Protestos contra o racismo tomam o país após assassinato no Carrefour
O brutal assassinato de João Alberto Freitas, de 40 anos, ocorrido na véspera do dia da Consciência Negra em uma unidade do Carrefour da cidade de Porto Alegre, causou uma onda de protestos populares em diversas cidades do país contra a rede varejista francesa. O povo brasileiro, em especial a população preta, demonstrou mais uma vez que não aceitará calada a destruição de suas condições de vida e o constante risco de morte em que são colocados pelos grandes proprietários e agentes repressivos do Estado.
Os protestos aconteceram principalmente nas capitais. Em Porto Alegre centenas de manifestantes protestaram durante duas horas em frente à unidade em que aconteceu o crime; após esse tempo, invadiram os portões do estacionamento e adentraram no primeiro andar da loja. A Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes, não sem deixar uma pichação nos muros do estabelecimento, na qual pode ser lido: “Polícia genocida” – lembremos que um PM estava presente e participou da agressão e um dos seguranças que espancaram João Alberto exerce também a função de policial.
Em São Paulo, na Avenida Paulista, uma manifestação que já estava marcada pelo dia da Consciência Negra pediu justiça por João Alberto. Na mesma região, uma unidade do Carrefour foi invadida por manifestantes, que destruíram prateleiras e vidraças. Um princípio de incêndio foi registrado.
Também foram registradas manifestações pacíficas em cidades como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba. Fora das capitais, houve um protesto na cidade de Londrina, no estado do Paraná. Em todas elas, foi exigida justiça pela vítima e denunciado o caráter racista desse assassinato.
É sabido que a sociedade brasileira foi edificada com base no sangue dos negros, na exploração impiedosa da mão de obra escrava, camponesa e operária negra. Como consequência disso, é marcada por uma ideologia racista, que coloca constantemente o negro como “inferior”, “violento”, “criminoso”, “irracional”, entre outros disparates que, não obstante seu estatuto de irrealidade e absurdo, servem aos interesses dos senhores brancos de ontem e hoje. Desse modo, são garantidas condições favoráveis para a exploração extrema dessa população – que ainda hoje são preteridos em escolhas de emprego e recebem salários menores do que trabalhadores brancos que exercem a mesma função –, bem como para a reprodução da violência dirigida especialmente contra as parcelas dessa população que a economia e a sociedade de modo geral não foram capazes de integrar.
Sofremos e nos revoltamos, todos os anos, com a morte de dezenas de milhares de homens negros, sobretudo os mais jovens, cujas vidas são interrompidas prematuramente por ação das Polícias Militares brasileiras. Os números não dão margem para questionamentos: os negros são 8 em cada 10 dos assassinados pelas polícias em nosso país. São também a maioria dos desempregados, 64% deles. E dos 13,5 milhões de brasileiros em condição de “pobreza extrema”, 75% são negros.
Diante disso, como é possível negar o caráter racista das classes dominantes e do Estado brasileiro, e que o fato ocorrido na noite da última quinta-feira em Porto Alegre foi uma expressão inequívoca dessa realidade?
João Alberto Freitas era um homem negro de 40 anos de idade. Tinha uma família: era filho, esposo, pai. Trabalhador, era aposentado por invalidez por ter fraturado o fêmur e dois dedos no período em que foi empregado no Aeroporto Salgado Filho. Sua morte não se justifica por nenhuma de suas ações, que as filmagens demonstram não motivar a implacável violência com que foi espancado e asfixiado. Pesou contra ele a tez de sua pele e sua condição de trabalhador.
O Carrefour, em contrapartida, é uma gigantesca rede de comércio varejista de origem francesa, presente em boa parte da Europa e América Latina. Em 2019, seus lucros foram calculados em 2 bilhões de euros, seus ativos em 31,9 bilhões e sua receita em 78,9 bilhões. A filial brasileira registrou no terceiro trimestre deste ano lucros recorde, da ordem dos 713 milhões de reais, um aumento de 74,9% em comparação com o mesmo período do ano passado. É uma das muitas empresas estrangeiras que dominam com poder de monopólio setores sensíveis de nossa economia.
Os proprietários desse gigantesco monopólio comercial são indiferentes aos casos de racismo e a violência que acontecem em suas lojas; basta, para eles, que alguns de seus representantes escrevam notas públicas ou vão às mídias e redes sociais fazerem uma manifestação protocolar, nas quais dizem que “sentem muito” e que “vão tomar as devidas providências” para investigar o caso e prevenir que novos aconteçam. O mesmo roteiro até que o fato se repita uma vez mais.
O fato de ser reincidente nos abusos também demonstra a indiferença por parte do monopólio francês. Em agosto deste ano, em uma loja no Recife, o corpo de Moisés dos Santos, trabalhador da empresa que veio a falecer durante o horário de serviço, foi deixado caído no chão de um corredor, ocultado por guarda-sóis e cercado de caixas, postas com o objetivo de evitar que a loja fechasse e as vendas parassem. No ano passado, o Sindicato dos Comerciários de Osasco e região denunciou sete unidades do Carrefour no estado de São Paulo, que estariam controlando e restringindo os trabalhadores de irem ao banheiro.
Em 2018, outro caso de racismo, dessa vez em uma loja de São Bernardo do Campo, onde um homem negro foi agredido por seguranças por ter aberto uma lata de cerveja dentro do supermercado. Em 2017, funcionários da empresa denunciaram o fato de terem sido demitidos por terem iniciado um movimento de greve exigindo o pagamento correto por dias trabalhados em feriados. Esses fatos, muitos deles marcados pelo racismo, formam uma lista que se estende indefinidamente.
As manifestações ocorridas nos últimos dias demonstram que o povo brasileiro não terá mais a mesma tolerância com os abusos cometidos por essas empresas, especialmente aqueles motivados por discriminações raciais. É preciso apoiar sem medo toda e qualquer ação de revolta que nosso povo realize nesse sentido e que, afinal, não é mais do que a inevitável resposta diante da realidade que lhe é imposta.