Disputas por equipamentos hospitalares ilustram lei capitalista do desenvolvimento desigual
Há um pensamento popular segundo o qual só é possível vencer às custas dos outros. Na guerra de “todos contra todos”, vagas de emprego, benefícios, oportunidades quaisquer, etc., ficam para os fortes, ao passo que aqueles de bom coração fracassam e perecem. Embora esta seja uma realidade viva, enxerga-se esta situação de forma equivocada como reflexo do egoísmo humano, como um problema humano independentemente da época ou das condições históricas.
Longe de ser um problema humano geral, trata-se de um problema específico da sociedade capitalista. Aqui – tratando-se de um sistema baseado na propriedade privada dos capitalistas, que vivem e enriquecem a partir da exploração dos trabalhadores assalariados –, todo e qualquer desenvolvimento não resulta de um plano geral estabelecido, mas da disputa encarniçada entre os diferentes capitalistas por maiores lucros, cada qual buscando arruinar e atrasar os respectivos concorrentes, retirando-os do mercado e buscando – caso fosse possível! – controlar, sozinho, todo o mercado mundial.
Desta forma, verificamos, ao longo da História, como a industrialização inglesa se deu às custas da brutal desindustrialização indiana, do saque das colônias. A ascensão dos Estados Unidos como superpotência imperialista só foi possível pela destruição da Europa capitalista por duas guerras mundiais, pela pilhagem da América Latina e outras regiões semicoloniais, e assim por diante. Sob o capitalismo, o desenvolvimento de alguns pontos do globo reproduz o atraso noutros em escala muito mais ampliada. O desenvolvimento desigual (e também combinado, por depender do atraso de outras regiões) é uma lei absoluta deste sistema.
Pandemia global, disputas e entrave capitalista ao avanço das forças produtivas
A presente pandemia da COVID-19 permite mostrar a validade desta lei e verificarmos várias de suas ilustrações nos níveis mais escancarados. Abalando todo o mundo capitalista, parando cadeias produtivas inteiras, a presente crise sanitária acelera a atuação da lei capitalista do desenvolvimento desigual, as contradições entre as diferentes potências imperialistas.
Nem mesmo as grandes potências, que por décadas se beneficiaram do desenvolvimento desigual, saqueando os países atrasados, parecem ter logrado sob o capitalismo forças produtivas suficientes para lidar com a pandemia da COVID-19, a ponto de todo o mundo capitalista ser palco, atualmente, de uma enorme escassez mesmo de bens de simples fabricação como máscaras hospitalares, quiçá respiradores e ventiladores mecânicos. Há uma disputa encarniçada por tais bens, e as grandes potências, que antes se unificavam em instrumentos como FMI (Fundo Monetário Internacional) e OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para oprimir os povos, parecem estar novamente em conflito.[1]
“Caça ao tesouro” dos equipamentos hospitalares
Relembremos alguns fatos já amplamente conhecidos. Até o momento, os Estados Unidos já tomaram o lugar da China e Itália, respectivamente, como principal foco mundial da COVID-19, com mais de 360 mil pessoas infectadas e 12 mil mortos. Precisa encarecidamente de equipamentos hospitalares, dos mais simples aos mais complexos, que mesmo sua indústria, das mais avançadas do mundo, não possui ainda capacidade para produzir em suficiência.
Assim, o imperialismo norte-americano tem se valido do seu poderio militar e financeiro, da capacidade mundial de dominação de seu Estado burguês para ter acesso a tais equipamentos. Mais uma vez, às custas dos outros, mediante o monopólio e o roubo puro e simples, como bons saqueadores que são. Saqueiam não só os países atrasados, já saqueados, mas até mesmo outros países ricos.[2] Em momentos extremos como este, demonstram ainda mais seu caráter agressor.
Há alguns dias, jornais de todo o mundo (até mesmo da imprensa burguesa) têm divulgado a “intercepção” (leia-se: roubo) de cargas de equipamentos hospitalares em todo o mundo por parte de navios e aviões cargueiros norte-americanos. É possível fazê-lo quando se tem bases militares em todo o globo e a maior frota naval.
O Brasil, em pandarecos, incapaz de enfrentar eficientemente a pandemia, já caiu vítima de tais ações. Em 3 de abril, foi divulgado que uma encomenda de 600 respiradores feita pelo Consórcio do Nordeste à China, no valor de 42 milhões de reais, já pagos, foi retida no aeroporto de Miami, fato ultrajante a ponto de o próprio governador reacionário da Bahia, Rui Costa (PT), ter constatado a especulação capitalista (não nesses termos, evidentemente) no aumento dos preços dos termômetros digitais infravermelhos de 160 para 650 reais em apenas três semanas.[3]
França e Alemanha, duas potências imperialistas, também ficaram para trás diante da malandragem norte-americana. Há poucos dias, uma encomenda de 200 mil máscaras hospitalares feita à China pelo governo alemão foi retida em Bangcoc, capital tailandesa. Encomendas feitas pela França também tiveram destino semelhante. O próprio Ministro do Desenvolvimento Urbano da Alemanha, Andreas Geisel, chegou a classificar tais ações como “atos de pirataria moderna” e que tais encomendas não seriam destinadas ao próprio governo dos Estados Unidos, mas às empresas privadas deste país. É notório que o ministro de um Estado imperialista parece saber que as ações do governo estadunidense não se limitam ao mero nacionalismo estreito de Trump, de supostamente colocar o povo norte-americano à frente dos outros, mas buscam, ao contrário, enriquecer os grandes conglomerados capitalistas depenando massas inteiras da população trabalhadora norte-americana. [4]
Os políticos burgueses da França também dão o tom. Jean Rottner, presidente de Grand Est, uma das regiões do país mais afetadas pelo coronavírus, denuncia que os norte-americanos têm pago três ou quatro vezes mais pelas encomendas, ademais, arcando com os custos das multas a serem pagas pelos fornecedores pelos rompimentos unilaterais nos contratos. Num contexto como esse, a França não parece mais tão disposta a permanecer sob a tutela norte-americana. Antes mesmo de tais manobras, Macron destacou a dependência do país sobre a importação de máquinas hospitalares e outros bens, e pretende expandir a capacidade produtiva do país de 3,3 milhões de máscaras semanais para 10 milhões, até o final de abril, falando inclusive em defesa da “soberania nacional e europeia” e da “França unida”. [5]
É evidente, assim que cada potência tem buscado, mesmo de forma desigual, “garantir seu lugar ao sol”. Há elementos suficientes para esperar, nas disputas entre as potências, retaliações às ações do imperialismo norte-americano, que nada mais farão que por lenha na fogueira da já terrível desorganização e anarquia prevalente no sistema capitalista mundial. Se a tendência para o protecionismo e as disputas comerciais – em lugar da pugna – entre as potências já era uma realidade desde a crise capitalista de 2008 e se intensificou a partir da grande guerra comercial de 2018, a pandemia vem a ser um agravante sem precedentes para tais tendências. Quais cenários a mais podemos projetar? Findada a pandemia e descoberta finalmente a vacina para a COVID-19, que perspectivas há de reorganização mundial das indústrias que se dedicaram por tanto tempo à produção de equipamentos hospitalares? De onde sairá os montantes imensos de mais de trilhões de dólares investidos pelos governos dos principais Estados imperialistas para salvar seus conglomerados?
De tudo, podemos apenas esperar que o caos e o martírio esperam a população trabalhadora mundial, não por niilismo mas pela observação da realidade. É isto que a disputa desigual entre as potências reserva para os povos do mundo mesmo para os próximos anos que viveremos.
NOTAS
[1] Não queremos dizer aqui, evidentemente, que já não houvessem grandes disputas entre as potências nos períodos anteriores ao que vivemos, mas sim que, principalmente após a década de 1980, a tendência para a unificação entre as potências para o saque dos povos do mundo era prevalente em relação à atual tendência de disputas. Mesmo no período atual de prevalência de disputas, também não são inesperadas novas alianças ou pugnas.
[2] A tendência do imperialismo norte-americano de saquear não só os povos atrasados, mas até mesmo outras potências imperialistas, já se verifica há mais de cem anos. Desde 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial, Lenin já observava que os capitalistas norte-americanos se tornaram mais poderosos e enriqueceram como ninguém, convertendo em “tributários” seus mesmo os mais ricos do mundo capitalista.