"Não se pode salvar a Democracia Burguesa de sua própria decadência"
É divertido mitar os bolsonaristas no seu próprio terreno dizendo que a sua pretensão de censurar o especial de Natal da Porta dos Fundos revela que têm uma mentalidade direitopata e impositiva que não se compagina com os valores da nossa sociedade e ofende os cidadãos de bem. Diverte porque vira contra a direita a sua própria utilização de categorias liberal-burguesas (pluralismo, liberdade de expressão, tolerância religiosa, princípio do contraditório) para defender a pauta reaccionária, e revela que as acusações de hipocrisia arremessadas contra a esquerda podem ser devolvidas à procedência com toda a legitimidade. Sim, tem piada. Mas talvez não seja indiferente compreender que nos dois casos se está a fazer a mesma coisa, e que fazer esgrima nesse contexto, estruturalmente, não tem como nos beneficiar a nós. O ano era 2018, e uma noite fui a um debate entre dois arquitectos sobre a gentrificação do Porto. Um, espanhol e visivelmente podemista, criticava o processo de especulação imobiliária em nome do direito ao espaço público, à habitação, à mobilidade, em suma, em nome do direito à cidade. A resposta foi surpreendenteemente acertada em termos políticos: nenhuma daquelas categorias faz sentido nos dias de hoje, e o seu uso revela uma compreensão invertida do debate sobre a matéria. A teoria do direito à cidade era a formalização teórica, em termos liberal-burgueses, de uma correlação de forças que só existiu nos anos 40 a 70 na Europa. Não era a definição ideal de uma cidade como deve ser que se entendeu dever ser assim por razões éticas e funcionais (até porque essa leitura da política é de um idealismo estapafúrdio, acrescentaria eu). Sociólogos, urbanistas, e juristas burgueses disseram que a habitação era um direito, deduziram-no das teorias gerais de direito constitucional, de elementos "técnicos" (como se houvesse técnica neutra nestas questões) do urbanismo, ou de uma generalidade do estilo de "coesão territorial" ou de inclusão de não sei quem, talvez, mas isso era conversa. A verdade é que o direito à cidade representava a realidade nua e crua de que se a habitação não fosse barata, de qualidade, razoavelmente próxima de equipamentos sociais e dos locais de trabalho, os trabalhadores tinham condições organizativas e disposição combatente para pôr isto tudo em pé de guerra. No segundo em que estas condições deixaram de se verificar, repetir clichés sobre direito à cidade, e sobre a habitação pública estar na lei, equivale a brandir amuletos de esconjuro à frente de um doente qualquer a ver se ele melhora. A realidade material não muda por se gritar "eu tenho direito a". Na realidade, querer mudar alguma coisa a dizer isso não é muito diferente de o fazer a dizer "abracadabra". As categorias liberal-burguesas não estão esgotadas historicamente só no plano da habitação. Estão generalizadamente superadas por um processo histórico que as ultrapassou e que elas já não permitem entender. É certo que elas continuam a ter uma legitimidade histórica muito forte, e é por isso que são tão fáceis de empregar como artilharia contra o inimigo, saindo-se do debate com a sensação de que se marcou um golaço de pontapé de bicicleta. Ainda nos serviremos diversas vezes de categorias liberal-burguesas para efeitos de número de propaganda, mas bom é, até para não nos alienarmos a nós nem alimentarmos a alienação das massas, que tenhamos o cinismo táctico de não acreditar no nosso próprio número. Porque a verdade é só uma: é claro que nós não defendemos liberdades democráticas para as forças reaccionárias. Tal como essas forças, como é óbvio, não permitirão de nenhum modo que haja liberdades para as forças do progresso. No âmbito da luta final de ou nós ou eles entre o socialismo e a barbárie o procedimentalismo liberal-burguês vai ser rompido sem dó nem pena, não haverá democracia geral e abstracta para todos em igualdade (sendo que de todo modo nunca houve), e todos os expedientes da força serão empregues como materialização do poder, contra um direito que todos perceberão que só existe no éter, e que aliás só beneficia quem já tem o poder material que é a propriedade. Nós calaremos os nossos inimigos se tivermos juízo, e eles procurarão calar-nos a nós sempre que puderem. É por esse caminho que será de ditadura do proletariado ou de ditadura fascista da burguesia que passará o próximo transe da luta de classes, consoante seja o inimigo ou sejamos nós a organizar melhor a sua força material. Ninguém pode, como dizia o Francisco Martins Rodrigues, salvar a democracia da sua própria decadência. por João Vilela