Uma Breve História do Movimento Comunista no Nepal
Para muitos na esquerda brasileira o Nepal é um país completamente desconhecido. Poucos sabem que nesse país existe uma das mais ricas, complicadas e confusas tradições do movimento comunista internacional; tampouco sabem que durante dez anos o país esteve imerso em uma Guerra Popular que abalou as estruturas da velha monarquia e ajudou a estabelecer uma república. Esse movimento foi dirigido pelo Partido Comunista do Nepal (Maoista), sendo a primeira experiência de luta armada revolucionária a eclodir no mundo no pós-guerra fria, um período marcado pelas consequências negativas deixadas pela dissolução da União Soviética e o quase que completo desaparecimento do campo socialista. Os comunistas nepaleses, dirigidos pelo PCN (Maoísta), mostraram ao mundo e a burguesia internacional que as lutas armadas revolucionárias ainda eram uma realidade e que, em muitos países oprimidos pelo imperialismo, elas seguem na ordem do dia. Atualmente, o PCN(Maoista), que dirigiu a luta armada, dividiu-se em vários grupos, de modo que tentaremos apresentar aos nossos leitores a trajetória que levou ao surgimento desse partido.
A primeira vista, analisar as diversas frações e correntes que se formaram no interior do movimento comunista do Nepal pode parecer algo bastante fora de lugar para nós brasileiros, mas ela é algo fundamental para compreendermos o atual contexto político daquele país, que não raro aparece em jornais e publicações de esquerda como um país “governado por comunistas”. As divisões no movimento comunista nepalês guardam certa relação com eventos importantes de ordem internacional, que não dizem respeito apenas a certas peculiaridades nepalesas. Também no Nepal a divisão de seu movimento comunista está umbilicalmente relacionada com a vitória do revisionismo na União Soviética, com a divisão do campo socialista e a confusão geral que se originou a partir daí. O leitor certamente notará que uma das principais características do movimento comunista no Nepal é o fracionalismo, característica esta que se agravou ao longo dos últimos anos.
Não pretendo com este artigo tirar opiniões conclusivas, dado que o estudo do Nepal é algo bastante complicado, devido à escassez de material para consulta em línguas mais acessíveis. É possível que muitas afirmações que faremos neste artigo não reflitam exatamente a realidade dos fatos, bem como poderão ser retificadas em momentos futuros.
No entanto, acreditamos que fornecer aos leitores uma aproximação inicial ao estudo do tema, estimulando investigações futuras, sem dúvida poderá contribuir para que aprofundemos o nosso conhecimento a respeito da história do movimento comunista no Nepal.
A fundação do primeiro Partido Comunista do Nepal
Curiosamente, ao contrário do que ocorreu na maioria dos países, o principal evento que influenciou na fundação do Partido Comunista do Nepal original foi o triunfo da Revolução Chinesa em 1949, não a Revolução Russa de 1917. Apesar de a literatura marxista e as ideias comunistas já exercerem influência dentro do Nepal antes mesmo da década de 40, a fundação do Partido Comunista do Nepal ocorre com um certo “atraso” se comparado com outros países. É claro que a fundação de um partido não é obra da mera vontade subjetiva, por isso é necessário reconhecer que o atraso econômico e político do Nepal jogou um peso considerável para que o partido tenha sido fundado apenas em finais da década de 40. Na medida em que as condições econômicas e sociais para a fundação de uma organização revolucionária marxista-leninista amadureceram, a fundação do partido passou a ser uma necessidade histórica e entrou na ordem do dia. Na década de 40, o país vivia sob um regime monárquico de tipo feudal, liderado pela dinastia Rana (1846–1951). Na dinastia Rana, a figura do Rei era meramente simbólica, estando o poder real nas mãos do Primeiro-Ministro, que por sua vez era também membro da família real. Frente ao caráter retrógrado e profundamente reacionário do regime, o movimento anti-monarquista expandia sua influência, atingindo vastos setores da intelectualidade progressista, da pequena-burguesia e até mesmo da burguesia nacional. Organizações como o Congresso Nacional Nepalês e o Congresso Democrático Nepalês — que depois formariam o Partido do Congresso Nepalês (1946) — foram fundadas expressando o anseio por mudanças de caráter democrático e anti-feudal das amplas massas do povo. O Partido do Congresso do Nepal, em um primeiro momento, absorveu todas as tendências políticas que se opunham ao regime aristocrático e feudal da dinastia Rana, entre elas as classes latifundiárias esclarecidas, os monarquistas constitucionalistas e os comunistas. Logo, no interior desse partido, começaram a surgir divergências sobre como lutar contra a monarquia.
Os comunistas estavam entre aqueles que se colocavam pela luta frontal contra a dinastia Rana, opondo-se a qualquer tipo de conciliação com a mesma. O desenvolvimento vigoroso das lutas de libertação nacional no terceiro mundo, bem como o crescente descontentamento de setores expressivos das massas populares e da intelectualidade democrática com o regime reacionário da dinastia
Rana serviu como plano de fundo político para a fundação do Partido Comunista do Nepal.
Um dos principais nomes na organização do movimento comunista do Nepal foi o líder Pushpa Lal Shreshta. Egresso do Partido do Congresso do Nepal, Pushpa Lal Shreshta rompeu com esta organização na medida que as linhas hegemônicas dentro do partido buscavam colocar em prática uma linha política de certos compromissos com o regime monárquico. Ao se retirar do Partido do Congresso, Pushpa Lal Shreshta dedicou-se ao estudo do marxismo-leninismo e traduziu para o nepalês o Manifesto do Partido Comunista. A publicação do Manifesto jogou um papel importantíssimo no impulso para a fundação do Partido Comunista. Pushpa Lal é até hoje reverenciado pela maioria das organizações comunistas nepalesas como o grande nome do movimento comunista do país. Em 22 de abril de 1949 é fundado na cidade de Calcutá, ajudado pelo Partido Comunista da Índia, um comitê encarregado de organizar o Partido Comunista do Nepal, tendo Pushpa Lal Shreshta como o principal dirigente. Depois, em 15 de setembro do mesmo ano, também na cidade de Calcutá, é anunciada a fundação oficial do Partido Comunista do Nepal. Pushpa Lal Shreshta foi eleito como Secretário-Geral da nova organização revolucionária. [1]
Em novembro de 1950 eclode um amplo movimento democrático de massas contra o regime Rana. Esse movimento teve uma duração de cerca de três meses, sendo dirigido em grande medida pelo Partido do Congresso e o seu braço armado, a organização Muktisena. O Partido Comunista do Nepal, apesar de não ter dirigido o movimento, cumpriu um papel importante na revolta popular, mobilizando operários, camponeses e estudantes. O Partido do Congresso do Nepal, os Rana e o rei Tribhuvan, assinam um acordo em Nova Delhi, na Índia, decisão que foi severamente criticada pelo Partido Comunista do Nepal. Esse acordo praticamente restaura os poderes do rei Tribhuvan.[2] Em julho de 1951 o Partido Comunista do Nepal funda a Frente Nacional Democrática de Libertação do Nepal, organização constituída para organizar amplos setores das massas operárias, camponesas, pequeno-burguesas e da burguesia nacional, bem como se opor as medidas de conciliação do Congresso do Nepal com o regime monárquico.
Em 1952, eclode um outro movimento importante, que tem na figura do líder Kunwar Indrajit Singh o seu personagem central. Singh era um líder de grande popularidade dentro do Partido do Congresso do Nepal, que havia se oposto ao “acordo de Délhi”. Quando esse acordo foi selado, Singh se opôs e continuou liderando ações armadas contra o regime, o que acabou acarretando em sua prisão. Quando Singh estava na prisão, eclode uma revolta de oficiais (muitos ligados à antiga Muktisena, braço armado do Partido do Congresso do Nepal, que havia sido incorporado às forças policiais depois do “acordo de Delhi”). Os revoltosos libertaram Singh e o nomearam como líder do seu movimento. A revolta chegou a controlar prédios oficiais, o aeroporto de Kathmandu e a rádio oficial do Nepal, porém, rapidamente foi desbaratada pelas forças do governo e da reação. Singh, então, é obrigado a se exilar no Tibet (República Popular da China).
Também em 1952, uma outra revolta eclode no Nepal: trata-se do levante camponês do extremo-oeste, liderado por Bhimdatta Panta. Apesar de várias fontes apontarem que Panta era membro do Partido Comunista do Nepal, não existem provas concretas de que ele tenha pertencido ao mesmo. Na época, o próprio Secretário-Geral do Partido, Man Mohan Adhikrai, negou o envolvimento dos comunistas no levante, o que não impediu que os comunistas fossem acusados e banidos pela reação.
A partir de então, o Partido Comunista do Nepal precisou passar à clandestinidade, limitando o seu trabalho legal às atividades de organizações de massas, tais como os “Comitês Populares”. Nas eleições realizadas em setembro de 1953, o partido obteve um excelente resultado eleitoral, elegendo seis representantes. O Partido Comunista do Nepal obteria sua legalidade no dia 16 de abril de 1954.
Mesmo tendo sido fundado em 1949, o primeiro congresso do Partido Comunista do Nepal só iria acontecer em 1954, em Katmandu, tendo sido convocado de maneira clandestina. Anteriormente, apesar de os comunistas já desenvolverem intensa atividade política, eles não contavam com uma organização completamente unificada e não possuíam de fato um programa. O 1º Congresso do PCN elegeu Mohan Adhikar como Secretário-Geral.
O Congresso aprovou um programa que lutava pela “revolução de nova democracia”, contudo a luta armada foi rechaçada em prol da participação no sistema constitucional vigente. O 1º Congresso também definiu que o partido tinha como tarefa lutar contra o governo do Congresso do Nepal, lutar contra a interferência da Índia e pelo fortalecimento das relações com a República Popular da China.
No dia 8 de maio de 1957, o PCN realizou o seu IIº Congresso, onde o Partido deu sequência ao debate sobre quais caminhos eram necessários percorrer para desenvolver a luta política no país. O Secretário-Geral Mohan Adhikar não pôde participar do evento, pelo fato de estar passando por um tratamento médico na China, por isso o evento foi presidido por Keshar Jung Rayamajhi. Os debates do congresso deram origem a duas tendências principais: o grupo liderado por Rayamajhi defendia o “caminho parlamentar”, a preservação do regime monárquico-constitucional e o caminho pacífico; por outro lado, o grupo liderado por Pushpa Lal defendeu o estabelecimento de uma República através da convocação de uma Assembleia Constituinte. O Congresso seria concluído adotando a palavra de ordem de “Exigir o estabelecimento de uma República e lutar pela eleição de uma Assembleia Constituinte!”. Ainda assim, o congresso elegeu Rayamajhi como Secretário-Geral. Com o passar do tempo, a divergência entre dois caminhos e duas orientações políticas iria se desenvolver e produzir divisões dentro do Partido Comunista do Nepal. O PCN, apesar de ter mencionado em sua fase inicial de desenvolvimento o problema da luta armada e da revolução violenta, na prática nunca prestou de fato atenção ao problema de sua organização, tendo muito prematuramente caído em desvios de tipo reformista e eleitoreiro. Em 1959 o Partido iria novamente participar das eleições, obtendo um resultado bastante negativo; de um total de 109 parlamentares, o partido elegeu apenas 4 deputados, recebendo apenas 7.4% dos votos naquela eleição. Como vai afirmar o historiador He Chenrong, o fator principal que explica o péssimo desempenho naquelas eleições seria “o grave desligamento das massas no período inicial do desenvolvimento do Partido, que concentrava suas atividades entre setores elitizados nas cidades, ao passo que naquela época 90% da população do país que vivia nas regiões rurais não recebeu influência alguma do movimento comunista”. Posteriormente, essa grave deficiência seria sanada, sendo a experiência da Revolução Chinesa uma referência fundamental para os comunistas nepaleses tirarem as lições necessárias de como se desenvolver um movimento revolucionário em um país com tais características.
O início das divisões dentro do movimento comunista nepalês
A década de 60 inauguraria um período de extrema dificuldade para o desenvolvimento do PCN. Não apenas havia a situação do movimento comunista internacional ficado mais complexa, devido a chegada do revisionismo ao poder na União Soviética e a ruptura entre China e URSS, mas também do ponto de vista da política interna do país e o recrudescimento do cerco contra as organizações revolucionárias e as massas populares, promovidas pelas classes dominantes no Nepal; é também o período no qual, seguindo a tendência que ocorria em praticamente todos os países do mundo, o Partido Comunista começa a se dividir do ponto de vista ideológico e organizacional. Ainda na década de 50, algumas mudanças importantes haviam ocorrido no Nepal: do ponto de vista político o regime da família Rana deu lugar ao estabelecimento de uma monarquia constitucional.
Em 1955, depois do falecimento do rei Tribhuvan, este foi sucedido pelo rei Mahendra, que começou a introduzir uma série de mudanças no sistema político do país atacando o multipartidarismo que vigorava desde a queda do regime dos Rana. Mahendra considerava que o multipartidarismo não correspondia a situação concreta do Nepal. Em 1960, Mahendra realiza um golpe que coloca um fim no sistema multipartidário e proíbe a atividade de todos os partidos políticos no país. A ditadura monárquica-feudal dura 30 anos e durante todo esse período os comunistas e outras forças políticas do país foram brutalmente reprimidos. Em 1962, Mahendra vai estabelecer um regime político denominado como “sistema Panchayat”, um sistema farsesco baseado na “consulta” de representantes “eleitos” nos níveis das aldeias, dirigidos e guiados politicamente pela figura do rei. O hinduísmo e a língua nepalesa viraram sinônimos da “identidade nacional”, de modo que outros grupos e minorias étnicas também passaram a ser brutalmente reprimidas.
As divergências de linha e orientação política que se manifestaram durante a realização do 2º Congresso do PCN iriam se agravar e a polêmica internacional que se desenvolvia no interior do Movimento Comunista Internacional, também iria produzir reflexos no interior do movimento comunista nepalês. Dentro do PCN, Rayamajhi, então Secretário-Geral, foi o dirigente do partido que se aprofundou de maneira mais intensa em uma linha abertamente direitista e oportunista, defendendo a colaboração direta com o regime monárquico. Sob sua liderança o partido havia até mesmo permitido a atuação de membros individuais no sistema “Prachayat”. Sobre a legalização dos partidos políticos e, em especial, do Partido Comunista, ele apenas se limitava em fazer reivindicações tímidas pedindo pela revogação das medidas contra as atividades dos partidos políticos e em defesa dos direitos democráticos. Em março de 1961, é convocado em Darbhanga, Índia, uma reunião ampliada do Comitê Central do PCN, que visava discutir questões referentes a linha política do partido. Nesta reunião, de um ponto de vista geral, é possível afirmar que surgiram três linhas políticas diferentes: a linha representada por Rayamajhi, que defendia a colaboração com o rei e o estabelecimento de um regime monárquico-constitucional; uma linha representada por Pushpa Lal, que propunha o reestabelecimento do parlamento derrubado pelo golpe de 1960, assim como o lançamento de um movimento de massas de todo o povo; e, por fim, a linha de Mohan Bikram Singh, que defendia o estabelecimento de uma república por meio da realização de uma Assembleia Constituinte. O Congresso, apesar de ter ocorrido em meio a intensos debates e dado origem a diferentes grupos, não consumou oficialmente a divisão da organização partidária, apesar de ter decidido pela remoção de Rayamajhi do cargo de Secretário-Geral do partido, nomeando um comitê liderado por Pushpa Lal e com a participação de mais três pessoas.
Em abril de 1962, os dirigentes Man Mohan Adhikari e Pushpa Lal, convocam o 3º Congresso do PCN, que seria realizado em Varanasi, na Índia.
O evento culmina na expulsão de Rayamajhi e na eleição de Man Mohan Adhikari como Secretário-Geral do partido, e figuras como Pushpa Lal, Mohan Bikram Singh como secretários. O congresso também substituiu a luta pela “revolução de nova democracia” pela luta por uma “revolução democrática-nacional”. Rayamajhi e os seus apoiadores, que na época representavam a maioria dos membros do PCN, não reconheceram a legitimidade do congresso convocado por Mohan Adhikari e Pushpa Lal; em 1966 eles convocariam um outro “3º Congresso”, que elegeria Rayamajhi como Secretário-Geral. A partir de 1962, portanto, consuma-se a primeira divisão dentro do movimento comunista do Nepal.
A influência da Revolução Chinesa e do Pensamento Mao Tsé-tung no movimento comunista nepalês
Com o passar do tempo, as divisões dentro do movimento comunista nepalês continuariam acontecendo, dando origem a um vasto número de organizações que se reivindicam marxistas-leninistas, comunistas. A partir de 1962 passa a existir no Nepal dois partidos que utilizam o nome “Partido Comunista do Nepal”: o primeiro, abertamente pró-soviético, liderado por Rayamajhi, defendendo uma linha abertamente reformista e de colaboração com o regime monárquico; a segunda organização, liderada por Adhikari e Pushpa Lal.
Não demoraria para que outra divisão ocorresse, agora dentro do grupo de Adhikari e Pushpa Lal. Seguindo o aprofundamento da luta ideológica entre União Soviética e China, não demorou para que o debate começasse a exercer sua influência ideológica no desenvolvimento das organizações comunistas dentro do Nepal. No debate sobre o caráter da revolução no Nepal, Adhikari defendia a linha da “revolução democrática nacional”, além de posicionar-se ideologicamente ao lado da União Soviética; Pushpa Lal, por outro lado, defendida a linha da “revolução de nova democracia” e apoiou as posições do Partido Comunista da China contra o revisionismo de Kruschev. Rapidamente tais divergências iriam se aprofundar, culminando em uma nova divisão do PCN, em 1965. Em 1968, Pushpa Lal e seus seguidores convocariam uma reunião em Gorakhpur, Índia, onde estabeleceriam um novo Partido Comunista do Nepal, que ficaria conhecido como PCN (Pushpa Lal). O PCN (Pushpa Lal) emerge como o maior partido comunista no Nepal, porém, também do seu interior ocorreriam novas divisões com o surgimento de outras organizações.
Na década de 70, do interior do PCN (Pushpa Lal) surgem várias organizações, tais como o Partido dos Operários e Camponeses do Nepal, o Comitê de Ligação Unificada do Partido Comunista e a Organização Revolucionária Proletária, para citarmos alguns exemplos. Na época, o PCN (Pushpa Lal) era o principal partido que buscava integrar os ensinamentos da revolução chinesa ao contexto nepalês, defendendo a “revolução de nova democracia” e criticando a colaboração com a monarquia, em prol do estabelecimento da república. Pushpa Lal também defendia que o PCN (PL) colaborasse com o Partido do Congresso, já que este seria um partido da burguesia nacional. Esta posição fez com que alguns grupos do movimento comunista nepalês acusassem Pushpa Lal de “traição”. Pushpa Lal falece em 1978 e o PCN (PL) iria passar por outros processos de divisão posteriormente.
As divisões no movimento comunista no Nepal ocorrem em meio a um contexto político interno bastante conturbado, marcado pela completa restrição às atividades dos partidos revolucionários, todos eles colocados na ilegalidade e forçados a atuar na clandestinidade. Em 1969, a rebelião camponesa de Jhapa, liderada e dirigida por comunistas que posteriormente fundariam o Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista), teve influência do movimento iniciado após a revolta em Naxalbari, na Índia. Outro movimento de origem internacional que também exerceu enorme influência entre o movimento de juventude do país foi a Revolução Cultural na China. O principal líder da rebelião camponesa em Jhapa foi Chandra Prakash Mainali, então membro do PCN (Pushpa Lal). As lideranças mais radicalizadas do PCN (Pushpa Lal) rompem com o partido e passam a desenvolver movimentos revolucionários nas áreas rurais, dando sequência ao movimento iniciado em Jhapa. Apesar de todos esses movimentos terem sido suprimidos, eles propiciaram a tais lideranças experiência de como desenvolver a luta de massas, bem como permitiram que eles expandissem sua influência pelo interior do país. Em 1975 é estabelecido o “Comitê Coordenador Revolucionário Comunista de Todo o Nepal”, que depois fundaria o Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista) em 1978. O PCN (ML) em seu 1º Congresso iria adotar um programa de “revolução de nova democracia”, destacando que a revolução no Nepal iria se desenvolver de maneira ininterrupta e por etapas (revolução democrática, socialismo e comunismo). O PCN (ML) defende a luta armada, adotando a estratégia de inspiração maoísta de guerra popular prolongada, onde o campo cerca a cidade, como forma de tomada do poder político pela classe operária. O partido também criticava o reformismo e o caminho pacífico para o socialismo. Em 1980, o partido continuo expandindo sua influência, alcançando a marca de mais de 16.000 membros, sendo uma das maiores e melhores estruturadas organizações comunistas.
Posteriormente o partido iria alterar sua linha política, adotando uma orientação política reformista que privilegiava a luta parlamentar e institucional, rechaçando a luta armada e a guerra popular. O PCN (ML), após se fundir com outras organizações, daria origem ao Partido Comunista do Nepal (União Marxista-Leninista).
Contudo, o PCN (ML) não foi o único partido na época que se influenciou diretamente pelo pensamento de Mao Tsé-tung e pela experiência da revolução chinesa. Em 1974, os líderes Mohan Bikram Singh (MBS) e Nirmal Lana convocaram a “4ª Convenção do Partido Comunista do Nepal”. Antes da convocação da Convenção, mais precisamente em 1971, MBS e Normal Lana criaram um grupo denominado “Núcleo Central”, que buscava aglutinar os grupos comunistas dispersos, buscando uma aproximação com o PCN (Pushpa Lal). Porém, devido ao fato deste último defender a aliança com o Partido do Congresso Nepalês, no final das contas a unidade não foi possível e o “Núcleo Central” foi desmantelado. Com a convocação da “4ª Convenção do Partido Comunista do Nepal” em 1974 é fundada uma nova organização, o Partido Comunista do Nepal (4ª Convenção), que assumiria o marxismo-leninismo e o pensamento Mao Tsé-tung como ideologia orientadora, bem como defenderia a luta armada e a guerra popular prolongada como caminho revolucionário para o Nepal. Contudo, novamente a situação internacional exerceria sua influência no interior do movimento comunista nepalês; o fim da Revolução Cultural, a prisão do “bando dos quatro” e o início da política de reforma e abertura pela China iria dividir o Partido Comunista do Nepal (4ª Convenção) em duas alas principais: a ala representada por Nirmal Lama, que apoiava as novas políticas adotadas pelo Partido Comunista da China e a ala de MBS, que se opôs à prisão do “bando dos quatro” e a nova política do PCCh. Em 1983, MBS se retiraria do PCN (4ª Convenção) e junto com diversos apoiadores estabeleceria um novo partido comunista: o Partido Comunista do Nepal (Masal). É precisamente desse partido que viria o núcleo de quadros que depois formariam o Partido Comunista do Nepal (Maoísta), partido responsável por levar a cabo a Guerra Popular Prolongada no Nepal (1996–2006).
O PCN (Masal) continuaria defendendo o legado ideológico de Mao Tsé-tung e da revolução chinesa, mas passaria a se opor ao Partido Comunista da China. O partido, portanto, adota uma posição diferente dos grupos “pró-albaneses” que passariam a considerar o Pensamento Mao Tsé-tung uma das várias ramificações do “revisionismo”. Internacionalmente, vários partidos comunistas com uma orientação ideológica parecida (defesa de Mao Tsé-tung e críticas ao Partido Comunista da China) fundariam uma organização internacional chamada Movimento Revolucionário Internacional (MRI). O MRI defendia abertamente o estabelecimento de uma organização internacional de Partidos Comunistas orientados pelo marxismo-leninismo Pensamento Mao Tsé-tung. O PCN (Masal) seria o primeiro representante dessa organização internacional no Nepal. Contudo, também no interior do PCN (Masal), não demorou para que as divergências internas culminassem na divisão do partido. Liderados pelo líder Mohan Vaidya (que depois seria conhecido como “Kiran”), um grupo de jovens comunistas convoca uma conferência realizada em Gorakphur, Índia, que estabeleceria o Partido Comunista do Nepal (Mashal). Os líderes do PCN (Mashal) acusavam o líder Mohan Bikram Singh de “conservadorismo” e “dogmatismo” e por isto resolveram criar uma nova organização. Fazia parte desse novo grupo o líder Pushpa Kamal Dahal “Prachanda”, que em 1986 seria eleito Secretário-Geral do PCN (Mashal) e posteriormente se converteria na principal liderança do Partido Comunista do Nepal (Maoísta). Depois, já na década de 90, as divergências entre o PCN (Masal) e o MRI foram ficando cada vez mais agudas; Mohan Bikram Singh fez duras críticas às resoluções do MRI sobre o “maoísmo”, o que resultou na expulsão do partido das fileiras da organização, que passou a contar apenas com o Partido Comunista do Nepal (Maoísta) como representante do país.
Os partidos tradicionalmente ligados ao chamado “campo soviético” também passaram por inúmeros processos de divisão e logo deixariam de jogar qualquer papel de relevo no cenário político nepalês, tendo na maior parte dos casos deixando de existir ou fundindo-se principalmente com o Partido Comunista do Nepal (União Marxista-Leninista). Tal situação se agrava após a queda da União Soviética e a vitória completa do revisionismo nos países socialistas do Leste Europeu. A situação de dispersão, deserção e desmantelamento de partidos comunistas e revolucionários, que virou uma constante em todos os países do mundo capitalista, não se realizou no Nepal. Nesse país, após o término da guerra fria, o movimento comunista continuou a se desenvolver, aumentando sua capacidade de influência entre vastos setores das massas.
A fundação do Partido Comunista do Nepal (Maoísta)
Em 1990, o Nepal passava por um processo de transformações políticas institucionais importantes, produto de um amplo movimento popular que havia eclodido nesse mesmo ano. Os protestos que sacudiram o país forçaram o rei Birendra a reestabelecer o sistema multipartidário, o que culminou na legalização de vários partidos comunistas. Alguns partidos comunistas unem forças e formam a Frente de Esquerda Unida (FEU); a frente era composta por partidos como o Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista), o Partido Comunista do Nepal (Marxista), Partido Comunista do Nepal (4ª Convenção), o Partido dos Operários e Camponeses do Nepal, etc. Um outro grupo de partidos comunistas, formado pelo Partido Comunista do Nepal (Mashal), Partido Comunista do Nepal (Masal), Partido Marxista-Leninista do Nepal, Organização Proletária do Trabalho e a Liga Comunista do Nepal, fundariam uma outra frente, denominada Movimento Popular de Unidade Nacional (MPUN). A MPUN considerava que a FEU adotava uma postura conciliadora, e que ela, junto com o Partido do Congresso do Nepal, buscava uma conciliação com o regime monárquico. A MPUN também foi responsável pela organização de inúmeros movimentos de rua no bojo do “Movimento Popular” de 1990 e tinha Baburam Bhattari, então membro do Partido Comunista do Nepal (Masal), como sua principal liderança. Logo esse movimento colocaria na rua milhões de nepaleses e forçaria o rei a aceitar certas mudanças no sistema político do país. As causas que originaram o movimento anti-monárquico são variadas, mas uma delas pode ser identificada na deterioração das relações entre Índia e Nepal, que desembocaria rapidamente em uma crise econômica de grandes proporções. As recorrentes intervenções do expansionismo indiano nos assuntos internos do Nepal fizeram com que o país se convertesse em um país altamente dependente da Índia. Vastos setores da população nepalesa, até mesmo entre setores das classes dominantes do país, tinham um profundo ressentimento com a Índia. Mesmo o governo monárquico havia no passado tomado algumas medidas que buscavam diminuir o controle indiano no país. [3] Sendo altamente dependente da Índia, a situação econômica do Nepal começou a se deteriorar rapidamente, provocando uma forte alta da inflação. A situação econômica e a instabilidade política do país eram o ambiente perfeito para que uma revolta de gigantescas proporções eclodisse.
Com a vitória do movimento popular, o fim do “sistema Prachyat” e o retorno da monarquia constitucional, novas disputas e debates ideológicos iriam surgir entre as diversas organizações comunistas do país.
Em novembro de 1991, ocorre um novo processo de unidade de organizações comunistas no Nepal. A união entre o Partido Comunista do Nepal (Mashal), o Partido Comunista do Nepal (4ª Convenção) e uma série de outros grupos menores deu origem ao Partido Comunista do Nepal (Centro Unido). No 1ª Congresso do PCN (Centro Unido) é definido que “o marxismo-leninismo-maoísmo é a ideologia orientadora do Partido”, que o objetivo do partido era “estabelecer uma república de nova democracia anti-imperialista, a ditadura democrática-popular, anti-imperialista e anti-feudal, dirigida pelo proletariado”. O congresso do PCN (Centro Unido) também define que para realizar tal objetivo era necessário levar a cabo uma “guerra popular prolongada, adotando uma estratégia de cercar a cidade pelo campo”. O congresso elege Prachanda como secretário geral do novo partido. Em novembro de 1990, o rei Birendra havia promulgado uma nova constituição, que chamava a realização de eleições gerais a serem realizadas em 12 de maio de 1991. O PCN (Mashal), liderado por Prachanda, e o PCN (4ª Convenção), liderado por Nirmal Lama, adotaram uma posição contrária a nova constituição, o que garantiu uma maior aproximação entre os dois partidos. Baburam Bhattarai, então membro do PCN (Masal), liderado por Mohan Bikran Singh, deixa as fileiras desse partido e ingressa no PCN (Centro Unido); depois o PCN (Masal) iria perder vários integrantes para o PCN (Centro Unido). Após a fundação do PCN (Centro Unido), e com a aproximação das eleições convocadas pelo rei, o PCN (Centro Unido) decide participar do pleito daquele ano. Segundo Baburam Bhattarai, a participação do PCN (Centro Unido) seria utilizada como uma oportunidade para denunciar as imperfeições do sistema parlamentar e o seu caráter oligárquico e anti-democrático. Bhattarai vai afirmar que a participação do partido no processo eleitoral foi utilizada “como uma forma de preparar o lançamento da ‘guerra popular’”.
Para participar das eleições daquele ano, o PCN (Centro Unido) decide lançar uma frente chamada Frente Única Popular, elegendo Baburam Bhattarai como presidente. A Frente Única Popular consegue eleger 9 parlamentares, convertendo-se na terceira maior força política dentro do parlamento (atrás apenas do Partido do Congresso e do PCN (UML). O Partido do Congresso, tendo a maioria no congresso, conseguiu formar um governo, com apoio do PCN (UML). O Partido do Congresso iria tratar de aplicar um programa de tipo neoliberal, que longe de resolver a crise econômica do país, aguçou as contradições econômicas e sociais. Não demorou para que novos protestos e greves tomassem conta do país.
O PCN (Centro Unido), junto a outros partidos comunistas e de esquerda, presta apoio a essas manifestações. O PCN (Centro Unido), junto com o PCN (Masal) e com o Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista-Maoísta) (não confundir com o PCN (Maoísta) que dirigiu a guerra popular), formaria o “Comitê de Agitação Popular”, para liderar os movimentos de rua. O “Comitê” organiza várias greves e manifestações, que seriam reprimidas violentamente pela polícia. Nas manifestações de 6 abril de 1992, 16 trabalhadores grevistas foram assassinados pelas forças policiais. O PCN (UML), que havia participado das manifestações contra o governo, iria selar um acordo de entendimento com o Partido do Congresso. As manifestações não demorariam para perder sua força inicial e paulatinamente foram se esvaziando.
No primeiro congresso do PCN (Centro Unido) ocorreram vários debates, não apenas referente a questões de ordem ideológica, mas também de tática e estratégia política. Neste congresso Prachanda iria defender a linha de guerra popular prolongada, considerando que no Nepal as condições objetivas para o início da luta armada já estavam maduras; Nirmal Lama, por outro lado, considerava que o partido deveria concentrar suas atividades nos centros urbanos, rechaçando a ideia de cercar as cidades a partir do campo. O debate a respeito de qual tática adotar em relação a luta armada no país continuaria ocorrendo dentro do partido, chegando em um estágio onde as duas linhas não podiam conviver mais dentro de uma mesma estrutura partidária. Em 1994, o partido se divide entre uma ala apoiadora de Prachanda e a ala que apoiava Lama; cada um dos grupos continuaram usando o nome PCN (Centro Unido). Baburam Bhattarai, então líder da Frente Única Popular, se posiciona ao lado de Prachanda. Nas vésperas das eleições que seriam realizadas naquele ano, o tribunal eleitoral do Nepal decidiu não reconhecer a legalidade da Frente Única Popular liderada por Bhattarai, considerando como legal apenas a fração da Frente Única Popular liderada por Niranjan Govinda Vaidya, aliado de Lama. Posteriormente, essa decisão do Tribunal Superior Eleitoral do Nepal seria anulada pela justiça, mas ela fez com que Prachanda e Baburam Bhattarai se convencessem ainda mais da necessidade de iniciar a luta armada. Em março de 1995, o PCN (Centro Unido) liderado por Prachanda iria convocar a terceira conferência ampliada do Comitê Central do partido, que decidira alterar o nome da organização para Partido Comunista do Nepal (Maoísta). A partir daí estava oficialmente fundada a organização que iria liderar por dez anos (1996–2006) o processo de luta armada revolucionária naquele país.
Por Gabriel Martinez
Notas:
[1] De acordo com o autor chinês He Chaorong, autor do livro Niboer lianhe gongchandang (maozhuyi) de fazhan ji xianzhuang yanjiu (Pesquisa Sobre o Desenvolvimento e a Situação Atual do Partido Comunista Unificado do Nepal — Maoísta) a data de fundação do partido é motivo de controvérsia entre as mais variadas organizações do movimento comunista nepalês. Até o período anterior à divisão do partido, ocorrida em 1961, este tomava o dia 15 de setembro como data oficial de sua fundação; depois da divisão, algumas organizações, como por exemplo o Partido Comunista do Nepal (Maoista) passaram a reivindicar o dia 22 de abril de 1949 como dia oficial da fundação do partido.
[2] Como mencionamos anteriormente, no regime de Rana a figura do rei era meramente figurativa, estando o poder real nas mãos do Primeiro-Ministro e outros membros da família Rana.
[3] Em 1987 o Nepal proibiu a livre entrada de indianos no país, medida que desagradou bastante as autoridades indianas. O Estado nepalês também começou a importar produtos e equipamentos militares da China, o que fez com que o governo indiano abertamente declarasse que o governo nepalês estaria violando um acordo de importação de armas estabelecido entre os dois países em 1965. [Pesquisa Sobre a História, Governança e Evolução do Partido Comunista do Nepal (Maoísta)], Wang Tingyou, Social Sciences Academic Press (China), pg 43.
Bibliografia consultada sobre o Partido Comunista do Nepal (Maoísta):
He, Chaorong 何朝荣. “Niboer lianhe gongchandang (maozhuyi) de fazhan ji xianzhuang yanjiu 尼泊尔联合共产党(毛主义)的发展及现状研究 [Pesquisa Sobre o Desenvolvimento e a Situação Atual do Partido Comunista Unificado do Nepal — Maoista], Zhongguo Chuban Jituan 中国出版集团, 2015.
Yuan, Qun 袁群. “Niboer lianhe gongchandang (maozhuyi) ‘xinminzhuzhuyi geming’ de lilun yu shijian 尼泊尔联合共产党(毛主义)’新民主义革命’的理论与实践 [A Teoria e Prática da Revolução de Nova Democracia do Partido Comunista do Nepal (Maoísta), Zhongguo shehui kexue chubanshe 中国社会科学出版社, 2012.
Wang, Tingyou 汪亭友. “Niboer gongchandang (maozhuyizhe) de lishi, zhizheng jiqi shanbian tanjiu” 尼泊尔共产党(毛主义者)的历史,执政及其嬗变探究 [Pesquisa Sobre a História, Governança e Evolução do Partido Comunista do Nepal (Maoísta)], Shehui kexue wenxian chubanshe 社会科学文献出版社, 2015.