil mortes violentas por ano, sem ter guerra declarada, certamente será melhor descrito pelas palavras do florentino do que um onde a morte fútil é coisa escassa.
Por óbvio, não se trata de defeito do povo, nem frieza sua. A saudade é coisa doída, mas que aflige a memória, não, como a fome, o desemprego e a inflação, o estômago. Jair Bolsonaro, o Ceifador-em-Chefe do Brasil, poderia e poderá até ser punido, provavelmente mais pelo descalabro econômico, sentenciado à impopularidade nas urnas, do que por sua sanha assassina, com a sentença que caberia. Os Mengeles da Prevent Senior também podem até ter seus dias atrás das grades, ou verem suas ações na Bolsa dilaceradas momentaneamente. Mas não há no horizonte hoje a punição necessária: aquela que tenha por alvo milicos, ministros da economia, latifundiários, juízes, deputados e banqueiros, que os puna pelo que são na pandemia – mandantes – e os impeça de seguir, como fazem desde aquele ciclo que pela doçura da cana fundou a prosperidade sem sentimentalismo, prosperando da morte.