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REIMPRESSÕES

Foto do escritorNOVACULTURA.info

Relatório sobre a resistência das famílias do acampamento Ondina Dias (ES)


Neste feriado, em visita às famílias do acampamento Ondina Dias, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), localizado na Fazenda da Neblina, distrito da cidade de Nova Venécia, saímos da capital Vitória para conhecer e entender melhor a resistência dos lavradores e colaborar com a denúncia do despejo das 70 famílias acampadas desde o ano de 2017, que está previsto para a próxima terça-feira.

Conforme veiculado pelos meios de comunicação, o despejo está previsto com uma estrutura de guerra, conforme encaminhamentos da última reunião no Batalhão da Polícia Militar com a presença de representantes do Estado.

A Fazenda Neblina é propriedade da família Sltoi. Possui uma dívida de 27 milhões reais com a União e concentra um verdadeiro latifúndio de 1,1 mil hectares. As famílias não concordam com a negociação da propriedade com o crédito fundiário e denunciam descumprimento da legislação ambiental e da função social da terra. A fazenda está localizada às margens do Córrego Boa Esperança, na estrada sentido São Gabriel da Palha a Nova Venécia, numa área de proteção ambiental da reserva natural da Pedra do Elefante.

Primeiro dia

Ao chegarmos no local, paramos num bar à margem da estrada para nos situarmos melhor no território. Ali, conversamos com um garoto acampado, filho de um camponês sem-terra, que nos mostrou a localização apontando para o local. Ao perguntar o que mais estavam mais precisando, logo dizendo foi dizendo: “cesta básica”. A proprietária do bar, conforme sua compreensão pelo senso comum de criminalização do MST, logo o repreendeu. Mesmo próxima, pouco conhecia a realidade das famílias.

Após uma viagem de 226 km, fomos almoçar e voltamos ao acampamento. O mesmo garoto do bar nos avistou e avisou à sua mãe que éramos pessoas que queriam ajudá-los. Acompanhou-nos até o coordenador político do movimento camponês estadual, Pedrinho, que por sua vez nos acompanhou até ao local em que Edimar, da coordenação política do acampamento, se instalou com sua família. Ao chegarmos, observamos que o local era um espaço de suporte de infraestrutura também devido às melhores condições em relação as casas de lona e madeira. Conversamos na pequena varanda coberta em frente às várias barracas de lona, em média a 25 metros de onde vivem famílias geralmente compostas por mulheres, crianças, algumas bebês que nasceram no acampamento, pessoas idosas, jovens e adolescentes.

Os coordenadores, de forma acolhedora, passaram-nos a impressão de muita firmeza, tranquilidade e determinação. Pedrinho, de origem camponesa, um estilo tranquilo e muito educado de se comunicar, fala devagar, tom baixo e muito explicativo demostrando total domínio histórico da realidade vivenciada. Falou um pouco da sua história, sua formação camponesa e sua luta que vem desde os anos 80, ainda jovem e sempre colaborando com o assentamento das famílias tanto no Espírito Santo quanto na região do Nordeste, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco e outros estados.

Apresentamos à coordenação do movimento como colaboradores do NOVACULTURA.info, um veículo de informação da luta anti-imperialista que apoia a organização da classe operária e camponesa através de uma política de formação através dos círculos marxistas com objetivo de elevar a compreensão da luta de classes na superação do capitalismo e construção de uma nova sociedade socialista. Através do processo formativo, compreende-se que a propriedade privada dos meios de produção deve ser propriedade de toda a sociedade sob direção da classe operária e camponesa. Na mão dos capitalistas e banqueiros, a propriedade privada é utilizada para concentração de riqueza através da superexploração da mão de obra, aumento da jornada de trabalho e redução dos salários, que aprofundam a miséria da classe operária e camponesa.

A propriedade privada deve ser arrancada das mãos dessa minoria de ricos exploradores e estar a serviço da maioria de trabalhadores e camponeses, os verdadeiros donos de toda a riqueza de uma sociedade pois essa é fruto do trabalho social.

Nossa conversa foi permeada sobre as condições da agricultura de subsistência e comércio local, as relações de produção sem perda das características fundamentais da agricultura familiar, o enfrentamento à exploração dos atravessadores locais, a formação ideológica e política dos camponeses, como também a desconstrução dos comportamentos adquiridos pela cultura ideológica capitalista que domina e interfere no processo organizacional da luta camponesa atrasando seu avanço na luta contra o latifúndio.

Os camponeses sem-terra enfatizaram a importância de conhecer a realidade agrária brasileira, repensar táticas e estratégias para enfrentar um sistema que coopta os trabalhadores para sua lógica capitalista, que era preciso estudar a teoria revolucionária e permanecer vigilantes. Muitos líderes de hoje não vivenciaram o início da luta pela terra na década de 80, principalmente a geração atual e principalmente dos anos 2000 para cá. Para os coordenadores, é preciso formar líderes com os conceitos doutrinários e filosóficos da luta de classes com base na nova realidade que vivemos, pois o novo supera o velho e é preciso estar atento as mudanças para avançar na tática de enfrentamento contra o latifúndio. Citaram como exemplo a grande empresa Aracruz Celulose, atualmente Suzano, que é a maior produtora de celulose de eucalipto e líder mundial no mercado de papel, com mais de 883 mil hectares de terras, e a cada dia concentrando mais terras não só comprando, mas grilando terras devolutas do Estado, o que demanda uma articulação política prioritária com pesquisadores para identificar estas terras, de forma a evitar essa concentração de riqueza que deveria ser destinada aos trabalhadores sem-terra. É neste cenário que se coloca a necessidade para avançar a luta da formação política dos quadros intermediários. O pequeno camponês tem uma percepção liberal da terra, acomodada na monocultura do café e da pimenta do reino. É preciso investimento na formação revolucionária socialista no campo. No entanto, Pedrinho acha que isso deve mudar pela própria imposição da realidade, principalmente pelo elevado preço dos alimentos de necessidade básica, como o feijão, que em alguns lugares já está custando 12 reais. A ideia de coletivização da produção de alimentos diversificados deve ser trabalhada melhorando a qualidade de vida dos produtores rurais e da comunidade local.

Outra observação feita por Pedrinho é que vivemos um período de refluxo das lutas de massas. Nesta conjuntura, é preciso unificar a luta camponesa e a luta urbana, juntar o campo e cidade para uma revolução agrária. Os governos democráticos de Lula e Dilma não fizeram a reforma agrária. É preciso uma política de reforma agrária que vá além da distribuição da terra e garanta os investimentos em subsídios estatais, máquinas, crédito, insumos. O atual governo não tem perspectivas de reforma agrária, e conforme a conjuntura se agrava, devemos pensar em novas técnicas de enfrentamento.

No Espírito Santo, existem 64 assentamentos rurais e 14 acampamentos. A FETAES – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo, tem incentivado o crédito fundiário, que é uma política que condiciona as famílias a pagar pela terra, e ainda com juros, que mesmo sendo baixos, é a base da exploração capitalista. Nesta política, as famílias acabam sendo colocadas para fora de suas terras, endividam-se por qualquer oscilação no processo de produção, seja pelo clima ou falta de condições para compra de insumos, ou restruturação familiar, etc. pelo que tendem a vender suas terras, geralmente para os proprietários ricos, o que favorece a lógica do latifúndio.

Após essa explicação, Pedrinho nos questionou como o NOVACULTURA.info pensava o papel da luta agrária na realidade brasileira. Explicamos sobre a preocupação do nosso veículo com essa temática, e que se formou em São Paulo um grupo de estudos que se dedica à discussão da perspectiva de uma revolução agrária, não reformista. E que outra prioridade dos colaboradores e dirigentes está no aprofundamento dos estudos sobre a realidade brasileira, que estes entendimentos devem ser ampliados com a realidade local através dos círculos marxistas.

Voltando à história da Fazenda Neblina, os coordenadores informaram que a Fazenda é herança da mulher do fazendeiro local, conhecido por Gu, e que esta família já teve outras duas fazendas desapropriadas pelo acúmulo de dívidas e por estas não cumprirem também com a função social. Sobre o processo do acampamento Ondina Dias, iniciou-se em 2017 com centenas de famílias de trabalhadores sem-terra e que pelas dificuldades do dia-a-dia de um acampamento, acabam desistindo de lutar pela terra e mesmo que precariamente se reorganizam, vão morar com parentes ou quando conseguem trabalho preferem pagar o aluguel em residência precárias com péssima estrutura em comunidades geralmente distantes dos grandes centros urbanos.

Em relação à escolha do nome Ondina Dias, Pedrinho relatou que foi sugestão de um camponês pelo reconhecimento do trabalho da companheira Ondina na educação das crianças e na organização do acampamento que participava e que veio a falecer sem ter a posse da terra. Pela dedicação e coragem, era admirada e respeitada por todas as famílias.

Aquelas famílias que resistiram, cerca de 70 (setenta) delas, lutam por um dia não ter que trabalhar como diaristas para os donos de terras, por salários de fome, ou enquanto meeiras, com pagamento da produção pelo arrendamento da terra e os insumos consumidos, que os tornam quase que escravos na relação, pois ao final ficam com uma pequena parte que não dá para as necessidades básicas, situação esta que se agrava quando em tempos de alteração climática perdem a produção, conforme a seca que vivenciaram recentemente. As famílias sabem muito bem o que são essas relações e como sofrem, muitas ficam endividadas e acumulam dívidas permanecendo ainda mais pobres chegando até mesmo à condição de extrema miséria.

Relataram-nos que a manutenção de um acampamento é uma tarefa complexa que necessita que as lideranças tenham um pouco de conhecimento de várias áreas, política, filosofia, economia, direito e psicologia. É necessário manter a calma e a organização para fortalecer a unidade popular, principalmente em momentos de decisão como este vão enfrentar. O processo de reintegração faz parte do sistema burguês na manutenção e concentração do latifúndio pelo que precisa muita inteligência revolucionária e não medir força frente a frente com o braço opressor do Estado, principalmente em uma conjuntura adversa de criminalização dos trabalhadores rurais sem-terra.

A reintegração do acampamento Ondina Dias estava prevista para abril de 2018. Na solicitação de prazo para os trâmites processuais, adiou-se para outubro 2018, no entanto, devido ao período eleitoral, feriado de final de ano e carnaval, a pauta voltou ao debate e foi deliberada a reintegração de posse para próxima terça-feira, 27/04/2019. No entanto, o juiz deve dizer, na reintegração de posse, para onde as famílias serão levadas, qual é a estrutura disponível, e neste processo, deve-se pensar os próximos passos da luta.

Após uma pausa na conversa, Edimar nos ofereceu um café na caneca do MST, e logo fomos andar pelo acampamento. Aproveitamos para conversar com as mulheres, algumas jovens e outras com meia idade, aparentemente todas tranquilas e esperançosas que este período em que permaneceram no acampamento em barracos de lona com pouca estrutura vai de fato valer a pena e organizar suas vidas com o direito a terra para conseguir criar seus filhos em melhores condições humanas.

Neste caminhar, uma jovem com alegria apresentou o filhinho com alguns meses, muito sorridente, então a jovem mãe nos disse “esse é o verdadeiro sem terrinha. Foi feito debaixo da lona e nasceu aqui”. Fomos conhecer a Barraca dos Sem Terrinha, um local onde as crianças são acolhidas e recebem a formação infantil do MST, onde pintam, cantam e merendam também, naquele momento estava sendo servido uma canjica, as crianças nos receberam com muita conversa, logo se interagindo e fora nos mostrando seus desenhos, uma arte que mostrava também a carência dos poucos recursos pedagógicos. É de prática, para todos que chegam, ostentar o hino dos Sem Terrinha com a letra na ponta da língua. As crianças também são educadas a ter uma relação com a terra, mesmo no acampamento são instruídas nas hortas comunitárias, desde pequenas ainda que brincando aprendem sobre hortaliças, cultivo, condimentos. Os pezinhos de milho já estavam bem desenvolvidos, embora com a reintegração sejam deixados, pelo que as crianças ficam tristes, mas consoladas pela esperança que em breve plantarão e ninguém mais arrancará seus pés de milho.

Ao conversar com Edimar, já em caráter de despedida, ao pôr do sol, olhando toda a terra ao redor, um lugar extasiante pela superioridade daquelas rochas gigantes bem exuberantes acima de nossas cabeças, fez uma autocrítica digna de nota, pelo que reconhece que se aquelas terras tivessem sido cultivadas desde quando chegaram ali, e se não tivessem sido dados ouvidos às influências de fora, principalmente de pensamento pequeno burguês, os camponeses acampados teriam uma outra relação com aquelas terras, o movimento estaria mais fortalecido e muitos problemas evitados, como por exemplo, a ociosidade, que gera outros problemas, inclusive de saúde, baixa autoestima, e vai gerando outros problemas como o uso do álcool. A situação seria outra e teriam resistência pelo que seria difícil a reintegração mesmo com todo arsenal de guerra.

Ficamos de retornar no dia seguinte para dar algum apoio na logística de forma a ajudar aquelas famílias e crianças.

Segundo dia

Retornamos ao acampamento por volta das 9 horas, entregamos algumas doações para o lanche e material pedagógico para as crianças. Encontramos em reunião a coordenação política com as diversas coordenações do acampamento, a de estrutura, saúde, segurança e as coordenadoras de núcleos de família.

Ao término da reunião, fomos visitar o assentamento Zumbi dos Palmares que se localiza em Nova Venécia e possui quase 1400 hectares de terra com 151 famílias assentadas que se organizam em 7 núcleos que têm entre 20 e 22 famílias. Conforme o camponês Adonis nos relatou, o assentamento surgiu com a formação de um acampamento em julho de 1998 com a participação de 300 famílias de origem de diversas regiões do ES. Relatou-nos que o processo se deu com intensa luta, briga política, despejo pela polícia, mas que persistiram acampados na beira da pista por nove meses.

Neste processo, muitas famílias desistiram de lutar pela terra. A concretização do assentamento se deu em dezembro de 1999, no início algumas famílias tiveram dificuldades na agricultura, mas uma família foi ajudando a outra, pelo que conseguiram chegar a uma produção elevada. Para aqueles que conseguiram se identificar um pouco mais com a agricultura, como ele que já trabalhava como meeiro, vive uma situação diferenciada. Mas avalia que mesmo aqueles que apresentaram dificuldades no manejo com a terra vivem em condições melhor no assentamento comparados com a sobrevivência nas cidades, marcada pelo desemprego.

Ressalta que no ano de 2015 as famílias vivenciaram tempos muito difíceis, com da perda de toda a produção pela terrível seca que o Espírito Santo enfrentou, porém agora o clima está mais favorável, chovendo, pelo que prevê um aumento da produção.

Atualmente, nas reuniões da coordenação política, realiza-se uma análise de conjuntura na qual se avalia que a situação dos trabalhadores sem-terra está difícil, que o governo é o inimigo do movimento, mas o mais importante é olhar para as famílias que não conseguiram ser assentadas e as que estão debaixo da lona, é preciso continuar trabalhando e persistindo nesta perspectiva de mais famílias assentadas.

O assentamento Zumbi nos Palmares chama atenção pelo que a terra serve à sua função social, é toda cultivada, horas e horas de carro com áreas todas cultivadas, algo que impressiona pelo que geralmente se vê quando viajamos para zonas rurais, latifúndios improdutivos.

No assentamento, os camponeses cultivam café, pimenta do reino, seringueiras e hortaliças. Observamos que as famílias, ainda que residam em casas simples, apresentam uma melhor qualidade de vida, como nos relata a idosa Aurea, mãe de Pedrinho que nos mostrou a casa de taipa que fizeram quando foi assentada, hoje ela tem a sua casa, e sua filha outra, simples mas morando com dignidade. A casa de taipa permaneceu para mostrar a luta e as conquistas. Dona Aurea nos contou de forma lúcida as violências que sofreu desde muito jovem. Vinda de uma família de coronel, foi deserdada por ter casado com um camponês negro com o qual teve nove filhos, marcada por uma história de luta e resistência e de muito trabalho na lavoura.

Na perspectiva cultural, observa-se que na organização social do assentamento onde as famílias se integram, situa-se um bar de família onde os agricultores se reúnem para jogar e conversar, uma escola com o nome do Assentamento “Zumbi dos Palmares’ que tem em seu currículo básico diretrizes voltadas para o conhecimento da agricultura familiar, observamos também a influência da religião, uma Igreja católica desde do início do Assentamento, e agora uma Assembleia de Deus. Pedrinho contou que o MST teve muito a interferência da Igreja Católica na década de 80 para inibir que as ideias comunistas prosperassem, situação que reflete hoje no comportamento dos jovens e líderes intermediários que não têm uma perspectiva crítica da revolução agrária.

Em relação aos meios de produção, percebemos diversas estruturas contendo maquinários que são coletivizados para pilar e moer o café. Algumas famílias de camponeses ricos têm casas parecidas com as casas de bairro nobres dos grandes centros urbanos, bem equipadas e com muito conforto, pelo que a posse da terra e o cultivo gerou uma realidade econômica bem diferente de quando foram assentados.

Encerramos nossa visita conversando com a Cida que trabalhou como professora na Escola Zumbi dos Palmares com contrato temporário por 13 anos. O curso que fez por incentivo dos irmãos pela SEDU e MST em magistério permitiu realizar seu sonho de ser professora. Relata que participou desde do iniciou da luta pela terra ainda no acampamento, morou na lona e sente orgulho desta luta, no princípio veio para o acampamento para ajudar a irmã a conquistar seu pedaço de terra, pois seu pai estava internado e sua irmã cuidava dele na capital Vitória. O curso que fez permitiu ser a primeira professora ainda no acampamento, pelo que se apaixonou pela Educação Infantil.

Relata que suas filhas estudaram até o 9º ano na escola pelo que se preocupa com a formação das filhas em relação a luta dos trabalhadores sem-terra, jamais as colocaria em outra escola pois a educação é totalmente diferente. Pela educação das filhas na escola do assentamento e da educação da família, sabe que elas vão defender a bandeira, a identidade dos trabalhadores sem-terra, porque o MST mudou a vida de sua família e em qualquer lugar que forem irão defender a luta e a causa dos trabalhadores sem-terra.

Escrito por colaboradores da NOVACULTURA.info do estado do Espírito Santo

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