Saneamento básico, "novo marco do saneamento" e capitalismo burocrático
Bolsonaro sancionou o dito “novo marco legal do saneamento básico”, ou “Projeto de Lei 4162/2019”, após este ter sido aprovado no Senado Federal na data de 24 de junho de 2020. Em síntese, o tal PL, de punho do senador cearense Tasso Jereissati, notório grande capitalista, possui os seguintes pontos fundamentais: 1) dado que, até então, a grande maior parte do serviço de saneamento básico é conduzido por governos municipais, para que estes municípios recebam apoio financeiro e técnico da União, devem privatizar as empresas estatais de saneamento; 2) a partir de agora, a regulação do sistema de saneamento básico brasileiro fica por conta da Agência Nacional de Águas (ANA), cujo apoio financeiro e técnico, tal como no caso da União, fica sujeito à adesão dos municípios ao novo sistema; 3) a PL 4192/2019 põe fim ao chamado “subsídio cruzado”, que consistia na compensação das regiões brasileiras cujo serviço de saneamento básico resultava em déficits mediante o uso dos excedentes das regiões mais ricas, superavitárias. Em suma, trata-se de mais um projeto privatista, pró “business”, anti-povo e anti-pobre, mais uma das tais “boiadas” já mencionadas por nosso ilustríssimo Ministro Ricardo Salles.
Quadro resumido do serviço de saneamento básico brasileiro e o debate sobre o problema
Não há dúvidas que a situação do saneamento básico brasileiro é uma das manifestações mais deploráveis do atraso econômico e social de nossa nação. Em um país imenso e riquíssimo, que abriga, sozinho, 1/5 da água de todo o mundo, aproximadamente 35 milhões de nossos compatriotas não possuem acesso ao serviço de água tratada. Metade de nosso povo não possui acesso ao serviço de coleta e tratamento de esgoto. Cerca de 15 mil brasileiros morrem anualmente por doenças decorrentes da precariedade do saneamento básico, e 350 mil são internados todos os anos por conta da mesma motivação.
Os leitores mais assíduos certamente podem encontrar grandes semelhanças entre este quadro, que descreve o Brasil do século XXI, e os relatos feitos por Friedrich Engels em seu magnífico trabalho A Situação da Classe Operária na Inglaterra, na qual descreve os bairros operários de Londres, e particularmente os bairros habitados por imigrantes irlandeses, onde os detritos eram jogados nos arredores das casas destes mesmos bairros superpovoados. Engels argumentava que, sob as anteriores condições das habitações rurais destes moradores, nas quais as casas eram demasiado espaçadas entre si e o ar puro do campo tinha condições de amenizar a situação, tal falta de zelo não gerava grandes problemas, mas que sob as então condições de urbanização, que enfurnava e enfurna massas e massas de seres humanos em espaços reduzidíssimos, possui um perigosíssimo potencial para o alastramento de doenças e para a deterioração das condições de vida daqueles que aí habitam. A situação brasileira é, neste sentido, ilustrativa.
Contudo, há um detalhe que não é pequeno. O trabalho de Engels que mencionamos foi escrito no ano de... 1845. Em um período como este, no qual o próprio conhecimento sobre o problema ainda era muito restrito, seria realmente de se imaginar que o acesso das massas ao saneamento básico, por conseguinte, fosse também bastante restrito, quando não inexistente. É algo ultrajante e inadmissível, porém, que metade de nosso povo, em uma “potência emergente”, ainda viva sob condições semelhantes àquelas descritas por Engels em meados do século XIX, há quase 200 anos, quando tantos conhecimentos e práticas positivas já se acumularam sobre o problema do tratamento de resíduos!
Variando somente em termos quantitativos de disputas de dados, não há posição no debate sobre o saneamento básico brasileiro que negue este quadro, desde os posicionamentos progressistas aos mais reacionários. A partir da sanção presidencial de ontem, contudo, venceu sem dúvidas, em termos práticos, a posição pró “business”, aparentemente tão simples, que estabelece que a razão para o atraso brasileiro no saneamento básico ocorreria em virtude do monopólio estatal, da municipalização do serviço. O argumento não é tão diferente daquele tão alardeado durante outros processos de privatização do passado: para se universalizar o serviço de saneamento básico, seriam necessário investimentos de cerca de 500 bilhões de reais que, em tese, o falido Estado brasileiro não possuiria, devendo-se então, portanto, entregar o serviço à “iniciativa privada” – leia-se: grandes conglomerados capitalistas –, que possuiria este montante. Privatizar seria uma forma de “atrair investimentos”. Ademais, a privatização traria “eficiência” ao serviço de saneamento básico, pois o Estado, ao exercer o monopólio, forneceria um serviço ineficiente pelo fato de não haver concorrentes, não havendo também, por conseguinte, estímulo a um serviço melhor – a privatização faria com que novas empresas aparecessem, concorressem entre si, e fornecessem um serviço melhor e mais barato para a população.
Porém, tais lorotas parecem não conseguir enganar sequer os mais ingênuos.
É verdade, as grandes empresas privadas do ramo de saneamento básico são riquíssimas, e capazes de arrecadar verdadeiras fortunas em termos de créditos, até mesmo com direito a empréstimos junto a instituições financeiras e bancos internacionais. Porém, o que fará tais empresas despenderem cerca de meio trilhão de reais sob forma de investimentos certamente não será a benevolência e o amor aos pobres. Os raciocínios pró-privatização obscurecem que a lei econômica fundamental do capitalismo monopolista é a busca por superlucros, e se estivermos falando de superlucros de curto prazo, melhor ainda para os grandes conglomerados. Trata-se justamente de investir mixarias – geralmente emprestados de bancos públicos sob condições bem apetitosas – e extrair destes investimentos pífios os lucros estratosféricos para enriquecer barões que preferem se esconder em Zurique, Nova York, Londres, Paris, etc. Tais superlucros trazem consigo, necessariamente, altíssimas tarifas para os consumidores, serviços ineficientes, e demissões massivas de operários das empresas de saneamento sob justificativa de tornar os negócios rentáveis. Esta foi a regra nos processos de privatização, e por que pensaríamos que seria diferente no ramo de saneamento básico? O argumento de que a privatização geraria “concorrência”, com muitas pequenas empresas concorrendo entre si, tornando o serviço mais eficiente e o preço, por conseguinte, mais barato ao consumidor, é uma verdadeira piada, um deboche. Trata-se de um ramo cujo setor do capitalismo privado já se encontra dominado por grandes conglomerados, inclusive de atuação mundial. Pensar que estes grandes conglomerados se desmantelariam por si próprios e se pulverizariam em pequeníssimas empresas para concorrer entre si, sacrificando seus lucros de monopólio, para atender aos interesses dos pobres, é rir da inteligência de todos nós.
Se o serviço de saneamento básico de nosso país não atende centenas de milhões de brasileiros, a culpa não se encontra no capitalismo estatal em si, mas sim no fato de o capitalismo estatal brasileiro, um capitalismo burocrático, a serviço do imperialismo ianque, dos fazendeiros e grandes capitalistas compradores, ter seus recursos drenados para o pagamento de volumosas dívidas, pelo subfinanciamento, dentre vários outros fatores. Em substância, devemos atribuir o atraso ao fato de o Estado brasileiro servir aos interesses imperialistas, não aos interesses da burguesia nacional, e menos ainda das massas trabalhadoras.
Ilustrações do problema
A realidade parece ilustrar bem a atuação da lei econômica fundamental do capitalismo monopolista que se apodera também do ramo do saneamento básico, não só a nível de Brasil, como também mundial.
No ano 2000, o grande conglomerado capitalista francês, Suez, recebeu a gestão do serviço de saneamento público do município de Manaus, capital do estado do Amazonas. Para a realização do serviço, o grande conglomerado criou a empresa subsidiária chamada “Águas de Manaus”. Vinte anos após a “eficiente” gestão privada, quase 90% da população manauara não possui acesso ao serviço de saneamento básico. O caso do estado do Tocantins é menos escandaloso. Aqui, “apenas” 70% da população não possui acesso ao serviço de saneamento básico. Após a privatização da empresa estatal Saneatins, 78 municípios cujo fornecimento do serviço apresentava déficit foram devolvidos para a administração do Estado, com a empresa assumindo o controle de apenas 47 municípios que possuíam rentabilidade.
Exemplos semelhantes são vistos no restante do mundo. O excelente documento “Veio para ficar: a remunicipalização da água como uma tendência global” fornece alguns deles. Conforme já nos informa o próprio título, ele nos traz algumas informações que mostram a quantidade de grandes municípios, com expressivas populações, principalmente das metrópoles do Primeiro Mundo, que voltaram atrás na privatização da água e remunicipalizaram os respectivos serviços. Porém, mais interessante ainda é verificarmos as razões pela qual a remunicipalização dos serviços de saneamento básico seriam uma tendência global, segundo o respectivo documento: “3) As razões para remunicipalizar são universais – Tal como é ilustrado pelos casos explicados abaixo, os fatores que levaram à remunicipalização são semelhantes por todo o mundo. As falsas promessas das privatizações que levaram à remunicipalização incluem: desempenho medíocre das empresas privadas (e. g. Dar es Salaam, Accra, Maputo), sub-investimento (e. g. Berlim, Buenos Aires), disputas sobre custos operacionais e aumento de preços (e. g. Almaty, Maputo, Indianápolis), aumento brutal de tarifas (e. g. Berlim, Kuala Lumpur), dificuldade em monitorar os operadores privados (e. g. Atlanta), falta de transparência financeira (e. g. Grenoble, Paris, Berlim), despendimento de mão-de-obra e deficiente qualidade de serviço (e. g. Atlanta, Indianápolis).”
A partir destas ilustrações, podemos também fazer outras reflexões sobre a relação entre a lei econômica fundamental do capitalismo monopolista e o atual debate sobre o saneamento básico no Brasil. Conforme sabemos, os países coloniais e semicoloniais possuem uma importância para a manutenção dos superlucros, por constituírem mercados nos quais os capitalistas monopolistas das metrópoles têm condições de desaguar bens e serviços que, de forma geral, são obsoletos e rejeitados pelos mercados metropolitanos. Ainda que, ao longo dos últimos anos, tenha havido também remunicipalizações do saneamento básico em países semicoloniais, esta tendência parece estar mais marcada no Primeiro Mundo. No caso brasileiro, há quem avalie que o presente “novo marco do saneamento” beneficiaria os grandes conglomerados que perderam seus mercados com as reestatizações nas metrópoles imperialistas. Realmente, não há dúvidas que tais empresas têm muito a ganhar com um Estado corrupto e vende-pátria como o do Brasil. Neste cálculo, somente as massas trabalhadoras não saem ganhando.
Tasso Jereissati e o capitalismo burocrático
Ao lado dos argumentos sobre a “eficiência” da chamada “iniciativa privada”, utiliza-se frequentemente o pretexto de que o Estado seria “corrupto” – “corrupção” esta que não atingiria a iniciativa privada – para defender o privatismo. Esquecem-se que por trás de todo corrupto, há também o corruptor. Demoniza-se o corrupto para blindar o corruptor, sem o qual o primeiro não existiria. O Estado burguês-latifundiário brasileiro, corrupto até a medula, depende de seus corruptores imperialistas e grandes capitalistas locais para se manter como tal. Utilizamos frequentemente o termo “capitalismo burocrático” para nos referirmos, em um país semicolonial, a tais relações promíscuas entra a máquina estatal e os imperialistas e grandes capitalistas, e assim melhor define um grande dirigente do movimento comunista internacional: “O capitalismo burocrático significa simplesmente a corrupção dos funcionários que utilizam o Estado para realizarem a acumulação privada do capital por eles mesmos, suas famílias e asseclas. Pode envolver o investimento direto de capital estatal ou de privilégios do Estado em seus negócios privados. Pode envolver também o estabelecimento e a utilização de companhias estatais que beneficiam os capitalistas privados de maneira direta.”
Ao contrário de outros casos escandalosos da corrupção brasileira, na qual grandes funcionários do Estado brasileiro recebem propinas e demais benefícios de grandes empresas capitalistas para, utilizando-se de seus cargos públicos, beneficiarem-nas diretamente, o caso do presente “novo marco legal do saneamento” parece prescindir da figura do grande funcionário que intermedia tal relação e se beneficia dela por meio de propinas e benefícios, pois temos na elaboração direta do PL 4162/2019 o multimilionário grande capitalista Tasso Jereissati, dono de uma fortuna declarada de quase 400 milhões de reais. É um grande arrendatário da Coca-Cola, sócio majoritário da empresa Solar BR, que atua no setor de produção e distribuição da Coca-Cola, um dos maiores do mundo. Possuindo interesse direto no presente “novo marco legal”, não há dúvidas que concessões de água agiriam no sentido de equilibrar seus próprios lucros de monopólios, ou até mesmo ampliá-los, para não falar em “diversificação” de negócios, ou coisa parecida.
Para todos os moralistas de goela que defendem uma “moral” ilibada, a “eficiência”, dentre demais palavras pomposas, que caso mais ilustrativo há no presente da estreitíssima relação entre “legislar em causa própria”, conforme feito pelo “ilustríssimo” Jereissati, e a privatização?