"O progresso nacional e o capital humano"
I
Os que arbitrária e simplisticamente reduz o progresso peruano a um problema de capital áureo, raciocinam e discorrem como se não existisse, com direito a prioridade no debate um problema de capital humano. Ignoram ou esquecem que na história, o homem é anterior ao dinheiro. Sua concepção finge ser norte-americana e positivista, mas, precisamente, nada acusa uma ignorância maior que o caso dos ianques.
O gigantesco desenvolvimento material dos Estados Unidos não prova a potência do ouro, mas, a potência do homem. A riqueza dos Estados Unidos não está em seus bancos nem em suas bolsas, está em sua população. A história nos ensina que as raízes e os impulsos espirituais e físicos do fenômeno norte-americano encontram-se integralmente em seu material biológico. Nos ensina também, que neste material, a quantidade tem sido menos importante que a qualidade e o fermento dos Estados Unidos são seus puritanos, seus judeus, seus místicos, estes são os emigrantes, os exilados, os perseguidos pela Europa. Do misticismo ideológico destes homens descende o misticismo da ação, que se reconhece nos grandes capitães da indústria e das finanças norte-americanas. O fenômeno norte-americano aparece, em sua origem, não somente de forma quantitativa, mas, também qualitativa.
Mas isso é outro problema, não estou interessado no momento em outra coisa que não seja denunciar o falso e irreal ponto de partida do materialismo, ao mesmo tempo rude e utópico, daqueles que parecem imaginar que o dinheiro inventou a civilização, incapaz de entender que é a civilização que inventou o dinheiro, que a crise e a decadência contemporâneas começaram precisamente quando a civilização começou a depender quase que totalmente do dinheiro e a subordinar ao dinheiro seu espirito e seu movimento.
O erro e o pecado dos profetas do progresso peruano e de seus programas, consiste sempre em sua resistência ou imbecilidade para entender a primazia do fator biológico, do fator humano sobre todos os outros fatores, e não no que é artificial, secundário. Este é também, um defeito comum de todos os nacionalismos, quando não traduzem ou representam apenas um interesse oligárquico e conservador. Estes nacionalismos, de tipo ou enredo fascista, concebem a Nação como uma realidade abstrata que acreditam superiores e distinta a realidade concreta e vivida pelos seus cidadãos, portanto, estão sempre dispostos a sacrificar ao mito o homem.
No Peru temos um nacionalismo muito menos intelectual, muito mais rudimentar e instintivo que os nacionalismos ocidentais que assim definem a Nação, mas, sua práxis, senão sua teoria, tem sido naturalmente a mesma. A política peruana – burguesa na costa, feudal na serra – tem se caracterizado por seu desconhecimento do valor do capital humano, seu direcionamento neste plano, como em todos os demais, inicia-se com a assimilação de uma nova ideologia. A nova geração sente e sabe que o progresso do Peru será fictício, ou pelo menos não será peruano, enquanto não constituir a obra e não significar o bem-estar da massa peruana, que tem 80% de sua população formada por indígenas e camponeses.
II
Um dos aspectos substanciais do problema do capital humano é o aspecto médico-social. No que há de nossa escassa bibliografia sobre este assunto, temos que destacar um interessante livro intitulado Estudos sobre a Geografia Médica e Patologia do Peru, seus autores são dois médicos inteligentes e trabalhadores, ambos funcionários da saúde, os doutores Sebastián Lorente e Raúl Flores Córdova. Este livro, em mais de seiscentas páginas, densas de dados e de figuras, descreve documentalmente a realidade médico-social do Peru.
Os autores, é claro, mostram-se otimistas em seu esforço e em sua esperança, mas, o método positivo não permite ilusões enganosas na investigação. A verdade da situação de nossa saúde emerge do livro preciso e categórico. As taxas de mortalidade e de doenças são excessivas no Peru, o capital humano permanece quase estacionário. Na costa, malária e tuberculose; na serra, tifo e varíola; na selva, todas as doenças dos trópicos e do pântano, prejudicam a população da república. Não se tem os números exatos da população, mas, o número comumente aceitado demográfico de cinco milhões. A mortalidade infantil é um de seus mais terríveis e trágicos freios, em Lima e no Callao 25% das crianças morrem antes de chegar a um ano de idade, nas pequenas aldeias rurais da costa, o índice de mortalidade é ainda maior, tendo em vista a estatística demográfica do distrito de Pativilca do primeiro semestre do ano em curso, a mortalidade é superior a natalidade.
No prefacio de seu livro, os doutores Urente e Flores Córdova escrevem que “o panorama médico-social nos apresenta em toda sua magnitude e em toda sua gravidade o nosso problema na saúde”, seu estudo não exagera, em nenhum caso, a realidade, talvez, em alguns, a atenua. O que assombra o espirito ao ler este volume – que espero que chegue as mãos de todos os que tão facilmente se equivocam a respeito da hierarquia ou do grau dos problemas nacionais – não é o julgamento, sempre moderado dos autores, mas, os dados nus, a observação objetiva, a constatação crua.
III
O mérito teórico de lidar com o valor científico destes estudos em Geografia Médica e Patologia não são meus, sua estimativa pertence, exclusivamente, aos profissionais, aos competentes, mas, sem invadir outras áreas da crítica, quero ressaltar sua utilidade e sua importância como documento atual e autorizado da “profunda realidade” do Peru. Por outro lado, me parece evidente que os doutores Lorente e Flores Córdova têm feito um trabalho de sistematização e de computação de dados de maneira singular e merecem os méritos por num meio como o nosso, onde os homens estudiosos dificilmente tentam fazer especulações desta magnitude.
O livro dos doutores Lorente e Flores Córdova não se destina unicamente ao âmbito profissional, interessa a todos os alunos, pois, sua leitura é uma viajem por um Peru menos pitoresco e mais real do que outros livros que descrevem ou nos disfarçam.
IV
Os doutores, Lorente e Flores Córdova não se contentam simplesmente em seu livro, a comparar e classificar dados preciosos, eles vão além, solicitam formalmente e com grande empenho, maior atenção à questão do capital humano. “O problema que o Peru exige com maior urgência, é uma solução orgânica e eficaz – escrevem – para a questão da saúde, não apenas porque a cada dia prevalece e se enraíza na consciência de nossa época o conceito de que a defesa da saúde pública é um dever primordial de todo Estado moderno, mas, sobretudo, porque nenhum outro conceito corresponde com maior exatidão às exigências urgentes e prementes da realidade peruana”.
Isto é correto, mas incompleto. O problema da saúde não pode ser considerado isoladamente, pois está ligado e confundido com outros profundos problemas peruanos do domínio sociológico e político. Os males, as doenças, das montanhas e do litoral, alimentam-se principalmente de miséria e ignorância. O problema, que em breve será penetrado, torna-se um problema econômico, social e político, mas, os ilustres higienistas, autores da “Geografia Médica do Peru”, não tocaram nessa análise, pois, seu diagnóstico sobre as doenças tinha que ser apenas médico.
Publicado em Mundial, Lima. 9 de outubro de 1923
Escrito por José Carlos Mariátegui