A Catástrofe no Amazonas: uma retrospectiva e as causas de uma tragédia anunciada
Temos acompanhado, já nas semanas iniciais do ano, a crítica situação em que se encontra o estado do Amazonas. Diante do gritante aumento do número de casos confirmados da COVID-19 e, portanto, da alta disseminação do vírus na região, o sistema público de saúde entrou em colapso e já não consegue fornecer atendimento à população. O cenário é estarrecedor: hospitais de referência lotados; falta de insumos necessários para lidarem com o quadro, como o fim do abastecimento de oxigênio nas unidades de saúde devido à baixa produção e alocação de recursos – previstos e não resolvidos pelo governo; a ocorrência de superfaturamento dos cilindros de oxigênio, por meio da prática de valores acima do mercado, promovidas sem qualquer atenção do governo diante do estado de calamidade sanitária ali presente; pacientes sendo transportados emergencialmente para outros estados; hospitais e cemitérios abarrotados e adaptados com câmaras frigoríficas para darem conta da alta de óbitos em decorrência da crise; entre outros problemas. São muitas as informações de que tomamos conhecimento e que nos deixam a par da situação desesperadora pela qual tem passado o povo amazonense. Faremos aqui um breve histórico dos acontecimentos no Amazonas – no percurso do ano de 2020 e início de 2021, e em decorrência da pandemia –, para, com isso, verificarmos um fato: a catástrofe infligida ao povo foi prevista, notificada e poderia ter sido evitada, mas não o foi.
O pico da COVID-19 em 2020 e o desgoverno no Amazonas
Em 23 de março de 2020, em decorrência da pandemia do coronavírus, foi anunciado o fechamento do comércio no Amazonas. Já em 10 de abril, o Hospital Delphina Aziz, da capital Manaus, referência para a COVID-19, atingia sua capacidade máxima de pacientes. Na semana seguinte, a até então Secretária de Saúde do Amazonas, Simone Papaiz – presa em decorrência da chamada “Operação Sangria”, investigação promovida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal sobre esquemas de desvio de recursos públicos voltados para a pandemia, e pela qual também foi investigado o governador do estado do Amazonas, Wilson Lima (PSC), apoiador declarado do atual chefe de gabinete do Estado reacionário brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido) – admitiu a superlotação nos demais postos de referência. A taxa de ocupação dos hospitais atingiu a marca de 90% e, no dia 17 de abril, as medidas de isolamento social foram prorrogadas até dia 31 de maio. Além disso, ainda que o governo do estado afirmasse ter se orientado pelas decisões da OMS, do Ministério da Saúde e tomado todas as medidas cabíveis para a contenção do vírus, o uso de máscara facial foi decretado como obrigatório no estado somente no dia 17 de abril. Ademais, ao fim do mês de abril, o governador do estado recebeu Eduardo Pazuello, general e ministro da Saúde, para a inauguração do primeiro hospital de campanha contra a COVID-19 no Amazonas – evento em que se registrou uma fala do ministro dizendo sobre os supostos esforços movidos pelo governo estadual para a contenção do vírus e sobre o governo federal poder apoiar “no que consegue também, porque a logística é complicada para Manaus”. Vemos que, desde então, é corriqueiro o governo federal tentar se desassociar e se esquivar daquilo que é mais sua responsabilidade do que de qualquer outro.
O período dos meses de abril, maio e início de junho de 2020 foram os mais críticos da “primeira onda” da COVID-19 no Amazonas. No dia 23 de abril, a ocupação de leitos já atingia a porcentagem de 96%, e no mês todo houveram 2.128 novas internações. Em 6 de maio, foi atingido o recorde de mortes em um dia no estado, sendo registrados 102 óbitos. Três dias depois (09.05), a média móvel de mortes por dia foi de 66; e em 29 de maio, a média móvel de novos casos por dia foi de 1.696. No dia 26 de abril, foram registrados 140 sepultamentos e duas cremações, recorde até então e motivo da adoção das valas coletivas no estado, triste realidade enfrentada pelos familiares das vítimas.
Em relação ao oxigênio – insumo fundamental aos pacientes em estado grave pela COVID-19 –, a demanda fora da situação pandêmica é, em média, de 10 mil metros cúbicos por dia. Somente nesses dois meses de pico da crise no Amazonas, a demanda quase triplicou, chegando a 28 mil metros cúbicos por dia.
O prelúdio da nova catástrofe
Em meio às incessantes tentativas oportunistas dos partidos da ordem em criarem a falsa dicotomia “saúde x economia” para transformarem-na em tema de palanque eleitoral em suas disputas internas – manobra utilizada em todo o cenário nacional (vide o caso João Dória e Jair Bolsonaro) –, o governo estadual do Amazonas parece ter investido seu guia de ações políticas nesse sentido. É isso que demonstram as consecutivas falhas e a postura negligente tanto dos governos municipal de Manaus e estadual do Amazonas, quanto do federal no trato das questões relacionadas ao manejo da crise sanitária agravada pela pandemia da COVID-19 no estado.
Em abril de 2020, enquanto o Amazonas enfrentava os altos índices de contaminação da população pelo coronavírus e o início do período que inauguraria o colapso do sistema público de saúde local, o governador do estado, Wilson Lima (PSC), já anunciava a reabertura do comércio a partir do dia 1º de junho. Durante os meses de junho e julho, com os números gerais indicativos de agravo da pandemia reduzidos, a relevância dada às medidas de prevenção – como o isolamento social, o uso de máscaras e a lavagem das mãos – também reduziram. Em julho, o Amazonas foi o primeiro estado a reabrir escolas particulares (as unidades públicas retornaram às atividades em agosto) no Brasil, e os setores de atividade econômica não essenciais (bares, restaurantes, pontos turísticos, etc.) voltaram às atividades a todo vapor, dando margem para aglomerações. Houve até mesmo um pronunciamento oficial do governador Wilson Lima e de um médico, Luis Alberto Nicolau, coordenador do hospital de campanha da capital, afirmando que Manaus havia chegado ao “fim da pandemia”. Como medida de reforço à falsa sensação de seguridade diante do vírus, foi publicado um estudo que sugeria que, após o período de crise ocorrido no semestre anterior, Manaus teria adquirido a tal “imunidade de rebanho” – lógica sustentada pela hipótese de que, tendo tido uma determinada porcentagem da população contaminada pelo vírus, essa população teria desenvolvido uma espécie de imunização natural contra a COVID-19 –, fundamento absolutamente contestável à luz da situação atual do Amazonas.
No entanto, em setembro de 2020, o epidemiologista Jesem Orellana, do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia) –, assim como outros, que citaremos posteriormente –, afirma que passou a acompanhar com preocupação o aumento dos números da COVID-19 em Manaus, atentando-se principalmente ao número crescente de hospitalizações e mortes decorrentes da doença ou sem causa definida. Passou a publicar artigos e dar uma série de entrevistas às mídias locais, alertando para a possível piora do quadro, que já se avizinhava. A resposta que obteve das autoridades locais foi uma represália, em forma de nota de esclarecimento, da diretora presidente da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), Rosemary Costa Pinto. A carta critica ferrenhamente as alegações do epidemiologista e desmente sua colocação sobre o aumento nos números de óbitos por COVID-19 e Síndrome Aguda Respiratória Grave (SRAG), além de classificar as intervenções do cientista como “sarcásticas, inadequadas e desnecessárias”.
Ainda assim, Orellana continuou a alertar as autoridades e a sociedade sobre os riscos que os dados levantados em suas pesquisas apontavam – dados comparados e crescentes entre períodos consecutivos, além do crescimento no número de óbitos por problemas respiratórios sem causa definida, na taxa de hospitalizações e na taxa de positividade nos testes de diagnóstico para a COVID-19. Afirmou que houve, por algum tempo, certa conformidade entre os poderes locais no diálogo com a população para que se atentassem aos indicativos de piora no quadro da epidemia – momento em que se começava a considerar a necessidade do lockdown. O governo até chegou a lançar um tímido decreto (Nº 42.794, de 24 de setembro de 2020 a 26 de outubro de 2020), proibindo o funcionamento de atividades de cunho turístico e não essenciais, ainda que seu alcance e efetividade tenham sido mínimos.
Foi quando ocorreu, em 29 de setembro, uma fala do atual chefe de gabinete do Estado brasileiro, Jair Bolsonaro, feita para seus apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília, descredibilizando a indicação feita pelo até então prefeito da cidade de Manaus, Arthur Virgílio Netto (PSDB), ao governador do estado alertando sobre a necessidade do lockdown para a contenção da disseminação do vírus. No mesmo dia, o governador descartou publicamente qualquer possibilidade de adoção da medida.
Diante desse contexto, Orellana afirmou categoricamente: “É bom que fique claro: quando falamos numa eventual segunda onda, o contágio e a mortalidade se iniciaram em agosto”, defendendo que medidas mais drásticas tomadas quando do início da curva não evitariam a dita segunda onda, mas que “poderíamos ter impedido esse colapso em Manaus. O achatamento da curva entre setembro e outubro permitiria que a gente entrasse no mês de novembro com uma situação menos problemática”. Os alertas continuaram sendo anunciados, mas, ao que parece, as autoridades políticas do Estado reacionário brasileiro ficaram ensurdecidas aos apelos.
A seguir, abriremos um tópico para elencarmos brevemente as alegações científicas gerais que justificam a afirmação de que a situação de colapso era prevista. Posteriormente, voltaremos à sequência dos fatos gerais que ocasionaram a crise no Amazonas.
A extensão da tragédia anunciada
Como afirmamos, não faltaram notificações acerca do não cumprimento das medidas necessárias para a redução do quadro que se instalou no Amazonas. Além de Orellana, outros cientistas alertaram sobre o perigo iminente e deram suas contribuições na análise da situação do estado – entre eles, Wallace Casaca, professor da UNESP e coordenador do Info Tracker (que monitora os dados referentes à pandemia no Brasil); Henrique dos Santos Pereira, da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Amazonas (FCA/Ufam); e o epidemiologista Diego Xavier, do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (ICICT/Fiocruz), para citarmos alguns. Encontramos, na análise e no posicionamento desses cientistas, certas considerações que citaremos a seguir.
O estado já contava, no período pré-pandemia, com a rede do sistema público de saúde local em condições precárias de infraestrutura médico-hospitalar e uma histórica negligência sanitária, convivendo com a falta de equipamento médico geral e de estabelecimentos de saúde insuficientes para o atendimento da população. Segundo Orellana, antes do início da epidemia não havia nenhum leito UTI nos 61 municípios do interior do Estado; e Diego Xavier, um dos responsáveis por um estudo que mostrou que 40% da população do Amazonas residia há mais de 4 horas de um município com condições para tratar Covid-19. Considerando um quadro mais geral, já em março de 2020 o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) publicou um artigo intitulado “Necessidades de Infraestrutura do SUS em Preparo ao COVID-19: Leitos de UTI, Respiradores e Ocupação Hospitalar”, no qual profissionais da saúde dispõem dados gerais em escala nacional sobre as necessidades de restruturação e fortalecimento da infraestrutura do sistema público de saúde para dar conta da demanda imposta pela pandemia do coronavírus. Vê-se, claramente, que o trabalho foi feito pelos profissionais e os avisos foram dados. Com o advento de uma crise sanitária de dimensões escabrosas, o que fica evidente é a saturação de um sistema público de saúde que, ainda que saibamos da imensa importância e contribuição que tem para o cuidado da saúde do povo brasileiro e que deve ser defendido como direito essencial da população, deixa a desejar por não encontrar as vias de plena realização devido ao tipo específico de política que o orienta.
Outras questões ressaltadas foram a redução da vigilância epidemiológica no estado e a ausência de uma política, que integrasse o equipamento de Saúde da Família, orientada para fornecer testagem (rápida e mais eficiente, o tipo RT-PCR) em massa para a população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), coordenada pelo governo federal que, por sua vez, orientaria os governos estadual e municipal. Se mais recursos fossem direcionados à testagem em massa e se as medidas de isolamento social fossem ampliadas e sustentadas, a transmissão comunitária seria mais controlada. No entanto, o que Casaca aponta é que “não há alinhamento entre o governo federal, estadual e municipal. Aí ninguém faz nada, muito menos o federal”. Ademais, também apontam para as condições socioeconômicas do povo amazonense como um possível agravante do quadro geral do estado. Somente na capital Manaus, segundo dados do IBGE, 53% da população vive em condições precárias de moradia – o que já nos sugere uma triste imagem da realidade do povo amazonense em geral.
Além disso, uma preocupação constante entre os profissionais da saúde e cientistas voltados à questão pandêmica e engajados na verdadeira ciência é a irresponsável indicação do tal “tratamento precoce”. O que os profissionais alegam a esse respeito é bem claro: tratamento precoce à COVID-19 é o cumprimento das medidas de isolamento social e testagem em massa, para que seja possível controlar a transmissão comunitária e, consequentemente, reduzir a necessidade do uso do sistema público de saúde – ou seja, tratamento precoce é sinônimo de prevenção aos riscos de contaminação (além, é claro, das campanhas de imunização provenientes da produção de vacinas). Entretanto, o que todo o povo brasileiro vê ser amplamente propagado aos quatro ventos no Brasil – e tendo como propagandistas principais a alta cúpula do governo federal, encabeçado por seus militares e por Jair Bolsonaro – é que o tratamento precoce seria aquele em que se fornece medicamentos como Cloroquina, Hidroxicloroquina e Ivermectina aos pacientes suspeitos de estarem contaminados pela COVID-19. Até o presente momento, não há qualquer comprovação científica que afirme a eficácia do uso desses fármacos no tratamento da doença, e isso tem sido incessantemente afirmado pelos profissionais da área; o que há, na verdade, é a participação de Donald Trump – ex-presidente dos EUA, chefe do subordinado presidente Jair Bolsonaro e, até o ano passado, representante da nação imperialista ansiosa pela plena dominação da América Latina – nos investimentos da Sanofi, farmacêutica francesa que produz a hidroxicloroquina. Uma baita coincidência!
Sobretudo, além dos vários fatores citados anteriormente, há um ponto ressaltado pelos cientistas que sugere ter enorme relevância no drástico aumento de casos no estado do Amazonas: a descoberta de uma nova cepa da COVID-19 no estado. Em 09 de janeiro de 2021, o Japão notificou o Ministério da Saúde do Brasil sobre a variante identificada em quatro viajantes japoneses que passaram uma temporada no estado do Amazonas e que retornaram ao país em 02.01.21. As informações compartilhadas pelas autoridades sanitárias japonesas notificam que essa variante da COVID-19 possui 12 mutações e há semelhanças com as cepas identificadas no Reino Unido e na África do Sul, o que sugere uma justificativa para a alta taxa de transmissão verificada no Amazonas, visto que os estudos realizados nesses países em relação as cepas lá encontradas indicam uma taxa ainda mais alta de transmissão do vírus. Ademais, estudos e análises da Fiocruz Amazônia indicam que essa cepa foi originada no Brasil, pois a linhagem B.1.1.28, da qual se originou, se encontra em todo o país e é mais frequente na região do estado do Amazonas. No entanto, ainda que essas sejam as hipóteses mais palpáveis, faltam estudos mais aprofundados para serem comprovadas.
Por fim, foi essa infeliz combinação de fatores sanitários, sociais e econômicos pré-pandemia, somados à negligência das autoridades sanitárias, políticas e da população diante da COVID-19 que levou o estado do Amazonas ao caos.
Essas foram às consecutivas contribuições científicas e os alertas fornecidos à alta institucionalidade e jurisdição brasileira em todas as suas instâncias – federal, estadual e municipal –, que pouco ou nada fizeram em resposta aos custosos esforços do povo brasileiro em sanar as complicações impostas pela crise sanitária. Voltaremos agora aos eventos do fim de 2020 e início de 2021 no Amazonas.
Fim de 2020 (a causa) e o sombrio início de 2021 (o efeito)
No mês de setembro, os números que estavam em desaceleração desde maio voltaram a crescer. O estado voltou a ter uma média semanal superior a 4 mil casos, número próximo aos de julho. A Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) declarou que houve evolução da média móvel de casos em 23% no estado, mas a postura pública e oficial do órgão continuou a ser ignorar sistematicamente os alertas proferidos pelos profissionais da saúde e cientistas.
No mês de outubro, houve registro de 298 mortes no estado, 148 notificadas como causadas pela COVID-19, e outras 150 com notificação posterior – que ocorre quando a causa da morte é confirmada após a data de ocorrência do óbito. Em 24 de outubro, imagens registradas por pacientes do Hospital e Pronto-Socorro 28 de agosto e divulgadas pelo Sindicato dos Médicos do Amazonas mostram a face da realidade: salas superlotadas e acompanhantes deitados no chão no hospital. O Sindicato informou ter ouvido relatos de funcionários que alegaram sobre pacientes terem sido transferidos para o Delphina Aziz, mas que vieram a óbito após esperarem até 48 horas pelo transporte; um trabalhador relatou, também, que além dessa espera, 12 pacientes em estado grave morreram pela falta de oxigênio medicinal na unidade. Mesmo com toda a demonstração empírica do caos que já se instalava no estado, o governo do Amazonas continuou negando o agravamento da situação local.
Então, em novembro, é chegado o momento – como se já não bastasse – de mais um ingrediente a ser acrescentado ao cenário amazonense e, neste caso, também nacional: as eleições. A festa da democracia burguesa fez-se declarada e, com isso, todo tipo de afrouxamento possível nos cuidados e prevenção em relação à COVID-19 também se presentificaram. Diante da própria legitimação do caos promovida pelos partidos oportunistas que compõem a suposta democracia burguesa – com seus comícios regados de muitas carícias sem máscaras, apertos de mão e tentativas de ludibriação do povo, coisa corriqueira e demasiadamente conhecida pelos brasileiros –, a COVID-19 encontrou espaço para se disseminar ainda mais nas grandes aglomerações, assim como a politicagem barata e datada dos partidos da velha ordem. Passada a festa, a conta chega.
Em dezembro de 2020, a cena já estava montada e só pioraria com a chegada das festas de final de ano. Diante do aumento generalizado nos números de casos e óbitos pela COVID-19, em 23 de dezembro, o governador Wilson Lima anunciou o decreto nº 43.234 (que passaria a vigorar em 26 de dezembro), que “impunha”, no período de 26 de dezembro de 2020 a 10 de janeiro de 2021, a suspensão do funcionamento de estabelecimentos comerciais e serviços não essenciais; e prenunciava, aos estabelecimentos de serviços essenciais, medidas específicas a serem obrigatoriamente cumpridas, sob o risco de sanções previstas em lei, como advertências, multas, embargos e interdição. Em 26 de dezembro, dia inicial da validação do decreto, houveram manifestações encabeçadas por empresários e comerciantes criticando-o e alegando que isso resultaria em “demissões e prejuízos ao setor”. Houve, aliás, até mesmo uma liminar na justiça movida pela Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) pedindo que os shoppings continuassem abertos ao público no período do decreto – o que foi negado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM).
No dia seguinte (27.12), o vacilante governador Wilson Lima impôs um novo decreto, o decreto nº 43.236 – que vigoraria de 28.12.2020 a 11.01.21 –, flexibilizando as medidas e colocado uma restrição provisória do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais e serviços não essenciais para o período das 19h às 6h em dias de semana, e para os finais de semana e feriados o funcionamento exclusivo na modalidade delivery. No mesmo dia, a taxa de ocupação do Hospital Delphina Aziz, referência para a COVID-19 em Manaus, já se aproximava de 100%; e, além disso – pasmem, ou não – o Amazonas já havia desativado 85% dos leitos de UTI para a COVID-19. Ou seja, o que não cessa em ficar escancarado, no caso do Amazonas, são as constantes contradições entre a realidade dos centros de referência do sistema público de saúde do estado e a postura do governo em ignorar as provas cabais e explícitas de que sua rede de atendimento à saúde já estava saturada e entraria em colapso muito em breve. De toda forma, a conclusão que podemos tirar disso é: se tudo isso foi previsto, notificado e nada foi feito, não temos apenas uma incompetência logística ou erros justificáveis, mas sim uma sequência de fatos que denuncia a negligência completa – principalmente dos governos estadual e federal – e um posicionamento criminoso dos gestores do Estado diante da situação de calamidade local. Foi nessas condições que o estado atravessou os últimos dias do ano de 2020.
Obviamente, já nos primeiros dias de 2021 o caos estava plenamente instalado no estado amazonense. Em 2 de janeiro, as medidas de restrições voltaram a mudar quando a Justiça do Amazonas foi obrigada a atender à decisão do Ministério Público do Estado, que determinava a suspensão de todas as atividades pelas próximas duas semanas. Assim, em 4 de janeiro, o governo acatou o mandado judicial e aplicou o decreto n.º 43.269 – que revalidava o decreto nº 43.234, de 23.12.2020 – suspendendo totalmente as atividades não essenciais pelo prazo de 15 dias. Em 7 de janeiro, o governo do Amazonas prorrogou, por mais 180 dias, o estado de calamidade pública na região. Em 12 de janeiro, às vésperas de bater o novo recorde de registros de casos e mortes no estado desde o início da pandemia (fato ocorrido em 14.01.2021), lança-se o decreto nº 43.277, que suspende os serviços de transporte fluvial e rodoviário do Amazonas, além do funcionamento de marinas e academias. Então, em 14 de janeiro, é promulgado o decreto n.º 43.282, que mantém a suspensão de toda e qualquer atividade econômica considerada não essencial e proíbe a circulação de pessoas em Manaus entre as 19h e 6h, decretando, portanto, um toque de recolher. Essa medida ficou prevista para correr pelos próximos 10 dias a partir da quinta-feira (14), mas foi prorrogada até o dia 31 de janeiro. Em 14 de janeiro, o Amazonas alcançou seu novo recorde em número de casos registrados, no estado e na capital, desde o início da pandemia (março de 2020), notificando 3.816 novos casos, sendo 2.516 somente em Manaus.
Em 16 de janeiro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, determinou a abertura de um inquérito no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para apurar eventual omissão do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), e da prefeitura de Manaus, agora empossada por David Almeida (AVANTE), na condução da crise instalada no estado que colapsou o sistema público de saúde, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de oxigênio para pacientes com COVID-19, sobre o qual falaremos mais adiante. A afirmação do procurador é embasada na consideração do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que cabe à União, aos estados e aos municípios atuarem articulados no combate à pandemia. Ainda assim, a Procuradoria Geral da República (PGR) afirmou que não investigará o governo do atual chefe de gabinete do Estado reacionário, Jair Bolsonaro – para isso, Aras precisaria abrir um inquérito no STF, o que, até o momento, não aconteceu.
Dados atualizados da crise amazonense
Até o presente momento (20.01), o estado registra o exorbitante número de 238.980 pessoas infectadas – 103.132 em Manaus (43,16%) e 135.848 do interior do estado (56,84%) – e 6.598 óbitos – 4.371 em Manaus e 2.227 no interior – no estado desde o início da pandemia provocada pela COVID-19. Nessa quarta-feira (20.01), o Amazonas registrou 5.009 novos casos – foram confirmados 3.632 em Manaus e 1.377 em cidades do interior – e, novamente, bateu o recorde de registros diários. Dentre os óbitos registrados no dia, 148 foram confirmados como provocados pela COVID-19 (56 nas últimas 24h e 92 confirmados após investigação).
Entre os casos confirmados de COVID-19, 1.812 pacientes estão internados, sendo 1.187 em leitos de enfermaria (516 na rede privada e 671 na rede pública), 592 em leitos de UTI (271 na rede privada e 321 na rede pública) e 33 em sala vermelha, estrutura voltada à assistência temporária para estabilização de pacientes críticos/graves. Além disso, outros 616 pacientes estão internados como casos suspeitos e que aguardam a confirmação do diagnóstico. Desses, 503 estão em leitos clínicos (60 na rede privada e 443 na rede pública), 70 estão em UTI (37 na rede privada e 33 na rede pública) e 43 em sala vermelha. A ocupação dos leitos de UTI COVID chegou a 94,30% nessa quarta, e o número de ocupação de leitos clínicos para COVID-19 chegou a 98,20%. Por conta da condição insustentável do sistema de saúde amazonense, 131 pacientes já foram transferidos de unidades de saúde locais para outros estados – como Acre, Distrito Federal, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pará e Goiás.
A preocupação é grande, e o quadro, dramático. Além do próprio desempenho logístico necessário para o transporte dos pacientes, há ainda o risco de – caso sejam confirmadas as suspeitas dos cientistas, que apontam para a existência da nova cepa da COVID-19 no estado, com taxa mais alta de transmissão do vírus – acentuar a crise nos outros estados, transportando tanto os pacientes necessitados de tratamento quanto a variante do vírus.
Crise do Oxigênio no Amazonas
Além de todos os agravos que citamos anteriormente, com a crise e o colapso do sistema público de saúde local sem precedentes, agora o motivo de maior preocupação é a escassez de oxigênio medicinal para manutenção dos pacientes com sintomas graves (como insuficiência pulmonar) infectados pela COVID-19. Em 14 de janeiro, houve escassez total do insumo por um período de 5 horas, levando inúmeras pessoas a óbito. Desde então, iniciou-se uma corrida incessante em busca da adaptação logística necessária para o transporte do insumo ao estado do Amazonas, já que a capacidade de produção do estado já foi excedida em déficit há dias atrás – questão também notificada anteriormente e mal conduzida pelo governo, principalmente nas instâncias estadual e federal. O cenário catastrófico foi apresentado por muitos profissionais da saúde e pela população nas redes sociais, que relataram ter assistido aos pacientes morrerem nas macas sem nenhuma possibilidade de algo ser feito para evitar os falecimentos. Orellana, o epidemiologista que citamos neste texto, chegou a afirmar que “leitos viraram câmaras de asfixia” – e temos aqui uma imagem para compreendermos a dimensão do problema que enfrenta o povo amazonense.
Para termos uma ideia da situação, a demanda média de oxigênio em períodos sem pico de internação fica entre 15 e 17 mil metros cúbicos por dia. A produção das três fornecedoras do insumo da região (White Martins, Carbox e Nitron) equivale a 28,2 mil metros cúbicos diários, sendo que, até 14 de janeiro, a demanda necessária para o suprimento dos pacientes da COVID-19 em estado grave saltou para 76,5 mil metros cúbicos por dia – ou seja, o estado lida diariamente com um déficit de 48,3 mil metros cúbicos, considerando os números até o dia 14.
Para tentar dar conta da demanda, a empresa White Martins solicitou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) um pedido para produzir e distribuir oxigênio medicinal a 95% de teor de pureza, em vez de 99%, nas unidades da rede estadual de saúde, o que foi autorizado pela Anvisa. Segundo a empresa, essa flexibilização no nível de pureza permitiria o aumento da capacidade de fabricação. A mudança é válida por 180 dias e cumpre condições específicas, em caráter emergencial diante da situação amazonense. Em função da dimensão do problema, mesmo com o estado recebendo doações privadas de oxigênio e buscando – ainda que muito tardiamente – adaptar os setores industriais regionais para o suprimento das condições necessárias no Amazonas, a demanda não tem sido suprida e, por isso, pacientes continuam a ser transportados para outros estados. Os atrasados governo estadual do Amazonas e Ministério da Saúde do Estado brasileiro anunciaram a “Operação Oxigênio”, uma operação que visa o abastecimento dos hospitais do estado, uma medida tardia, que poderia ter sido melhor organizada e não o foi por negligência de ambos. Segundo o próprio governador do Amazonas, não falta oxigênio no mercado nacional, mas é difícil levá-lo e distribui-lo no estado – ou seja, o planejamento prévio da logística necessária ao Amazonas foi negligenciada durante os últimos meses, mas agora, com a situação escancarada, tornando impossível a negação de conhecimento do governo diante da situação, assume-se a “dificuldade”. Na operação, afirmam que direcionarão o estoque da produção de oxigênio de 17 indústrias do Polo Industrial de Manaus – como Gree Eletric, Moto Honda, LG Eletronics, Yamaha Motor, Electrolux e Whirlpool – para os hospitais de referência no Amazonas. Segundo o governo, tudo o que será enviado aos hospitais será indenizado depois. Além disso, informaram sobre a construção de miniusinas voltadas para o suprimento da produção necessária e emergencial do insumo.
Segundo afirmação da White Martins, a empresa notificou o governo do estado sobre o risco de colapso na primeira semana do ano vigente. Inclusive, o ministro da saúde, general Eduardo Pazuello, também foi alertado sobre a escassez crítica do insumo por integrantes do governo do Amazonas – como informa os relatórios produzidos pela Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) entre os dias 8 e 11 de janeiro. Nesses relatórios, há informações sobre defasagens logísticas – que responsabilizam a desarticulação entre as instâncias do governo local e federal – e relatos de médicos que tiveram que escolher quais pacientes teriam atendimento adequado e quais receberiam atendimento paliativo – leia-se, tiveram que escolher quem vive e quem morre.
Além disso, foram registradas inúmeras denúncias de empresas de comercialização do insumo praticando preços acima do valor de mercado nas vendas na região. Em notícias na mídia e nas redes sociais, há relatos da comercialização dos cilindros que variam entre R$ 500,00 e R$ 6.000,00 por unidade – valores abusivos sendo cobrados de uma população que se encontra majoritariamente em condições materiais escassas de vida. O governo, que se gaba de aplicar medidas restritivas e punitivas em se tratando desse tipo de atuação, pouco ou nada fez diante das denúncias.
A Solidariedade Latino-Americana
Em 15 de janeiro de 2021, foi anunciado pelo ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, que, por instruções do presidente Nicolas Maduro, ocorreria o fornecimento da produção disponível no país ao estado do Amazonas – um total de 107 mil m³ de oxigênio doados pela Venezuela. A empresa White Martins comunicou que buscaria o estoque disponível em suas operações no país vizinho e que tentaria viabilizar a importação para abastecer o estado.
Os esforços da Venezuela em contribuir com o Brasil não são de hoje. Em agosto de 2019, por exemplo, a chancelaria bolivariana ofereceu ajuda durante as queimadas na Amazônia, além de declarar sua intenção de união dos esforços entre os dois países para lidarem com a crise sanitária provocada pela COVID-19. Em julho de 2020, o próprio Nicolas Maduro, presidente da Venezuela, chegou a afirmar que gostaria de ter uma coordenação efetiva com autoridades governamentais e de saúde brasileiras, mas o Itamaraty ignorou.
Segue a posição colocada pelo ministro Jorge Arreaza: “Seguindo instruções do Presidente Nicolas Maduro, conversamos com o governador do estado do Amazonas, Brasil, Wilson Lima, para disponibilizar imediatamente o oxigênio necessário para atender a contingência sanitária em Manaus. Solidariedade latino-americana acima de tudo!”, afirmou. Além da doação do estoque de oxigênio, os irmãos latino-americanos ainda colocaram à disposição do governador do Amazonas, Wilson Lima, um agrupamento de 107 médicos residentes formados no país, com o objetivo de ampliar o atendimento no estado e amenizar a crise sanitária e o colapso do sistema público de saúde local.
Em contrapartida, tudo o que afirmou o atual chefe de gabinete do Estado reacionário brasileiro, Jair Bolsonaro, é que “[nós, o governo federal] fizemos a nossa parte, com recursos, meios” e reafirmou o uso do controverso “tratamento precoce, que alguns criticam ainda” – questão que abordamos anteriormente neste texto. Há um esforço incessantemente promovido pelo governo federal em se desassociar do drama enfrentado pelo povo amazonense, nitidamente marcado pela tentativa de desresponsabilização da instância pela péssima gestão da crise sanitária e pela desarticulação com os governos locais. É criminoso o que fez, faz e continua a fazer o Estado brasileiro frente ao desespero da população do Amazonas.
Assim, fica nítida a diferença de perspectivas e ações políticas entre um governo anti-imperialista, como o da Venezuela, e o inconsistente e genocida governo reacionário do Estado brasileiro diante do caos instalado no Amazonas.
Como pudemos ver, não há a menor possibilidade de considerarmos justificado o amplo desamparo que o Estado burguês-latifundiário brasileiro – gerido hoje pelos partidos da velha ordem, datados e reconhecidamente indiferentes ao povo, e pela aliança formulada entre militares e a alta cúpula do chefe de gabinete Jair Bolsonaro – infligiu deliberadamente à população amazonense. Em suas idas e vindas, entre posições tomadas e revogadas, entre a completa incapacidade do Estado em gerir qualitativamente a crise sanitária, não só no estado do Amazonas, mas em todo o território nacional, é o povo que se encontra desesperado e desamparado por um governo que não se responsabiliza em dar respostas efetivas às demandas e aflições de quem dá a vida, o suor e o sangue por nosso país.
Ainda que tenhamos trabalhado aqui o fato da ingerência das instâncias governamentais na condução da crise sanitária agravada pela pandemia da COVID-19 no Amazonas, é importante frisarmos que essa é uma particularidade de um problema muito maior. A ingerência é demonstrada no caso específico da crise do Amazonas, mas faz parte de uma universalidade – a incapacidade estrutural própria do capitalismo em dar respostas amplas e cabais às crises, já que seu próprio funcionamento gera muitas delas. Considerando a realidade de nosso país, semicolonial e semifeudal, torna-se ainda mais difícil superar os entraves impostos por uma classe dominante que prioriza, além do interesse em manter seus altos lucros, o cumprimento da agenda imperialista, determinada a explorar as nações subordinadas. Especialmente em tempos de crise, não interessa o que o povo brasileiro precisa, desde que o ultrajante e criminoso espólio da nação seja promovido. A burguesia burocrático-compradora brasileira – representada pelos velhos partidos da ordem e pela alta cúpula que acompanha Jair Bolsonaro – busca incessantemente, e indiferente às vidas que se perdem no caminho, a garantia dos altos lucros às grandes corporações estrangeiras que salivam diante da oportunidade de ouro que uma crise dessa dimensão pode lhes oferecer. A única e verdadeira resolução do quadro – conjuntural e estrutural - em que o Brasil se encontra é a organização, mobilização e luta anti-imperialista pela revolução democrática, pela defesa da soberania nacional e por sua verdadeira independência!
Por último, nós da União Reconstrução Comunista (URC) declaramos nossa solidariedade ao povo amazonense, que enfrenta a duras penas um caos sanitário e social do qual é apenas vítima. O povo não esquecerá os sofrimentos aos quais foi submetido, e nem quem são seus verdadeiros inimigos! Que estejamos unidos na luta pela derrubada da ditadura burguesa, pela tomada do poder pelo povo, pela construção de um Estado Democrático e Popular, em direção ao socialismo e ao comunismo!
Referências:
B. Rache, Rocha, R., Nunes, L., Spinola, P., Malik, A. M. e A. Massuda (2020). Necessidades de Infraestrutura do SUS em Preparo ao COVID-19: Leitos de UTI, Respiradores e Ocupação Hospitalar. Nota Técnica n.3. IEPS: São Paulo.
Estadão. Explicação mais plausível para explosão da covid em Manaus é nova variante do vírus, diz cientista. 15 jan. 2021. https://outline.com/6mghSP
https://amazoniareal.com.br/amazonas-vive-segunda-onda-de-covid-19-mas-autoridades-negam-28-10-2020/