A situação do sertão alagoano: Inhapi
Já estava com o compromisso de andar pelas regiões rurais de Alagoas com o intuito de se fazer uma análise de classes nas zonas rurais alagoanas, em seus sítios e povoados, e conhecer a situação da luta agrária no estado. Agricultura e características geográficas Inhapi é um município do alto sertão alagoano, muito provavelmente a região mais seca do estado. Possui uma população de cerca de 20 mil habitantes, segundo censos realizados no ano de 2010. Em termos de distância, fica a aproximadamente 300 quilômetros da capital Maceió. Há duas estradas que dão acesso ao município: A rodovia federal BR-423 e a estadual AL-140. Inhapi é um dos municípios mais pobres e atrasados do estado e do país. A população possui em atrasadíssimas agricultura e pecuária seminaturais sua principal fonte de renda, bem como em benefícios do governo como o Bolsa Família e aposentadorias. Quanto aos principais produtos agrícolas, foram colhidos em 2008: 30 hectares de algodão herbáceo, 3750 hectares de feijão, 435 hectares de mandioca e 300 hectares de milho. Com o algodão herbáceo a produtividade média foi de 233 kg por hectare, cerca de 12 vezes inferior à média nacional. Com o feijão, a produtividade média foi de 459 kg por hectare, ou 36% inferior à média nacional. Com a mandioca, a produtividade média foi de 9195 kg por hectare, ou cerca de 3000 kg superior à média nacional. Com o milho, a produtividade média foi de 690 kg por hectare, inferior em 5,2 vezes à média nacional. Os dados nos permitem confirmar que se trata de uma agricultura muito atrasada e extremamente minifundizada, o que inviabiliza o uso de técnicas modernas e a rentabilidade da mecanização e automatização agrícolas. O atrasado sistema do minifundismo-latifundismo, o atraso técnico somado às secas que todos os anos varrem a região, impossibilita o desenvolvimento de uma agricultura até mesmo para o autoabastecimento da população, que dirá então para o abastecimento dos centros urbanos brasileiros. Daí a enorme dependência que nos últimos anos o município vem tendo das verbas federais e do Bolsa Família, devido à completa inexistência de reforma agrária e industrialização. Inhapi possui uma extensão territorial de 375 km², com uma densidade populacional de cerca de 43 habitantes por km². É uma região densamente povoada, com uma população extremamente acolhedora, prestativa e acostumada a lutar contra a opressão feudal. Inhapi possui uma altitude que varia de 650 metros a 1000 metros acima do nível do mar. Acompanhando de perto Alguns dias antes de sair de Maceió e rumar para o alto sertão em Inhapi, já havia lido algumas notícias sobre o que estava acontecido pela cidade. No último dia 16 deste mês, o governo alagoano havia declarado situação de emergência por conta da seca em 15 ou 16 municípios do sertão, e Inhapi estava entre eles. Nos dias 1 e 15, dois lavradores haviam sido assassinados, embora nas notícias não constasse o motivo dos assassinatos. Certamente, a situação que eu encontraria não seria das melhores. O terminal rodoviário de Maceió não possui ônibus que vai direto para Inhapi. A demanda para ir para lá é tão pequena que as empresas não se interessam em estabelecer linhas regulares para a cidade. Minha alternativa era ficar à mercê de vans privadas que viajam para lá. Um dia antes de ir para Inhapi, já havia ido para o terminal rodoviário verificar quais seriam as vans que iriam para lá, e no dia seguinte haveria uma van que iria para Inhapi, saindo às 13h. Pois bem, no dia seguinte, chego ao terminal rodoviário ao meio dia, uma hora antes da saída da van. Achando que a van sairia às 13h, não vi problema em sair por alguns minutos e ir almoçar. Retorno para a plataforma às 12h30 e descubro que o motorista, que deveria ter saído às 13h, havia ido embora fazia 10 minutos, com a van topada de gente segundo funcionário local. Vai entender esse povo... Mas fazer o quê? A van é privada, ele faz o que quiser com ela. Minha alternativa acabou sendo pegar um mototaxi até o Blue Shopping de Maceió e esperar pela mesma van por lá mesmo, num sol infernal de quase 40 graus Celsius, após fazer contato com o motorista por meio de celular. Ao chegar a van, longe de estar topada de gente, como já tinha me falado o funcionário, só tinha duas pessoas. O ar condicionado servia muito para amenizar o calor. Após 4 horas de viagem, enfim cheguei a Inhapi. A paisagem pela estrada na zona da mata não era diferente da qual eu já estava acostumado: Posseiros organizados por movimentos de massa do campo ocupando as terras devolutas das usinas falidas. Os latifundiários, que têm mais ciúme de suas terras do que da própria mulher, como sempre tratam com truculência, com violentos e embriagados pistoleiros, as ocupações nas zonas rurais. Mas isso está longe de ser empecilho para a luta... No agreste, paisagem típica de pequenas lavouras de abastecimento de mandioca, milho, feijão, etc. ao lado de casas de taipa ou tijolo de barro artesanal. No sertão, a paisagem está se caracterizando agora por uma situação que as pessoas da região chamam de “seca verde”, onde se dão pequenos períodos de chuva que conseguem “esverdear” a vegetação, mas que embaixo destas vegetações se encontra tudo seco. Recordo-me de quando, já na BR que dava acesso a Inhapi, passamos por uma ponte que dizia “ponte sobre o rio *esqueci o nome*”. Olhei para baixo e não encontrei rio nenhum. Havia secado tudo. Minha intenção ao ir para Inhapi era encontrar o Acampamento Nelson Mandela que, segundo constava em informações do portal de notícias do MST, teria mais de 2 mil famílias acampando à beira do Canal do Sertão, e demandavam a desapropriação do perímetro irrigado para fins de reforma agrária. Contudo, como cheguei a Inhapi praticamente às 18h, já estava tudo escuro. Com a grande densidade de pistoleiros, de coronéis que possuem olhos e ouvidos até mesmo na parede e no chão, não me arrisquei a me aventurar pela caatinga de noite. Permaneci numa pousada cujo dono era amigo do motorista da van que deixou eu e mais outros em Inhapi. A pernoite era bem barata, 20 reais apenas, para um quarto confortável, com banheiro e televisão funcionando bem. Quando acordei no outro dia, às 6h da manhã, abro a janela e me bate um frio no rosto, como o frio de São Paulo. Longe de esse clima bom se manter para facilitar minha vida, uma hora depois já me bate na testa um sol passando os 40 graus Celsius... As coisas não seriam muito fáceis mesmo. Conversei com um mototáxi do centro de Inhapi, e pedi a ele para me deixar no canal do sertão, e de lá eu mesmo me viraria, afinal, o acampamento Nelson Mandela ficava à beira deste canal... O mototaxi, como prometido, me deixou no canal do sertão, e me cobrou 15 reais pela corrida. O que fiz foi seguir andando na estrada, e ir pedindo água em cada casa que eu parava como maneira de conseguir amizade para perguntar onde ficava o acampamento Nelson Mandela. Todos os camponeses foram comigo extremamente solícitos, acolhedores e prestativos – algo que eu não imaginava para uma região repleta de pistoleiros grileiros. Imaginava, ao contrário, que os camponeses locais viessem a ser secos comigo por acharem que eu fosse um pistoleiro que queria grilar as terras deles. O que me passou foi exatamente o oposto. Cansado de seguir em frente na estrada, e cansado de perguntar para todos e ninguém saber onde ficava esse tal de acampamento Nelson Mandela, resolvo voltar para ver se tento a sorte e alguém sabe onde fica o meu destino. Voltando, me deparo com uma pequena casa de taipa próxima à estrada, com um homem alimentando seu gado. Grito um bom dia de longe, e ele me olha com um olhar meio desconfiado. Nesse grito, aparecem duas mulheres mais jovens do nada, provavelmente filhas dele. Pergunto novamente onde fica o acampamento Nelson Mandela, e elas me dão a direção. Seguir em frente e entrar na estradinha à direita. Até que enfim alguém sabia onde estava meu destino. Foi só entrar um pouco na estradinha pra verificar que o acampamento não era um acampamento agrário do MST, mas um acampamento dos operários das obras do canal do sertão, que por sinal estavam de férias. O jeito era seguir na estrada e continuar perguntando de casa em casa. Dessa vez, deixando de omitir a palavra “MST”, já falando abertamente em “acampamento Nelson Mandela do MST”. Eu já estava numa região isolada, longe da cidade, e sem paciência para não falar abertamente que queria de fato ir para uma região controlada pelo MST e por conta disso ficar andando mais algumas horas. A primeira casa que achei, já fiz questão de perguntar onde ficava o acampamento Nelson Mandela DO MST. O homem que me recebeu, seu Franscisco, me recebeu muito bem, de forma muito prestativa. “Desculpe incomodar o senhor” – “deixe disso”, ele me replicou. Disse, junto com um amigo seu que estava na sua casa, que a única região do MST que conhecia nas redondezas era o Assentamento Delmiro Gouveia, do qual um tal de “Seu Ramalho”, um senhor alto, era o cabeça. Seu Franscisco era amigo de seu Ramalho, dizia ele, e me informou que seu Ramalho era muito conhecido e adorado pelos camponeses da região. Se eu saísse pelos sítios perguntando pelo Assentamento Delmiro Gouveia por seu Ramalho, todo mundo saberia de quem se tratava. E assim o fiz. Segui em frente e encontrei uma casa meio longe do arame, de taipa, já bastante deteriorada. Também chamei o homem gordo que saiu da casa, mas ele não deve ter nem me ouvido – simplesmente trancou a porta e foi alimentar o gado. Não é habitual, para os camponeses da região, deixar de ajudar quem está precisando de ajuda. Logo, aposto na opção de que ele não me ouviu e nem me viu. Seguindo em frente, encontro um sítio com uma casa bonita, com várias pessoas na parte de fora conversando, muito provavelmente uma família. Fui bem recebido ao falar de seu Ramalho – o senhor que me atendeu também disse que era amigo de longa data de seu Ramalho. Deu-me as indicações sobre como atingir o assentamento Delmiro Gouveia, que ficava a uns dois quilômetros da casa. Continuei andando, pois. Entrando à direita, que foi como ele havia me indicado, me deparo simplesmente com um arame e com uma vaca me encarando. Não havia entrado na estrada certa. E não é que, ao tentar retornar para o outro lado, me aparece o mesmo senhor que havia me dado a informação de como chegar ao assentamento em cima de uma moto, falando que me deixaria de moto no assentamento? Os camponeses de Inhapi são simplesmente as melhores pessoas do mundo. Quando vi tal atitude por parte dele, somente lembrei daquela frase do livro Condenados da Terra: “O militante nacionalista que resolve, ao invés de brincar de esconder com os policiais em centros urbanos, colocar seu destino nas mãos das massas camponesas, não perde nunca. O manto camponês estende-se sobre ele com uma ternura e um vigor insuspeitados. [...] Descobrem um povo generoso, pronto ao sacrífico, desejoso de se dar, impaciente e de uma altivez de pedra.” Conversando com ele no caminho para o assentamento, descubro que se tratava do lavrador Cícero Delino, ou Ciço Delino, como é conhecido na região. Conhecia profundamente a situação da luta pela terra na região – acompanhou de perto o conflito das massas camponesas de Inhapi pela conquista da Fazenda Capim, na fronteira com Mata Grande, quando em 2003, 95 famílias camponesas organizadas pelo MST ocuparam a Fazenda que na época pertencia ao Dr. Luna Torres e somente em 2013 ou 2014 virou um assentamento. “A gente viu você entrar na estrada errada lá de longe e pensamos ‘coitado, vai ficar andando nesse sol quente aí e não vai achar o assentamento tão fácil’. Já pela cara dá pra ver quem é boa gente e quem não é, você é boa gente, eu lhe levo lá.”, disse ele. Poucos minutos depois eu descobriria que Ciço Delino, que me pareceu à primeira vista uma pessoa simples, era na verdade um rico lavrador da região. Possuía cinco fazendas, e tinha também uma casa grande e bonita na sede de Inhapi. Além do dinheiro e dos produtos de subsistência que conseguia com a roça e as muitas cabeças de gado que tinha em suas fazendas, também tinha uma fonte de renda fazendo transporte de feirantes em dia de feira. Ciço Delino me disse que todos os seus filhos também trabalhavam na lavoura e com gado. Passou-me pela cabeça se ele não empregava os filhos como assalariados ou arrendatários nas próprias fazendas, mas não tive a coragem de perguntar. Chegando ao assentamento Delmiro Gouveia, chego à casa de seu Ramalho e sou recebido de braços abertos. Ser levado de moto por Ciço Delino ao assentamento certamente me rendeu pontos com seu Ramalho, “receba esse menino, seu Ramalho, que quer conhecer o assentamento”. Abraço o senhor alto e barbudo e começo explicando motivo de minha visita, explicação esta que pelo que já vi até então seria mais fácil do que imaginei. Conversando com seu Ramalho, descubro que o assentamento Delmiro Gouveia não foi fruto de um trabalho do MST, mas da CPT (Comissão Pastoral da Terra), ligada à Igreja Católica. As 46 famílias camponesas estão já assentadas há 14 anos no assentamento Delmiro Gouveia, após meses de enfrentamento com o dr. Roberval, engenheiro químico da Petrobras com bastante dinheiro e antigo proprietário do latifúndio onde agora está localizado o assentamento. Ainda que seu Ramalho tenha exaltado o caráter pacífico das ações da CPT (ele mesmo é da CPT), criticando um suposto “vandalismo” do MST (a propósito, o seu Ramalho também tem relações próximas com o MST, e apoia muito o MST, ainda que faça essas críticas equivocadas), quando lutou pela conquista do assentamento, seu Ramalho, à frente das massas camponesas, fez grande emprego da justa “violência” reformista durante o conflito. O primeiro despejo que sofreram, quando Roberval enviou seus pistoleiros armados para expulsar as famílias da área, seu Ramalho imediatamente mobilizou os camponeses para marcharem até Garanhuns e invadirem outra propriedade de Roberval. Destruíram lavouras, arames e mataram gado como forma de pressioná-lo a aceitar a desapropriação do latifúndio e a receber a indenização pela desapropriação. Tal foi a origem do assentamento Delmiro Gouveia. Fiquei intrigado na maneira como seu Ramalho exaltou a política de contra reforma agrária de indenizar os grandes proprietários feudais com enormes somas de dinheiro, dinheiro este que utilizam para comprar ainda mais terras e manterem seus domínios fundiários. Na concepção de seu Ramalho, desapropriar a terra e indenizar os proprietários seria uma maneira de “legitimar” as ocupações de terra pelos camponeses (o proprietário não recebe indenização apenas da terra, é indenizado até mesmo pelo arame, pelos capins velhos que sobram na propriedade, etc). Concepção até coerente sob um ponto de vista católico pacifista... A situação da economia No assentamento Delmiro Gouveia, cada família recebeu um lote de aproximadamente 16 hectares de terra. Outros hectares do latifúndio foram utilizados para a construção das casas, de estradas e como reserva ambiental. A situação do assentamento Delmiro Gouveia é bastante crítica. É uma amostra clara da completa falência do programa de pseudo reforma agrária proposto pelo governo. O grande objetivo da reforma agrária, que é desenvolver a produção agropecuária para garantir autossuficiência alimentar para o campo, abastecer as cidades com produtos agrícolas para a alimentação do proletariado e da população urbana no geral, gerar matérias primas para a indústria nacional e abrir um mercado para o consumo de meios de produção agrícolas produzidos pela indústria nacional (que nada mais é do que a troca mercantil entre excedentes agrícolas e industriais), está a anos luz de ser alcançado pelo assentamento. No geral, a produção do assentamento permanece numa lamentável ruína. A produção das lavouras praticamente nunca gera excedentes passíveis de serem de serem comercializados. Assim, a economia dos assentados permanece, no geral, num estágio seminatural. Quando excedentes na produção agrícola são gerados e comercializados, os camponeses são brutalmente massacrados por atravessadores criminosos (nome bonito que dão para os comerciantes sanguessugas e sem escrúpulos que compram barato e vendem caro, espoliando simultaneamente os produtores rurais e os consumidores urbanos) que fazem questão de por o preço da produção camponesa lá para baixo. A situação que se apresenta é a seguinte: Os camponeses de Inhapi e da região produzem e comercializam, basicamente, dois produtos, que são o milho e o feijão, e a mandioca em menor escala. As possibilidades da venda desses produtos na própria cidade de Inhapi são praticamente nulas. Nenhum habitante de Inhapi possui o incentivo para comprar milho, feijão e mandioca, dado que todos possuem alguma lavoura de milho, feijão e mandioca no quintal de casa. Não há mercados locais, nem nos municípios próximos, dado que nestes municípios praticamente só existem também camponeses com lavouras de todos estes produtos agrícolas no quintal de casa. Assim, o principal mercado para os lavradores de Inhapi é basicamente Maceió e demais centros urbanos próximos, onde existe uma população operária e urbana que não planta, mas que consome esses produtos com o dinheiro do salário. Numa situação onde todos querem comercializar feijão, milho e mandioca, pois todos plantam tais produtos, mas somente o atravessador e mais ninguém quer comprá-los, o atravessador mantém o vai e vem dos preços a seu bel prazer, e por regra os mantêm aos menores níveis possíveis. Para se ter uma ideia, a saca (60 kg) de feijão comercializada pelos assentados no centro de Inhapi é adquirida pelos atravessadores por apenas 80 reais! Isto significa pagar apenas R$1,30 pelo quilo do feijão produzido de maneira suada pelos lavradores! Porém, para produzir um quilo de feijão, o lavrador gasta por regra mais que R$1,30. Só muito raramente gasta menos que isso. Assim, o atravessamento impõe pesados prejuízos sobre os camponeses na maior parte das vezes, algumas vezes não gera nem lucro nem prejuízo e muito raramente gera um lucro ínfimo para os camponeses, lucro incapaz de dar à agricultura de Inhapi o papel de adquirir modernas máquinas agrícolas, fertilizantes, adubos, irrigação etc. produzidos por uma inexistente indústria nacional. Porém, devido ao fato de o nordeste brasileiro estar passando por sua pior seca em cinquenta anos, seu Ramalho me diz que há quatro anos que não nasce qualquer lavoura no assentamento – somente a lavoura de palma, cultura extremamente resistente a qualquer tipo de seca, é a que cresce nas terras dos camponeses. E esta é por regra utilizada exclusivamente para a alimentação do gado. Os lavradores assentados comercializam também o leite que tiram do gado, mas esta é também submetida ao massacre do atravessamento. Assim, a agricultura e o campesinato de Inhapi, bem como de todo o sertão alagoano, permanecem descapitalizados. É impossível em tais condições pensar num pequeno desenvolvimento do capitalismo no campo sequer, quando até mesmo a economia mercantil simples é entravada pelo feudalismo, pelo atraso técnico e pelos inescrupulosos atravessadores que brotam como ervas daninhas por conta da falta de mercados para os camponeses. Ainda que os lavradores tenham recebido lotes de terra relativamente grandes para o padrão da região (quase 16 hectares), sabemos que o trabalho agrícola, em qualquer situação, deve enfrentar um período de carência antes do início da colheita. No caso do sertão, o período de carência é muito maior por conta do clima semiárido. Os camponeses assentados não possuem qualquer estrutura para enfrentar períodos de carência – na tentativa de enfrentar o período de carência, fazem empréstimos nos bancos com altíssimas taxas de juros. Por regra, assentado algum consegue pagar o empréstimo que toma nos bancos. Devido ao atraso técnico medieval, do lavrador que trabalha a terra com arado a boi, enxada e não possui irrigação e fertilizantes, extremamente necessários para o desenvolvimento da produção agrícola numa região sertaneja, a lavoura nasce muito pouca, e não gera excedentes que possam ser comercializados e transformados em dinheiro para o pagamento das dívidas. O excedente que o lavrador assentado consegue comercializar, por conta do atravessamento, só serve para cobrir os custos de produção e não geram lucro. Assim, a inadimplência por parte de lavradores assentados é fato generalizado. Ficam com nome sujo no SPC e permanecem impossibilitados de tomarem mais empréstimos. Nada podem produzir ou desenvolver, então. Conforme seu Ramalho me explicou, para tais assentados sobram três alternativas: 1) imigrarem do campo para as grandes cidades; 2) arrendarem terras dos fazendeiros locais sob a forma feudal, trabalhando como meeiros; 3) trabalharem como diaristas rurais assalariados nas terras dos fazendeiros, recebendo 30 reais pelo dia de trabalho na roça. Perguntei a seu Ramalho porque um assentado precisaria trabalhar como um camponês arrendatário se recebeu terras próprias pelo programa de reforma agrária do governo. Há os seguintes motivos: os fazendeiros, ao contrário dos assentados, possuem terras muito boas e com água farta, passível de ser utilizada nos trabalhos agrícolas; ao trabalharem para os fazendeiros, os fazendeiros fornecem as sementes e a terra para o lavrador plantar, o lavrador entra com seu trabalho braçal e com seus instrumentos de produção (já que, junto com a terra, recebeu também enxada, pá e arado a boi do governo). No final da colheita, metade de tudo o que é produzido e colhido fica para o fazendeiro, e a outra metade para o lavrador. Muitos lavradores do assentamento Delmiro Gouveia são meeiros ou assalariados agrícolas. Quando pedi a seu Ramalho para me apresentar estas pessoas, ele disse que não podia, pois o INCRA proíbe que as terras distribuídas pelo programa de reforma agrária sejam deitadas improdutivas. Caso descubram que os lavradores estão trabalhando outras terras e deixando improdutivas as terras que receberam no assentamento, o INCRA imediatamente toma a terra do lavrador assentado. E nisso são muito bons. Assim, tais esquemas de venda de terras por parte dos assentados (por parte dos que imigram) ou trabalho em terras alheias são mantidos em segredo entre os assentados, para que os companheiros não sejam prejudicados pela ação do INCRA. Seu Ramalho me falou que sequer poderia estar comentando isso comigo, da feita que é segredo entre os assentados. Como seu Ramalho já me havia dito, “o assentado é como um filho sem pai”. Acerca do nível técnico da agricultura e da pecuária de Inhapi e do sertão, informações fornecidas por seu Ramalho e por gente da região permitiram confirmar o que eu já desconfiava: quase todos os lavradores aram a terra com tração animal (arado a boi) e afofam a terra, retiram ervas daninhas etc. com enxada. Não possuem fertilizantes nem irrigação. Em Inhapi, há somente dois fazendeiros que possuem tratores, e que cobram cem reais por hora para arar a terra. O baixo poder aquisitivo da população impossibilita contratarem o serviço de trator dos fazendeiros. Na cidade, fora algum emprego como funcionário da prefeitura ou do pequeno comércio local, não há qualquer outro trabalho além da agricultura. Não há nenhuma indústria no município. Salvo engano, Delmiro Gouveia é o único município do sertão alagoano que possui um pequeno nível de industrialização, com a presença de um polo industrial têxtil que não funciona com metade da capacidade que funcionava nos últimos anos. Infelizmente, não obtive informações acerca das relações de produção predominantes ou da estrutura agrária. Porém, todos os sintomas já descritos me permitem especular a presença predominante de camponeses com pouca terra, alguns sem nenhuma terra, coexistindo ao lado de latifundiários parasitas que pouco ou nada produzem. A situação política Ao entrar em Inhapi, o município me pareceu um verdadeiro reduto do PT. Um dos primeiros outdoors que vi foi a do retrato de Dilma, ao lado do prefeito da cidade, também do PT, que dizia “A cidade do coração valente”, agradecendo pelos cerca de 7 mil votos recebidos por Dilma Rousseff na cidade de quase 20 mil habitantes (não acredito que o colégio eleitoral seja muito inferior a 20 mil habitantes, me bateu agora a enorme curiosidade de verificar qual foi a presença dos votos nulos e brancos...). Perguntei a seu Ramalho sobre o que achava do prefeito petista de Inhapi. Seu Ramalho me disse que ele também é de origem camponesa, e militou durante muitos anos no movimento agrário. Seu Ramalho lutou para que ele fosse eleito prefeito, e o foi, mas disse num tom de decepção que, ao ser eleito, o prefeito “abandonou suas raízes” e deixou de fazer muitas coisas que prometeu em período de campanha. Não construiu a escola e o posto de saúde no assentamento, conforme havia prometido, e Inhapi permanece até hoje como uma cidade onde o saneamento básico é inexistente. Seu Ramalho disse, também, que da mesma forma que ajudou a torná-lo prefeito, também ajudaria a tirá-lo da prefeitura. Seu Ramalho, assim como “todo mundo” de Inhapi, nas palavras dele, votou em Dilma, embora tenha criticado-a pesadamente por conta dos escândalos de corrupção, da repressão contra os movimentos urbanos, pelo descaso com a saúde e a educação e com os enormes gastos com os megaeventos como a Copa do Mundo. Apesar da ilusão que todos lá possuem com o PT, as condições para a defesa do boicote eleitoral ativo e politizado estão dadas.
Há uma relação muito próxima da população com o Bolsa Família, e os comentários de seu Ramalho me pareceram de fato ser esse o verdadeiro ingrediente que arranque grandes votos da população sertaneja para o PT. Segundo ele, antes do Bolsa Família, a morte por desnutrição era algo comum em Inhapi, não era grande coisa. Após o cadastro das famílias no Bolsa Família, ainda que todas ainda passem por um sem número de dificuldades e passem fome (não há comida para comer a hora que quiser, como diz a propaganda petista), morte por desnutrição já é coisa rara em Inhapi, praticamente não há, ainda que doenças causadas pela falta de saneamento básico, pela quase inexistência de postos de saúde e pela inexistência de hospitais ainda continue martirizando muitos em Inhapi e na região. Segundo as próprias palavras de seu Ramalho, o PT é um partido que investe muito em propaganda (falou isso no sentido negativo), e, ainda que ele exalte o Bolsa Família e reconheça que este contribuiu em muito para amenizar a miséria da população, nunca tirou ninguém da miséria, como é o que a propaganda oficial fala. Mas, ainda assim, Inhapi “melhorou muito” após a criação do Bolsa Família, nas palavras dele. Conversando com gente no centro de Inhapi – muitos vizinhos da pousada onde eu dormi ficavam lá para jogar conversa fora com os empregados da pousada e comigo –, me pareceu que existe um enorme erro por parte do MST, da CPT e demais movimentos camponeses de não estabelecer uma aliança com a população da sede dos municípios onde levam a cabo a luta agrária anti-feudal, bem como um processo de politização e trabalho de base para rechaçar as mentiras espalhadas pelos senhores de terras entre a população. Não foram poucos os que falavam que não gostavam dos “sem terra”, ou que falaram que “depois que recebem terra, muitos viram maloqueiros”. Ouvi isso da boca de próprios lavradores, ou de gente que tinha na agricultura uma ocupação complementar. Tentei “passar um pano” para os “sem terras” quando ouvi tais opiniões. Disse que, na minha opinião, o MST e demais movimentos do campo eram muito bons para a população, pois conseguiam abastecer a feira local com alimentos. Porém, falaram que os assentamentos não produzem nada. De certa forma, não estavam errados. A situação que verifiquei no assentamento Delmiro Gouveia mostrou uma agricultura-pecuária extremamente atrasada e pouco produtiva. Muitos no assentamento usavam drogas. Porém, os que me mostraram tal opinião a formaram não com base na pesquisa e na investigação, mas com base nos alardes dos senhores de terras. Não há nada melhor do que levar a cabo uma luta agrária independente da tutela governamental, que desenvolva a produção, desenvolva a moral proletária entre as pessoas do movimento de massas e politize a população das cidades para rechaçar tais calúnias.
por Alexandre Rosendo
(Relatório sobre a situação do sertão alagoano realizado em dezembro de 2014)