"Tragédia da garimpagem em território indígena munduruku: descortinar é preciso"
Sob o apoio e patrocínio do governo Bolsonaro, a atividade do garimpo avança sob os territórios indígenas, como foi o caso recente dos ataques aos Yanomamis.
Reproduzimos agora a nota pública da Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo sobre os ocorridos na última semana no sudoeste do Pará, que culminou na invasão e no incêndio de casas da aldeia munduruku Fazenda Tapajós e que denuncia o que está por detrás destes ataques de "garimpeiros".
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Acompanhamos atônitos o confronto da última quarta-feira, 26 de maio, no sudoeste do Pará, entre grupos de garimpeiros e as forças de segurança, que culminou na invasão e no incêndio de casas da aldeia munduruku Fazenda Tapajós. É nessa aldeia que vive a família da liderança indígena Maria Leusa Kaba, há tempos ameaçada de morte por conta das denúncias que faz contra a atividade garimpeira em territórios de seu povo.
Os áudios desesperados pedindo socorro amplificam um grito que não é de hoje, contra a destruição de suas florestas, a contaminação de seus rios e de sua alimentação por mercúrio, a ameaça contra sua existência. No dia 25 de março deste ano, a Associação de Mulheres Munduruku Wakoburum, na qual Maria Leusa é coordenadora, teve sua sede incendiada por garimpeiros, o que evidencia que o ataque ocorrido já vinha sendo anunciado. A situação segue bastante tensa.
Historicamente, o garimpo se apresenta como alternativa para um contingente de trabalhadores em momentos de acirramento das vulnerabilidades sociais. A situação atual não é diferente, porém leva ao paroxismo a brutalidade das violações que essa atividade encobre.
É fundamental destrinchar o que está escondido por trás da palavra “garimpeiro”: uma ampla cadeia de exploração.
No topo, temos os donos de garimpo, que contam com apoio da elite e do poder local, com enorme poderio econômico que permite comprar e manter maquinário pesado, invadir as terras indígenas, promover a contratação de gente e atuar de forma criminosa, inclusive com o porte e uso de armamento de fogo. Na base, estão os trabalhadores, massa espoliada, sem acesso à terra ou a trabalho decente, reiteradamente expropriados dos seus meios de vida, que veem no garimpo uma chance para conseguir sair dessa situação e, até mesmo, enriquecer.
A palavra garimpeiro tem sido usada de forma indiscriminada para se referir a um e a outro.
O que vimos nessa semana em Jacareacanga (PA) e região, foi a convocação dos trabalhadores e indígenas cooptados pelos donos de garimpo para que se amotinassem contra as comunidades que se contrapõem à exploração ilegal em seus territórios, contra a Polícia Federal e contra a Força Nacional, a qual, por determinação do Supremo Tribunal Federal, havia chegado na segunda-feira, 24 de maio.
Esses servidores que ainda tentam fazer cumprir seus mandatos constitucionais – apesar da presidência que incentiva a ilegalidade – estavam na região para atender pedido de socorro dos indígenas munduruku e requisição do Ministério Público Federal. Os trabalhadores de garimpo, convocados por mensagens de whatsapp e até carro de som, foram instrumentalizados, sendo literalmente usados como barreiras humanas no confronto contra as forças policiais. Ao lado deles, participaram das ações alguns indígenas munduruku que, com o abandono estatal, veem nas migalhas oferecidas pelos donos de garimpo um caminho possível, permitindo a entrada em suas terras, sem o aval das aldeias.
O que presenciamos foi uma triste guerra entre pequenos, patrocinada por criminosos que se aproveitam do racismo contra indígenas e do ódio represado de trabalhadores em situação de fome, de abandono, de negação de direitos e rebelados contra o desleixo e a exploração que enfrentam. Esse ódio foi canalizado contra o povo Munduruku, alimentado no recorrente discurso contra a vida, o mesmo que levou Bolsonaro a vencer nas urnas.
Hoje, mais da metade da população brasileira está em situação de insegurança alimentar. Uma contrarreforma agrária está em curso, caracterizada pela paralisação da criação de qualquer novo assentamento, de qualquer demarcação de territórios indígenas ou titulação de terras quilombolas, ao mesmo tempo em que se legitimam a grilagem, o desmatamento, o roubo de madeira e os incêndios criminosos.
O próprio Presidente da República incentiva a atividade garimpeira ilegal e atua pela abertura dos territórios das comunidades tradicionais para a exploração mineral. O próprio Ministro do Meio Ambiente está envolvido no favorecimento da extração ilegal de madeira.
Essa conjuntura abre espaço para que mais e mais pessoas procurem o garimpo – e outras formas de trabalho extremamente precárias, como na extração de madeira – para poderem sobreviver.
Denunciamos ainda que toda destruição ambiental praticada nessas condições vem sistematicamente acompanhada por exploração de trabalhadores e trabalhadoras em regime de trabalho escravo. Na mesma Jacareacanga, o grupo móvel de fiscalização da Secretaria de Inspeção do Trabalho resgatou no ano passado 39 trabalhadores garimpeiros em situação de trabalho escravo. Em 2018, outros 38 trabalhadores também haviam sido resgatados na mesma região, sendo também a mesma “dona” do garimpo.
Conclamamos portanto aos órgãos públicos – e aos servidores que neles resistem ao desmonte generalizado das políticas públicas – que incluam em suas forças-tarefas e suas investigações a atenção plena e criteriosa à exploração das pessoas envolvidas nessas atividades ilegais, para que tenham seus direitos reconhecidos e para que os verdadeiros criminosos sejam responsabilizados.
Por fim, prestamos nossa solidariedade ao povo Munduruku, ao povo Yanomami e a todas as comunidades que têm enfrentado a invasão de seus territórios. E reafirmamos nosso compromisso, aliados que somos na sua luta pela vida.
Brasil, 28 de maio de 2021.
Campanha Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo