Massas trabalhadoras do Paraguai se levantam contra governo
O Paraguai vem sendo cenário de diversas manifestações massivas de trabalhadores desde o início de março, nas quais se exige a saída do atual presidente Mario Abdo e de sua camarilha da gestão do estado, bem como a prisão de todos os bandidos que usurpam as riquezas por meio do aparelho estatal. A indignação e a raiva dos trabalhadores são direcionadas ao manejo diante da pandemia de Covid-19, a péssima qualidade da educação pública, ao aumento do desemprego, ao papel nulo do governo frente a falta de alimentos para a população e a impunidade das autoridades públicas e das classes dominantes ligadas à corrupção sistêmica da burocracia do estado burguês-latifundiário paraguaio.
A faísca que incendiou as ruas partiu das denúncias e protestos feitos pelo sindicato de enfermeiras e familiares de pacientes no início do mês de março. O manifestou alertou sobre a falta de medicamentos e a defasada estrutura dos hospitais públicos. Desde então, os protestos têm se repetido dia a dia, em diversas localidades do país, com a adesão de vários seguimentos das classes trabalhadoras paraguaias.
No início da pandemia, o governo paraguaio aprovou a Lei da Emergência, sob a qual adquiriu um empréstimo de 1,6 bilhões de dólares através de organismos costumeiramente chamados de “multilaterais”, como o Banco Mundial. 600 milhões deste montante seriam destinados à saúde. Contudo, a falta de infraestrutura e insumos hospitalares aponta para o eminente colapso sanitário: os aproximadamente 650 leitos de que o país dispõe, somando os da esfera pública e privada, já estão com 100% da ocupação e, até o momento, o país só recebeu 4 mil doses de vacinas Sputnik-V, as quais foram todas aplicadas em trabalhadores da saúde. Os trabalhadores da saúde do Alto Paraná denunciam há 6 meses a falta de água no hospital distrital de Minga Guasu. A principal fornecedora de oxigênio, a empresa LOPSA, já advertiu o ministério da saúde sobre a possibilidade de desabastecimento por conta de uma dívida de aproximadamente 3,9 milhões de dólares por parte do Estado.
O presidente Mario Abdo, filho do braço direito do reacionário Alfredo Stroessner – militar que comandou o Golpe de Estado e a ditadura militar de maior período na América do sul, de 1954 a 1989 –, foi eleito em 2018, sob uma campanha totalmente voltada para a defesa do liberalismo econômico e do reacionarismo. Durante a pandemia, o burocrata chegou a dizer que o Paraguai possui um dos melhores sistemas de saúde do mundo em termos de qualidade, todavia, quando analisado o cenário atual e as condições do sistema de saúde deste país, vemos que as afirmações não passam de demagogia.
O Sistema Nacional de Saúde do país foi criado a partir da Lei 1032 de 1996, sendo integrado por instituições públicas e privadas, assim, tem a característica de ser fragmentado, isto é, o Estado financia a esfera pública, bem como dá regalias ao setor privado. O investimento em saúde no Paraguai em relação ao PIB é de aproximadamente 7,7%, entretanto, o investimento no setor público representa cerca de 2,6% do PIB – um dos menores índices de investimento na América Latina –, enquanto o investimento privado representa 5,1%.
O Sistema de Saúde Público é conformado pelo Ministério de Saúde Pública e Bem-estar Social, o Instituto de Previsão Social, Hospitais Públicos e Centros de maternidade. Estes serviços gratuitos são oferecidos a pessoas em condições de maior vulnerabilidade social, entretanto, alcançam apenas 13,9% da população, enquanto outros 7,7% têm cobertura de outros tipos de seguros públicos específicos, como é o caso dos militares e dos policiais. O subsetor privado é representado por instituições com fins lucrativos e “sem fins lucrativos”. No primeiro caso, localizam-se as empresas de medicina pré-paga, instituições assistenciais que oferecem consultas, internações, etc. No segundo caso, encontram-se as ONGs, muitas com financiamento parcial do estado. A partir do setor privado, aproximadamente 12% da população tem acesso a assistência à saúde. Frente a qualquer enfermidade, somente as pessoas asseguradas pelo Instituto de Previsão Social (IPS) ou as que possuem algum seguro privado de saúde, têm o direito e a garantia concreta de serem atendidas. Todo esse cenário propicia números alarmantes, haja vista que aproximadamente 40% da população não tem acesso garantido aos serviços de saúde. Afora que 68% da população faz uso da automedicação. Esses dados esbarram nas afirmações dos governantes do país, pois na realidade concreta, grande parte dos paraguaios não tem garantido o direito a saúde.
Outra bandeira levantada nas manifestações populares no Paraguai é a reivindicação por uma educação pública de qualidade. Os dados sobre este aspecto são preocupantes. A qualidade do sistema educativo é refletida nos altos índices de evasão escolar: a cada 100 alunos que ingressam na educação básica, 59 abandonam os estudos antes de concluir o ensino médio, e 40 alunos não chegam a concluir nem mesmo a educação primária. A oferta educacional no país abarca aproximadamente 85% dos jovens em idade de ingressar no sistema educacional e exibe a pior taxa de matrículas da América Latina.
Para se ter uma ideia do descaso do Estado paraguaio com a educação, recentemente o MEC produziu e distribuiu as instituições escolares diversos materiais didáticos repletos de erros ortográficos e gramaticais, entretanto, o governo buscou tergiversar sobre a sua responsabilidade e justificou que os 526 mil cadernos e os 40 mil guias docentes não custaram nada aos cofres públicos e ao povo paraguaio, pois foram benefícios recebidos com financiamento da União Europeia.
O que o governo paraguaio não consegue maquiar é a realidade concreta. Mesmo que de 4 em 4 anos, em suas campanhas eleitorais, os candidatos dos partidos da ordem, principalmente do Partido Colorado que está no poder, apontem em seus slogans que a educação será prioridade, os investimentos nessa área continuam muito abaixo do necessário. Pesquisadores e trabalhadores da educação apontam que para ter uma educação pública minimamente qualitativa, o estado deveria investir pelo menos 7% do PIB na educação - os investimentos no país, incluído os fundos de auxílio, alcançam no máximo 4 ou 5% do PIB.
Em 2020, o Ministério de Educação e Ciências (MEC), para “otimizar” os recursos voltados para educação, decidiu fechar 1579 salas de aula, afetando ainda mais os filhos das classes trabalhadoras que, em grande medida, já são privados do direito a educação. Estudos apresentados pela Unicef apontam que, nas áreas urbanas, 3,5% das crianças de 5 anos de idade não acessam a pré-escola. No campo, então, a realidade é muito pior: 14% das crianças desta faixa etária não conseguem acesso à educação pré-escolar.
Todo este parco investimento público em saúde e educação dizem respeito ao caráter do estado burguês-latifundiário paraguaio e a quais interesses ele serve. O Paraguai está entre os cinco maiores exportadores de soja do mundo. Os grandes latifúndios concentrados em poucas mãos nos dão um panorama sobre o caráter da economia do país. Assim como o povo brasileiro, o povo paraguaio sofre do atraso imposto pelo monopólio da terra. No ano de 2008, 85,5% das terras estavam em mãos de 2,6% dos proprietários, sendo que 351 proprietários possuíam 9,7 milhões de hectares. Em contrapartida, se estimava a existência de 300 mil camponeses sem terra para uma população de 6,5 milhões de habitantes. Dados oficiais do governo paraguaio de 2011 apontam que, do total da área cultivável do país, 84,4% são latifúndios, e que existem cerca de 300 mil famílias camponesas sem-terra. Assim, a manutenção do monopólio da terra tem representado a manutenção da concentração das riquezas, além da proliferação da pobreza dos trabalhadores.
As últimas duas décadas foram marcadas pelo crescimento da economia paraguaia, ligada principalmente ao agronegócio, à exportação da soja e outras commodities, o que proporcionou ao país um contínuo crescimento do PIB e rendeu diversos elogios por parte de órgãos de controle imperialistas, como o FMI. Contudo, devido ao monopólio da terra e parcas leis trabalhistas, os lucros seguem sendo monopolizados e a pobreza é repartida entre os trabalhadores, o que condena boa parte da população ao subemprego. Em 2020, a taxa de desemprego no país ficou em 7,9%, entretanto, 71% dos empregos são informais e os trabalhadores não gozam de estabilidade. Aproximadamente 20,7% da população se encontra em situação de pobreza extrema. O avanço constante do latifúndio, através da grilagem de terras e favores do estado, aumentam ano a ano, logo, aumenta o número de camponeses sem terra.
As contradições no campo se acirram: em 2016, por exemplo, 43 comunidades camponesas foram criminalizadas pela justiça paraguaia e sofreram ataques por parte dos latifundiários e do braço armado do estado. No mesmo ano, 87 pessoas foram feridas e torturadas, houve 16 casos registrados de destruição de bens (queima de moradias, destruição de cultivos), além de 460 pessoas terem sido perseguidas pela justiça, 273 detidas e 38 condenadas. Em 2020, durante a pandemia, os dados levantados por Abel Irala apontam que aproximadamente 5061 camponeses foram afetados pela violência, repressão e foram expulsos da terra e cerca de 200 dirigentes ligados a luta pela terra foram judicializados. Enquanto a violência e a repressão são o cartão de visita dado aos trabalhadores no campo, dados da Comissão da Verdade e Justiça apontam que os 1.507.535 hectares de terras que foram entregues irregularmente durante a ditadura de Stroessner continuam a se expandir nas mãos dos senhores de terra.
Todo este cenário, catalisado pela crise sanitária do novo coronavírus, desencadeou a fúria e a indignação dos trabalhadores e, ainda que não haja uma direção para guiar a luta para além das pautas democráticas e emergentes, o movimento vai tomando corpo e milhares de trabalhadores têm saído às ruas em diversas localidades do país. Caminhoneiros e camponeses têm promovido o fechamento de estradas e rodovias, e nos centros urbanos muitos trabalhadores seguem com as mobilizações, principalmente na capital Assunção. Diversos militantes de organizações camponesas têm marchado até Assunção e somado as mobilizações, entre eles, trabalhadores e trabalhadoras militantes da Coordenadoria Nacional de Organizações Campesinas e Indígenas, do Movimento Agrário e Popular (MAP), da Organização de Luta pela Terra (OLT) e a Federação Nacional Campesina, as organizações têm feito um chamado pela mobilização permanente.
Os estudantes secundaristas e universitários também têm participado da mobilização, exigindo o julgamento da Fiscal Geral do Estado, Sandra Quiñonez, pela má gestão de suas funções e pela criminalização dos protestos sociais. A polícia tem protagonizado o papel que se espera do braço armado do Estado, reprimindo os manifestantes e realizando prisões arbitrárias. Diversos trabalhadores têm relatado que os policiais aparecem nas manifestações balançando bandeiras brancas com insígnias “la paz es el camino”, para logo em seguida desferir golpes e atirar com balas de borracha no povo.
Na tentativa de acalmar os ânimos dos trabalhadores, o presidente Mario Abdo removeu alguns dos ministros mais criticados de alguns ministérios, entre eles Ernesto Villamayor, chefe de gabinete; Eduardo Petta, ministro da educação e Nilda Romero, do ministério da mulher. A decisão, entretanto, não surtiu nenhum efeito e a indignação popular segue sendo demonstrada nas ruas.
A classe trabalhadora pressiona as direções dos sindicatos para que as centrais sindicais façam um chamado para uma greve geral, exigindo um programa mínimo em que esteja incluso a prisão e o julgamento do presidente Abdo, do vice Hugo Velázquez e de sua camarilha; que sejam implantadas medidas de emergência e investimentos reais nas áreas da saúde e educação; que seja feita a nacionalização do transporte público e que sejam concedidos auxílios em espécie e em alimentos para os famintos. Uma exigência que visa garantir o mínimo para cumprir as medidas sanitárias necessárias para o controle da pandemia.
Solidarizamo-nos com os companheiros e companheiras do Paraguai! Seguiremos denunciando a repressão, a violência e a miséria imposta pelo estado das classes dominantes a todos os povos trabalhadores oprimidos pelo capital.