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REIMPRESSÕES

Foto do escritorNOVACULTURA.info

Telemarketing e a decadência burguesa


“O Brazil não merece o Brasil

O Brazil tá matando o Brasil”

Trecho da canção Querelas do Brasil,

de autoria de Aldir Blanc e Maurício Tapajós

A formação econômica do Brasil nos indica uma forma de desenvolvimento que nunca abriu mão da relação dialética entre o que há de moderno associado a modos, aparentemente, atrasados no seu processo de produção. Esse debate, não equivocadamente, tem centralidade na questão agrária brasileira, pois por meio das relações existentes no campo brasileiro se identificam os elementos fundamentais para a forma como se desenvolve nossa história econômica, política, social e cultural. A articulação – sob responsabilidade dos latifundiários brasileiros – entre o acesso ao que há de mais moderno, do ponto de vista da produção, e elementos semifeudais nos evidencia que nossa formação incorporou o arcaico no seu processo de desenvolvimento e, por isso, no Brasil, o arcaico é contemporâneo. Este contexto deriva da própria tendência de desenvolvimento desigual do capitalismo, que, em sua fase imperialista e sob uma crise sem precedentes, tende a intensificar tais desigualdades.

Este caminho de análise deve ser presente para nos subsidiar quando nos defrontarmos com os fenômenos que a própria condição brasileira de semicolônia produz.

Exposto isso, vivemos um dos períodos mais trágicos que a humanidade já presenciou, a pandemia do COVID-19 escancara a incapacidade do capitalismo de promover qualquer sentido progressista de desenvolvimento. Os países imperialistas intensificam a rapina enquanto as colônias e semicolônias sofrem com as consequências mais agudas da crise capitalista (que se apropria inclusive da pandemia do novo coronavírus para garantir sua expansão) das mais variadas formas, desde não ter um acesso necessário aos instrumentos e artigos de combate ao COVID-19 até os constantes constrangimentos por parte do imperialismo para que se mantenham os ritmos de produção, a custo do afrouxamento do isolamento social e, consequentemente, da vidas das massas trabalhadoras pelo mundo.

Neste contexto de crise, o patronato assume sua face mais agressiva para coagir a classe trabalhadora brasileira a se manter em seus postos de trabalho, a despeito de suas próprias vidas. Sob ameaça constante de demissão e outros constrangimentos, a massa trabalhadora não vê qualquer outra saída que não seja esboçar formas de resistência. Nós, do NOVACULTURA.info, recebemos uma denúncia de trabalhadores de uma empresa de call center que está localizada em São Paulo que sintetiza todo o conteúdo que precede este momento do texto.

Vamos a uma breve contextualização: a contemporaneidade nos indica que o imperialismo detém uma base informacional avançada que possibilitou desenvolvimento de uma capacidade ainda mais profunda de intensificação e diversificação das formas de exploração do trabalho. No bojo deste processo, o call center ganha espaço na economia brasileira como uma implicação dos ditames imperialistas pós queda da URSS. Esse processo ganha fôlego a partir da segunda metade da década de 1990, sobretudo em convergência com o processo de privatização das telecomunicações em solo brasileiro. A sua implantação acompanhou o ritmo de crescimento do setor de serviços, marcado pela terceirização e a imposição de condições degradantes de trabalho e desde sua criação carrega em seu DNA condições que permitam o aprofundamento da exploração desse estrato da classe trabalhadora que recorre ao setor para se manter empregado. Hoje, sem dúvidas, as empresas de telemarketing ainda empregam muito no país, sendo que, em 2015, eram cerca de 1,5 milhão de trabalhadores ativos no setor. Em relação a São Paulo e a Região Metropolitana, segundo o portal da BBC, apontava para 100 mil trabalhadores, ainda que, em 2019, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) aponte que o setor tenha sido responsável pela destruição de 21.115 postos de trabalho, só a Atento Brasil tem, hoje, cerca de 80 mil trabalhadores empregados.

São perceptíveis essas articulações (de intensificação e diversificação das formas de exploração) principalmente quando, no caso das empresas de call centers, se estabelecem campanhas de horas extras para atingirem determinadas metas, a despeito de todo incremento tecnológico empregado como meio de alcance de maior produtividade dos e das trabalhadores e trabalhadoras, ou seja, se impõe uma lógica de exploração do trabalho de maneira intensificada, que articulam, em um ambiente de trabalho, formas de extração de mais valia absolutas e relativas.

Em um cenário de relativa normalidade, o contexto já era de constantes adoecimentos de trabalhadores submetidos às condições de trabalho impostas pelas empresas de telemarketing, com particular e infeliz destaque para depressão e os diversos tipos de doenças ocupacionais, como LER/DORT (Lesão por Esforço Repetitivo), que derivam das condições degradantes de trabalho, onde a manutenção dessas relações de trabalho está sob responsabilidade de grandes grupos monopolistas (com destaque para empresas como Atento) que garantem suas margens de lucratividade à custo da saúde do proletariado. O site da BBC, em uma reportagem de julho de 2018, dá as seguintes informações: “Dados do sindicato relacionados a doenças do trabalho apontam que 36% sofrem de lesão por esforço repetitivo (LER), 30% de transtornos psíquicos e 25% apresentam alguma perda auditiva ou de voz”, ainda que o telemarketing tenha vendido ares de modernidade, com apelo tecnológico e novos recursos em sua narrativa, seu modus operandi nos remete a um passado que sempre retorna ou nunca foi, onde os avanços formais dos direitos da classe trabalhadora são facilmente retirados (do ponto de vista da objetividade) com rearranjos constitucionais (ou não) que garantem ao patrão que a incorporação de elementos novos na produção (mesmo a imaterial) não representem diminuição da exploração do trabalho, quando, na verdade, representam um avanço intensificação da exploração do trabalho.

No entanto, com o desenvolvimento desta crise do capitalismo que o COVID-19 explicitou, os processos de agressão contra a classe trabalhadora aprofundaram-se, conforme o relato de um trabalhador de uma dessa empresas, que se identifica como Vladimir Vargas. Fica a advertência de que o relato é longo, porém rico em informações de um contexto que tende a se tornar cotidiano, na medida em que a crise tome proporções mais dramáticas. Vamos a um trecho do relato:

“A partir do início de março, quando a COVID-19 saiu do distante oriente e da Europa e começou a chegar no Brasil, ainda não dávamos muita atenção a ele, mas desde sempre o ambiente da operação sempre foi um ponto de preocupação para nós. Pela legislação, existe toda uma regulamentação de como deve ser um call center, na qual é concebida para controlar um problema muito comum nela, o nível de ruído.

Este controle é feito por meio de tapetes, cadeira e P.A.s (postos de atendimento) acolchoadas, forros de teto especiais com temperatura e umidade controladas por meio de um sistema de ar condicionado. O problema é que todo esse acolchoamento e os equipamentos (que são compartilhados) exigem uma limpeza constante, além da troca regular dos filtros de ar condicionado. Mas a limpeza era semanal e não incluía os equipamentos ou as cadeiras e constantemente sentimos que o ar dentro da operação estava mais sujo que o de fora. Em suma, antes da preocupação com a COVID-19 a operação já era uma fábrica de doenças.

Com a preocupação com a COVID-19 já na ordem do dia, fomos surpreendidos no dia 9 (de março) agora, com uma grande campanha contra a doença, havia relatos de que um chefe de um outro produto havia retornado de férias dos EUA contaminado com COVID-19, mas que não havia respeitado a quarentena de 14 dias. Imediatamente choveu reclamações nas caixas de sugestão com relação a hipocrisia da empresa em fazer uma campanha contra a COVID-19 sem disponibilizar álcool em gel para a higienização das mãos.

Na quarta-feira, 11 (de março), começaram uma pesquisa perguntando para todos os operadores se tinham computador em casa ou não, e então começamos a pensar de que iríamos trabalhar em casa para evitar contaminação pela doença, ledo engano. Na segunda-feira começaram a oferecer uma mudança de turno temporária para a madrugada, das 0h às 6h20, uma medida até recomendada pelos organismos de saúde, mas muito ruins para nós, já que trabalharíamos em tarefas que não exigem o contato com o vendedor, mas que exigem atenção em um momento pouco recomendável para esse tipo de trabalho.

[...] que não tivesse pessoas trabalhando no momento, fazendo a medida fazer água. Quando meu supervisor falou sobre isso, perguntei a ele se existia algum horizonte de teletrabalho ou ao menos de um aumento da frequência da limpeza com a limpeza dos equipamentos, a resposta foi de um desprezo revelador. Sobre o teletrabalho disse que não haveria isso pois mexemos com informação sensível e os operadores não tinham “maturidade” para ele, além de serem ‘irresponsáveis’ [...] Sobre a limpeza das P.A.s a resposta foi um longo pito de meia-hora, na qual o resumo é que os operadores são responsáveis pela limpeza do equipamento e que não poderiam aumentar a equipe da limpeza para cuidar de P.A., que algo que é de responsabilidade nossa sendo feita pelo pessoal da limpeza poderia causar pânico. Foi um belíssimo Foda-se ao anexo 2 da NR-17 (que regulamenta o setor)”.

A grosso modo, o que esta empresa impõe aos seus “colaboradores” é que aumente os riscos de contágio do COVID-19, mas que se mantenham em seus postos, numa demonstração objetiva de que o compromisso, nesse momento, não reside, de forma alguma, em combater tal pandemia, ainda que se venda por aí que o serviço de call center é essencial. Essencial para quem?

Nesse momento, podemos pensar nas representações da categoria, nos sindicatos como instrumento de defesa. Mas como disse Vladimir Vargas, ledo engano. No site do Sintratel e do Sintetel, não se acha qualquer posicionamento mais firme em relação à defesa intransigente da categoria. No máximo, orientações sobre ter sempre álcool gel à disposição dos trabalhadores e trabalhadoras e qualquer coisa no sentido de construir uma pseudo-atuação junto a categoria nesse momento dos mais delicados. Como podemos observar aqui e aqui. A posição que tais sindicatos assumem, na prática, é de conciliação de classes, garantindo o respaldo aos interesses patronais e colocando a categoria dos atendentes de telemarketing na rota de colisão com uma realidade que se apresenta como das mais complexas ao povo trabalhador.

No entanto, nesse mar de contradições e de informações que não agradam, as massas sempre estarão em luta por melhores dias, onde o imperialismo não dite mais as regras, seja por roubar respiradores e itens de EPI de outras nações ou por qualquer outra forma de rapinagem e ingerência, por meio dos Estados ou da atuação dos grandes monopólios. Este contexto de resistência, o próprio Vladimir nos traz, ainda que tenha sido um esboço:

“Diante dessa resposta, com a epidemia se espalhando e a quarentena sendo implementada, a tensão na operação foi só aumentando. Situação que se agravou quando outros produtos dentro da empresa, que mexiam com as mesmas informações de clientes que a nossa se tornaram home office. Foi então que vimos que só conseguiremos uma ação mais efetiva da empresa, como o home office, somente com a greve. Foi aí que todos nós, a gigantesca maioria, que sequer pensava em política a pouco tempo atrás, começou a organizar a greve.

Sem sindicato nos apoiando (alguém viu alguma ação do sindicato dos operadores de telemarketing nesta crise toda?), com nenhuma experiência política prévia dos operadores, organizamos a greve. Criamos um movimento dos operadores e marcamos a greve para segunda, com piquete na porta da empresa. A adesão era grande, a grande maioria confirmou apoio, mas um puxa saco do patrão dedurou o grupo para um dos supervisores.

Na falta de uma prova sobre quem seria a liderança por trás daquilo (já que foi um movimento surgido de um consenso entre nós) este supervisor distribuiu advertências para todos os suspeitos. Mas ficou claro para a empresa que esta situação, com ameaças de greve e um número gigantesco de faltas e atestados era insustentável, e em uma semana providenciou o acesso para os operadores que tem máquina em casa e ainda está providenciando equipamento de teletrabalho para todos aqueles dos grupos de risco”.

Obviamente, a classe trabalhadora ainda está longe de experimentar avanços mais profundos em um contexto que o imperialismo vem mostrando suas debilidades e assumindo sua face mais reacionária em todo o mundo e, significativamente, no terceiro mundo, promovendo ingerências e submetendo as massas a situações deploráveis, produzindo contradições explosivas. No entanto, ao menor sinal de organização e luta dos povos oprimidos, o imperialismo se coloca como tigre de papel que é.

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES

ARAÚJO, Cléia Coutinho da Mota; FARIAS, Rafaela Cabral. O trabalho informacional e a precarização do novo trabalhador do setor de telemarketing em Imperatriz (MA). Temporalis, Brasília, v. 30, p. 205-226, jul. 2015. Disponível em: http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/10985. Acesso em: 08 abr. 2020.

MEDEIROS, Evelyne; BEZERRA, Lucas. Considerações sobre o desenvolvimento desigual e combinado no capitalismo brasileiro. In: MEDEIROS, Evelyne et al (org.). Formação Social e Serviço Social. São Paulo: Expressão Popular, 2019. Cap. 1. p. 21-39.

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