CEDAE e os caminhos abertos para a privatização da água no Brasil
Recentemente, o Brasil assistiu a mais um ataque expressivo a sua soberania nacional, aplaudido e exaltado a plenos pulmões pelas camarilhas parasitárias do Estado burguês-latifundiário brasileiro – a privatização da CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro). Em 30 de abril, foi realizado o leilão da estatal na sede da Bolsa de Valores (B3) em São Paulo, arrematada em R$ 22,6 bilhões de reais com a venda de três dos quatro blocos ofertados (os blocos são agrupamentos de municípios a serem, supostamente, contemplados no recebimento de verbas a partir do montante da venda e em proporção ao número de habitantes de sua localidade). Dois blocos foram arrematados pelo Consórcio Aegea (sócia do fundo soberano de Cingapura (GIC) e a Itaúsa) – um por R$ 8,2 bilhões e outro por R$ 7,2 bilhões; um outro bloco foi arrematado pelo Consórcio Iguá (fundo canadense CPPIB) – por R$ 7,28 bilhões. As concessionárias apresentam como principal meta a universalização do serviço até 2033 – para isso, prometem investir cerca de R$ 30 bilhões em infraestrutura de água e esgoto. Atualmente, a CEDAE atende 64 dos 92 municípios do Rio de Janeiro; a concessão se estende a 34 dos 64 municípios, além da capital fluminense, atendidos pela CEDAE. O plano de concessão foi elaborado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) nos últimos dois anos, e encontrou terreno fértil para sua aplicação no ano vigente. É sobre a história deste processo – a abertura de caminhos para a privatização dos serviços de saneamento - e suas consequências que nos deteremos aqui.
O Brasil concentra 12% de toda a água doce do mundo. É uma das maiores reservas desse recurso natural fundamental à vida em todo o planeta. Hoje, no Brasil – ou ao menos até o momento anterior ao ocorrido com a CEDAE -, 90% do serviço de saneamento básico é prestado por empresas estatais. Diante disso - e considerando que vivemos sob os ditames do capitalismo em sua fase monopolista, o Imperialismo -, há muito os grandes capitalistas procuram, de toda forma, capitalizarem a água e transformarem-na em propriedade privada, ou seja, buscam restringir o acesso direto de um recurso natural necessário à vida ao monopólio de alguns. No Brasil, já é histórica a tentativa de aplicação dessa manobra absolutamente rentável aos monopólios, mas encontraram terreno particularmente fértil para levarem a cabo essa tarefa mais recentemente.
Desde o Golpe de Estado em 2016, orquestrado pela burguesia burocrática brasileira em conluio e representando principalmente o imperialismo ianque, o governo federal vem intensificando as tentativas de privatização de setores essenciais da soberania nacional – principalmente a água e setores energéticos, mas também os Correios, a Casa da Moeda, diversos bancos públicos -, algumas já efetivadas e outras em vias de se realizarem. A própria Petrobrás, a Eletrobrás e suas subsidiárias foram alvos desses interesses entreguistas ainda no governo do golpista Michel Temer (MDB), mas no atual governo de Jair Bolsonaro (sem partido) eles seguem a todo vapor. Em um documento chamado “Cobranças pelo uso de recursos hídricos no Brasil: caminhos a seguir”, produzido no “XXII Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos” em Florianópolis, em 28 de novembro de 2017, um grupo ligado ao Banco Mundial expressa uma ordem ao Brasil para que nosso país comece a cobrar pela água consumida pelo povo “com urgência”. Com o país tomado de assalto pelos setores mais atrasados das classes dominantes locais e que, então, encontraram caminho livre para utilizarem a própria estrutura caduca e obsoleta que caracteriza o Estado brasileiro para seus propósitos, formou-se o cenário perfeito para atacarem, também, a água dos brasileiros. Para que tenhamos uma melhor noção do propósito estratégico traçado em torno da CEDAE no Rio, tocaremos em algumas outras questões.
Em 2017, o estado do Rio de Janeiro vivia uma enorme crise orçamentária e fiscal, ficando em déficit com relação ao pagamento de recursos à União. Eis que a resposta encontrada pelo governo estadual para sanar a dívida foi fazer uma outra – “emprestar” R$ 2,9 bilhões em crédito do banco BNP Paribas em um leilão ocorrido em novembro de 2017. O “Regime de Recuperação Fiscal”, instrumento criado pelo governo federal para fornecer ajuda aos estados da federação que passavam por grave crise financeira, foi amplamente malfadado diante do que supostamente se dispôs a fazer. Além disso, o Rio de Janeiro passava por outra crise que tem ligação direta com a privatização da CEDAE: o escândalo da RioPrevidência – fundo previdenciário dos servidores do estado do Rio de Janeiro. Sérgio Cabral (MDB) e Luiz Fernando Pezão (MDB), governos vigentes no período, hipotecaram o fluxo de receita dos royalties e participações especiais, que constituem a receita do Rioprevidência, a uma instituição financeira internacional, situada no paraíso fiscal do estado americano de Delaware. A Rio Oil Finance Trust (Roft) emitiu títulos financeiros ancorados no fluxo da receita, a fim de captar dinheiro de especuladores internacionais. A operação – de saldo negativo aproximado a R$ 20 bilhões - foi não apenas estruturada, como também usufruída pelo banco BNP Paribas, e as relações entre o estado do Rio de Janeiro e os agentes financeiros internacionais tornaram-se objeto de investigação na CPI da Rioprevidência.
Vejamos, agora, a convergência: em meio à dívida com a União e a contratação de empréstimo do BNP Paribas – que emprestou R$ 2,9 bilhões e receberia como pagamento (em parcela única) R$ 4,5 bilhões no prazo até setembro de 2020 -, em fevereiro de 2017, a Alerj aprovou a alienação de 100% das ações da CEDAE (lei nº 7.529/2017). A justificativa foi o “compromisso para recuperação fiscal do estado”, já que o Rio de Janeiro não pagava seus servidores públicos há 4 meses e mergulhava em um caos fiscal. No entanto, entre processos que permearam diversas instâncias governamentais locais – estado do Rio de Janeiro, governo federal, fundos e instituições financeiras estrangeiras -, o empréstimo do BNP Paribas impunha uma condição: receberia como fiança, ou “garantia”, as ações da CEDAE – ou seja, a CEDAE tornou-se o lastro do empréstimo. Se o recurso foi orientado para a amortização de dívidas, o patrimônio público da CEDAE foi utilizado para alavancar o mercado financeiro, a despeito da justificativa dos parasitas do Estado.
Trocando em miúdos e traduzindo a letra da institucionalidade brasileira: usaram de agiotagem com a empresa estatal oferecendo-a como garantia de empréstimos financeiros, usando-a como moeda de troca para o perdão de dívidas com a União, interferindo no quadro gestor e de funcionários da empresa e por aí vai. Eis dois claros exemplos da organização e planejamento em abrirem-se os caminhos para a privatização: (1) em 2019, Wilson Witzel nomeou Hélio Cabral como presidente da estatal, o mesmo sujeito que foi conselheiro de administração da Samarco quando houve o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, no estado de Minas Gerais, acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de saber dos riscos de vazamentos de rejeitos de mineração e foi um dos 22 réus da calamidade ocorrida lá – ou seja, alguém plenamente capacitado em lucrar para seus patrões estrangeiros em detrimento da vida do povo brasileiro; (2) em 2020, a CEDAE demitiu 54 funcionários que atuavam diretamente na estação de tratamento do Sistema Guandu, que teve como consequência o “cheiro e gosto ruim” da água que passou a chegar à população e que foi amplamente divulgado na mídia hegemônica burguesa a fim de propagandear a “necessidade urgente da privatização da empresa”.
A cereja do bolo foi a “coincidência” da aprovação do Novo Marco Regulatório do Saneamento, aplicado pelo atual chefe de gabinete do Estado burguês-latifundiário brasileiro, Jair Bolsonaro, em dezembro de 2020, medida necessária para tornar absolutamente viável a privatização de serviços públicos de saneamento básico por um governo completamente alinhado aos interesses do capital monopolista, também muito representado no Brasil pelo privatista Paulo Guedes, atual Ministro da Economia. O projeto intitulado “Universalização do Saneamento Básico no Rio de Janeiro” foi apresentado logo após a aprovação do novo marco regulatório – projeto constituído sem participação popular, sem passar por votação nem mesmo na Assembleia Legislativa do estado e nas câmaras municipais, o que não deixa dúvidas a respeito do caráter deste “investimento”.
Ademais, é sabido que o povo do estado do Rio de Janeiro enfrenta inúmeros outros problemas que, sabemos, interferem no gerenciamento do problema da água, principalmente em sua capital. Entre territórios dominados e oprimidos por milícias – que, aliás, demonstram terem relações diretas com o clã Bolsonaro -, o crime organizado, a existência de várias favelas nas chamadas “áreas irregulares” principalmente na capital - onde é notável e histórico o pleno descaso do Estado brasileiro para com o povo, Estado que abandonou a população à própria sorte e que somente se apresenta como aparelho repressivo, como “braço armado” em suas incursões de intervenção militar e extermínio da população pobre e majoritariamente preta -, vemos claramente que o único propósito do “projeto” é tornar ainda mais difícil a vida do povo carioca, espoliando, por meio de aumentos abusivos nas contas de água que virão com a presença ainda maior dos sanguessugas do mercado financeiro entranhadas nas negociações de Estado.
Água e saneamento estes dos quais uma parcela enorme da população marginalizada do Rio ainda não tem acesso ou tem acesso restrito, convivendo e usufruindo, muitas vezes, de água poluída e esgoto a céu aberto, ficando expostos a inúmeras doenças e sem terem as mínimas condições de higiene à sua disposição. Isso tudo sem citarmos a atual pandemia da COVID-19, que já ceifou 435 mil brasileiros, e que seu controle de disseminação exige a contínua lavagem das mãos e termos à disposição as condições mínimas de saneamento básico! Que condições têm essas populações de terem resguardados os mínimos cuidados diante do vírus? E convenhamos – será a entrega da estatal às aves de rapina, setores que são movidos única e exclusivamente pelo roubo de montantes de lucro gerados a partir da pauperização e miséria do povo brasileiro, arrancando de seu suor e sangue o capital para exporta-lo aos seus bolsos, serão eles àqueles supostamente capazes de dar uma resposta a esse quadro? É claro que não. O que é realmente nítido é justamente o que disse abertamente nosso Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial em 2020, diante da pandemia: é hora de “passar a boiada”, regulamentar todo tipo de espólio possível durante o período pandêmico para usá-lo como cortina de fumaça – às custas das vidas perdidas do povo – para aprofundarem nossa submissão ao capital monopolista e reforçarem nossa condição de país semicolonial e semifeudal.
Há aqueles que aleguem que seja “falácia” chamarmos o processo de privatização, já que os contratos dizem de “concessões” cedidas à iniciativa privada, pelo prazo de 35 anos, para inserirem-se na distribuição e abastecimento de água e esgotamento sanitário no estado do Rio; no entanto, sabemos que a verdadeira falácia se trata de todo o malabarismo gramático, ideológico, muito investido e utilizado para buscar inverter o sentido real das “concessões”. À princípio, como é sabido e histórico, sucateiam, burocratizam e, ao mesmo tempo, exploram a máquina pública da estrutura das estatais para desenharem-nas como incapazes de suprir as necessidades práticas da implementação de determinados serviços à população; depois, aparece, quase que milagrosamente, isso que chamam de “oportunidade” (e realmente é, mas sabemos que não para o povo) de melhorias no setor: a abertura da estrutura estatal para “investimentos privados” como forma de “dinamização”, “inovação”, “competitividade no setor” e muitas outras fraseologias vazias e exaustivas que o mercado financeiro utiliza como forma ideológica de justificativa de suas ações – aqui entram as concessões, supostas “parcerias” que “garantem” o retorno do pleno controle do setor ao Estado após determinados anos – o mesmo é dizer: após, no mínimo, abocanharem uma boa quantidade de capital produzido internamente no Brasil e repassarem às aves de rapina do imperialismo; todo o processo, para além de qualquer promessa cínica, culmina sempre no mesmo ponto – a privatização. Com ela, chegam suas consequências: enxugamento da folha de pagamento por demissões que visam o aumento dos lucros; diminuição drástica da qualidade dos serviços; aumentos abusivos no preço do produto ofertado, entre outros.
Caso ainda reste alguma dúvida sobre o caráter de espoliação dos lucros em detrimento da prestação qualitativa do serviço e do completo descaso com que os grandes capitalistas tratam os seus consumidores e o povo do país onde parasitam, basta avaliarmos como são prestados os serviços de telefonia, setores energéticos (energia elétrica, combustíveis, gás de cozinha, matérias-primas necessárias em outros setores produtivos, etc.) entre muitos outros no Brasil de hoje, todos monopolizados ou em vias de serem. Isso sem falarmos dos desastres sociais e ambientais causados pelo interesse de exploração plena das empresas estrangeiras em solo brasileiro, como, por exemplo, os lamentáveis e criminosos episódios de Mariana e Brumadinho, cometidos conscientemente pela Vale, empresa que saiu ilesa diante do processo destrutivo que causou.
Este é o cenário que as classes dominantes brasileiras apresentam como resolução dos problemas em relação à água no Rio de Janeiro. No entanto, ainda que a crise sanitária provocada pela COVID-19 apresente um grande entrave para a mobilização em defesa de nossa soberania nas ruas, diversas organizações populares – sindicatos, centrais, movimentos sociais – e trabalhadores vêm se manifestando contra a privatização da CEDAE no percurso do ano de 2021, inclusive às vésperas do leilão, em 29 de abril. Entre eles, há também a iniciativa intitulada “Assembleia Popular da Água e Energia”, composta pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e demais organizações que compõem a Plataforma Operária e Camponesa da Água e Energia no Rio de Janeiro, que iniciaram um processo de construção de espaços de discussão acerca do tema em municípios, nos bairros e universidades do estado, buscando estabelecer um espaço permanente de organização, formação e luta do povo a fim de defender o direito ao saneamento. A iniciativa também afirma: a privatização do saneamento no Rio de Janeiro abre precedente para especulações a respeito da privatização da água no Brasil! Como afirmam, “seguiremos defendendo a estatal, pois sabemos que defender a CEDAE é defender a água, e nós não podemos permitir que nossa água se torne mercadoria”.
Mesmo diante de tamanho descalabro, de insultos e violências aplicadas pelo imperialismo e seus representantes locais, o povo segue resistindo! O avanço das políticas austeras aplicadas pelo imperialismo, principalmente ianque, não se restringem ao Brasil, mas visam à plena dominação econômica e política de toda a América Latina, como temos visto. Em termos históricos, nada disso é novo e desconhecido aos povos latino-americanos. No entanto, não seria a primeira vez caso enxotássemos o imperialismo de nossas terras. Tomemos, como exemplo da grandeza e força de nossos povos, a “Guerra da Água”, ocorrida nos anos 2000 na Bolívia. O conflito aconteceu em Cochabamba, terceira maior cidade do país, e contou com a organização, mobilização e luta de diversos setores das classes trabalhadoras contra a privatização do sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela empresa Aguas del Tunari (filial do grupo estadunidense Bechtel) dobraram após concessão – segue, como indicação, o documentário “A Guerra da Água”. Com o povo nas ruas demonstrando claramente sua força e poder na luta unificada contra a dominação imperialista, exercendo verdadeira pressão popular, nossos irmãos latino-americanos deram mais uma prova da afirmação legítima do grande Presidente Mao Tsé-Tung: o imperialismo é um tigre de papel.
Não há saída, nos marcos do capitalismo monopolista, que favoreça as condições materiais e espirituais de vida das classes trabalhadoras. É preciso que o povo brasileiro se organize, se mobilize e garanta condições dignas de viver! Diante da força das classes trabalhadoras unidas e orientadas em sua luta justa, na construção de uma verdadeira República Democrático-Popular, conduzida pelo Partido e pela Ditadura do Proletariado, não há força reacionária que resista!