"Capitalismo: uma história fantasmagórica"
É uma casa ou um lar? Um templo para a nova Índia ou um armazém para os seus fantasmas? Desde que Antilha chegou a Altamont Road, em Bombaim, com mistério e ameaça silenciosa, as coisas não têm sido as mesmas. "Aqui estamos nós", disse o amigo que me levou lá, "preste homenagem ao nosso novo soberano". Antilha pertence ao homem mais rico da Índia, Mukesh Ambani. Eu já havia lido sobre desta casa, a mais cara já construída, com 27 andares, três heliportos, nove elevadores, jardins suspensos, salões de festas, salas de espera, ginásios, seis andares de estacionamento e os seiscentos serviçais. Nada me tinha preparado para a relva vertical – um muro alto de 27 andares de relva presa a uma grade de metal. A relva estava seca, em fragmentos; pedaços haviam caído em retângulos agradáveis de ver. Claramente, o efeito Gotejamento ( Trickle-Down ) não funcionou. Mas o Jorro Ascendente (Gush-Up) certamente funcionou. É por isso que em uma nação de 1,2 mil milhões de pessoas, as 100 mais ricas da Índia possuem ativos equivalentes a um quarto do seu PIB. A notícia a circular na rua (e no New York Times ) é, ou pelo menos era, a de que, depois de todo este esforço e jardinagem, os Ambani não moram em Antilha. Ninguém sabe ao certo, mas as pessoas continuam a falar sobre fantasmas e má sorte, vaastu e feng shui . Talvez seja tudo culpa de Karl Marx (toda aquela maldição). O capitalismo, ele disse, "conjurou gigantescos meios de produção e troca, que parece com o feiticeiro que já não é mais capaz de controlar os poderes do submundo que invocou com seus feitiços". Na Índia, os 300 milhões de nós que pertencem à nova classe média "pós-reformas" do FMI, o mercado, vivem lado a lado com os espíritos do submundo, os espíritos de rios mortos, poços secos, montanhas insignificantes e florestas descobertas; os fantasmas de 250 mil agricultores endividados que se suicidaram, e dos 800 milhões que foram empobrecidos e despojados a fim de abrir caminho para nós e que sobrevivem com menos de vinte rúpias por dia. Mukesh Ambani vale, ele próprio, 20 mil milhões de dólares americanos. Ele detém ações maioritárias na Reliance Industries Limited (RIL), uma empresa com uma capitalização de mercado de 47 mil milhões de dólares e interesses comerciais mundiais que incluem petroquímica, petróleo, gás natural, fibra de poliéster, zonas econômicas especiais, venda a retalho de alimentos frescos, escolas, pesquisa das ciências da vida e serviços de armazenamento das células-tronco. Recentemente, a RIL comprou 95% das ações na Infotel, um consórcio da TV que controla 27 noticiários televisivos e entretenimento, incluindo a CNN – IBN, IBN Live, CNBC, IBN Loquilômetrosat e ETV, em quase todas as línguas regionais. A Infotel possui a única licença nacional para a banda larga 4G, um "cabo de transferência de informações" em alta velocidade que, se a tecnologia funcionar, poderá ser o futuro da troca de informações. Sr. Ambani é também dono de uma equipe de críquete. A RIL é apenas uma de um conjunto de empresas que gerem a Índia. Algumas outras são a Tata, Jindal, Vedanta, Mittal, Infosys, Essar, além da Reliance (ADAG), propriedade de Anil, irmão de Mukesh. Sua corrida pelo crescimento espalhou-se por toda a Europa, Ásia Central, África e América Latina. Suas redes são amplas; são visíveis e invisíveis, na superfície bem como no subsolo. Os Tata, por exemplo, gerem mais de 100 empresas em 80 países. São uma das mais antigas e maiores empresas privadas de energia da Índia. Eles são donos de minas, campos de gás, siderúrgicas, redes de telefonia, TV a cabo e redes de banda larga, e gerem municípios inteiros. Fabricam carros e caminhões, são proprietários do Grupo Taj Hotel, Jaguar, Land Rover, Daewoo, Tetley Tea, uma editora, uma cadeia de livrarias, uma grande marca de sal iodado e o gigante de cosméticos Laquilômetros. Seu slogan publicitário poderia facilmente ser: "Tu não podes viver sem nós". De acordo com as regras do Evangelho do Gush-Up, quanto mais se tem, mais se pode ter. A era da privatização de tudo fez da economia indiana uma das que mais crescem no mundo. No entanto, como qualquer boa colônia, um dos seus principais produtos de exportação são os seus minérios. As novas megaempresas da Índia – Tata, Jindal, Essar, Reliance, Sterlite – são as que conseguiram forçar a passagem para a cabeça da torneira que está a expelir o dinheiro extraído das profundezas da terra. É um sonho tornado realidade para os empresários, serem capazes de vender o que não têm para comprar. A outra grande fonte de riqueza corporativa vem dos seus bancos de terra. Em todo o mundo, fracos e corruptos governos locais ajudaram os corretores da Wall Street, as empresas de agronegócio e bilionários chineses a acumular grandes extensões de terra (evidentemente isso implica comandar a água também). Na Índia, a terra de milhões de pessoas está a ser adquirida e entregue às empresas privadas de "interesse público", para as Zonas Econômicas Especiais, projetos de infraestrutura, barragens, estradas, fabricação de automóveis, centros químicos e corridas de Fórmula Um (a santidade da propriedade privada nunca se aplica aos pobres). Como sempre, à população local promete-se que sua deslocação das próprias terras e a desapropriação de tudo o que tinham é, realmente, parte da geração de emprego. Todavia, como agora sabemos, a ligação entre o crescimento do PIB e do emprego é um mito. Depois de vinte anos de "crescimento", 60% da força de trabalho da Índia é autoempregada, e 90% desta está no setor informal. Depois da independência, até a década de 1980, os movimentos populares, que vão desde os naxalitas aos Sampoorna Kranti de Jayaprakash Narayan, lutavam por reforma agrária, pela redistribuição de terras dos senhores feudais para os camponeses rurais sem terra. Hoje qualquer discussão sobre redistribuição de terras ou de riqueza seria considerada não só antidemocrática, mas, também, louca. Até mesmo os movimentos mais atuantes se reduziram a uma luta para manter a pequena parcela de terra que a população ainda tem. As milhões de pessoas sem terra, a maioria delas dalits e adivasis , expulsas das suas aldeias e que vivem em cabanas e colônias de cabanas em pequenas e megacidades, não figuram no discurso radical. Enquanto o Gush-Up concentra riqueza na ponta de uma agulha brilhante em que nossos bilionários rodopiam, rios de dinheiro ruem nas instituições da democracia – os tribunais, o Parlamento, bem como os meios de comunicação – comprometendo seriamente sua capacidade de funcionar nos moldes para os quais foram feitos. Quanto mais barulhenta for a festa em torno das eleições, menos certeza temos de que a democracia realmente existe. Cada escândalo novo de corrupção que surge na Índia faz o último parecer leve ou insignificante. No verão de 2011, o escândalo do espectro 2G veio a tona. Conforme exposto, as empresas tinham desviado 4 mil milhões de dólares de dinheiro público colocando-os nas mãos do ministro da União de Telecomunicações que ousadamente cedeu a preço de banana a licença para o espectro 2G de telecomunicação e ilegalmente dividiu-o entre os amigos. As conversas telefônicas gravadas que vieram a público pela imprensa mostraram como uma rede de empresários e suas empresas de fachada, ministros, jornalistas seniores e uma âncora de TV estavam envolvidos na facilitação desse roubo à luz do dia. As fitas eram apenas uma ressonância magnética que confirmou o diagnóstico já feito pelas pessoas há muito tempo. Contudo, enquanto a privatização e a venda ilegal do espectro de telecomunicação não envolvem guerra, deslocamento nem devastação ecológica, a das montanhas, rios e florestas da Índia envolve. Talvez porque ela não tem a evidência de um escândalo direto considerável, ou talvez porque tudo está a ser feito em nome do "progresso" da Índia. Ela não tem a mesma repercussão entre as classes médias. Apenas alguns dias após os governos de Chhattisgarh, Orissa e Jharkhand assinaram centenas de Memorandos de Entendimento (ME) com uma série de empresas privadas tornando milhões de milhões de dólares de bauxita, minério de ferro e outros minerais em uma ninharia, desafiando até mesmo a lógica distorcida de mercado livre (os royalties para o governo variaram entre 0,5 e 7 %). Apenas alguns dias depois de o governo de Chhattisgarh assinar um memorando de entendimento para a construção de uma usina siderúrgica integrada, em Bastar, com a Tata Steel, foi criado o Salwa Judum, uma milícia vigilante. Consoante o governo disse, era uma revolta espontânea das populações locais que estavam fartas da "repressão" pelos guerrilheiros maoístas na floresta. Acabou sendo uma operação de limpeza terrestre, financiada e armada pelo governo e subsidiada pelas empresas de mineração. Nos demais estados, foram criadas milícias semelhantes, com outros nomes. Segundo o primeiro-ministro anunciou, os maoístas eram o "único desafio maior de segurança na Índia". Foi uma declaração de guerra. No dia 2 de janeiro de 2006, em Kalinganagar, no estado vizinho de Orissa, talvez para sinalizar a gravidade da intenção do governo, dez pelotões da polícia chegaram no local da outra fábrica da Tata Steel e dispararam contra moradores das vilas que se haviam reunido ali para protestar sobre o que eles consideravam ser uma compensação inadequada pela terra. Treze pessoas, incluindo um policial, foram mortas, e 37 feridas. Seis anos se passaram e, embora as aldeias permaneçam sob cerco de policiais armados, o protesto continua. Enquanto isso, em Chhattisgarh, o Salwa Judum queimava, estuprava e assassinava moradores de centenas de aldeias florestais, causando a evacuação de 600 aldeias, obrigando 50 mil pessoas a ir para os acampamentos da polícia e 350 mil a fugir. Como o ministro-chefe anunciou, aqueles que não saíssem das florestas seriam considerados "terroristas maoístas". Desta forma, em algumas partes da Índia moderna, lavrar campos e semear passou a ser definido como atividade terrorista. Na verdade, as atrocidades do Salwa Judum só conseguiram fortalecer a resistência e aumentar as fileiras do exército da guerrilha maoísta. Em 2009, o governo anunciou o que chamou de Operação Caça Verde. Duas tropas paramilitares lakh foram implantadas em Chhattisgarh, Orissa, Jharkhand e Bengala Ocidental. Depois de três anos de "conflito de baixa intensidade", o governo central, que não conseguiu "expulsar" os rebeldes da floresta, declarou que iria mobilizar o exército indiano e a força aérea. Na Índia não chamamos a isto de guerra, chamamos de "criar um bom ambiente de investimento". Milhares de soldados já se movimentaram para lá e estão a ser preparados quartéis para a brigada do exército e a base aérea. Um dos maiores exércitos do mundo está agora preparando seus Termos de Combate para "defender-se" dos mais pobres, mais famintos e das pessoas mais desnutridas do mundo. Estamos somente à espera da declaração da Lei dos Poderes Especiais das Forças Armadas (AFSPA), que vai dar ao exército imunidade legal e o direito de matar "sob suspeita". Ao andar pelas dezenas de milhares de sepulturas não identificadas e piras de cremação anônimas em Caxemira, Manipur e Nagaland, o exército tem-se, na verdade, revelado muito suspeito. Enquanto estão sendo feitos os preparativos para a implantação, as selvas da Índia Central continuam sob cerco, com os moradores com medo de sair, ir ao supermercado e farmácias. Centenas de pessoas foram presas acusadas de serem maoístas, ficando sob leis antidemocráticas draconianas. As prisões estão cheias de pessoas adivasi, muitas das quais não sabem qual é o seu crime. Recentemente, Soni Sori, professora numa escola adivasi de Bastar, foi presa e torturada sob a custódia policial. Foram introduzidas pedras na sua vagina para levá-la a "confessar" que era uma espiã maoísta. As pedras foram removidas do seu corpo num hospital em Calcutá, onde, depois de um protesto público, ela foi enviada para um check-up médico. Em recente audiência no Supremo Tribunal, os ativistas apresentaram aos juízes as pedras em um saco plástico, mas o único resultado dos seus esforços foi que Soni Sori permanece na prisão enquanto Ankit Garg, o superintendente da polícia que conduziu o interrogatório, foi condecorado com a Medalha Policial do Presidente por Cortesia no Dia da República. Fala-se sobre a reestruturação ecológica e social da Índia Central só por causa da insurreição em massa e a guerra. O governo não dá nenhuma informação e os memorandos de entendimento são um segredo dos deuses. Alguns setores da mídia fizeram o que podiam para chamar atenção do público para o que está a acontecer nesta parte da Índia. No entanto, a maioria dos meios de comunicação indianos é vulnerável pelo fato de a maior parte das suas receitas vir de anúncios das empresas. Se isso não é ruim o suficiente, agora a linha entre a mídia e as grandes empresas começou a diluir-se perigosamente. Como vimos, a RIL possui 27 canais de TV. Mas o inverso também acontece. Algumas agências midiáticas agora têm negócios diretos e interesses empresariais. Por exemplo, um dos principais jornais diários da região, Dainik Bhaskar (e é apenas um exemplo), tem 17,5 milhões de leitores em quatro idiomas, incluindo inglês e hindi, em treze estados e é também proprietário de 69 empresas com interesses na mineração, geração de energia, imobiliário e têxteis. Uma petição recente arquivada no Supremo Tribunal de Chhattisgarh acusa a DB Power Ltd (uma das empresas do grupo) de usar "medidas deliberadas, ilegais e de manipulação" através de jornais de propriedade da empresa para influenciar o resultado de uma audiência pública sobre uma mina de carvão a céu aberto. Se tentou ou não influenciar o resultado não é relevante. A questão é a seguinte: as empresas de comunicação têm prestígio e possuem o poder de fazê-lo. Diante das leis locais encontram-se num grave conflito de interesses. H á outras partes do país de onde não chegam notícias. No estado do nordeste de Arunachal Pradesh pouco povoado, mas militarizado, estão sendo construídas 168 grandes barragens, a maioria delas em propriedade privada. Barragens altas que vão submergir bairros inteiros estão em construção em Manipur e Caxemira, ambos altamente militarizados, onde as pessoas podem ser mortas apenas por protestar contra os cortes de energia (isto aconteceu há algumas semanas em Caxemira). Como podem eles parar a construção de uma barragem? A mais ilusória de todas as barragens é a de Kalpasar, em Gujarat, a qual está projetada para ter 34 quilômetros de comprimento ao longo do golfo de Khambhat com uma estrada de dez faixas e uma linha férrea sobre ela. Ao manter fora a água do mar, tem-se a ideia de criar um reservatório de água doce dos rios do Gujarat (não importa se esses rios já foram represados a um gotejamento e envenenados com efluentes químicos). A barragem Kalpasar, que elevaria o nível do mar e alteraria a ecologia de centenas de quilômetros de costa, foi abandonada dez anos atrás porque era considerada como uma má ideia, mas teve um retorno repentino, com objetivo de fornecer água para a Região de Investimento Especial de Dholera (SIR), uma das zonas com mais escassez de água, não apenas na Índia, mas no mundo. SIR é um outro nome para uma ZEE (Zona Econômica Especial), uma distopia corporativa de autogoverno de "parques industriais, municípios e megacidades". Conforme estabelecido, a Dholera SIR vai ser ligada a outras cidades de Gujarat por uma rede de estradas de dez faixas. De onde virá o dinheiro para tudo isso? Depois de três anos de tentativas para expulsar os rebeldes, o centro disse que vai implantar as forças armadas. Na Índia isto não é guerra, é "Criação de um Bom Ambiente de Investimento". Em janeiro de 2011, em Mahatma (Gandhi) Mandir, o ministro-chefe de Gujarat, Narendra Modi, presidiu uma reunião de 10 mil empresários internacionais de 100 países. De acordo com relatos da mídia, eles se comprometeram a investir 450 mil milhões de dólares em Gujarat. A reunião foi programada para decorrer no início do ano do décimo aniversário do massacre de 2 mil muçulmanos, em fevereiro – março de 2002. Modi é acusado não apenas de tolerância, mas também de cumplicidade ativa na matança. As pessoas que viram seus entes queridos serem estuprados, eviscerados e queimados vivos, as dezenas de milhares de pessoas que foram expulsas das suas casas ainda esperam por um gesto em direção à justiça. Mas Modi negociou seu cachecol de cor de açafrão e detalhe vermelho por uma cara roupa da moda, e espera que um investimento de 450 mil milhões de dólares funcione como dinheiro sangrento para acertar as contas. Talvez consiga. Tem o apoio entusiástico das grandes empresas. Ademais, a álgebra da justiça infinita funciona de modos misteriosos. A Dholera SIR é apenas uma das bonecas Matryoshka mais pequenas, uma das mais interiores na distopia que está a ser planejada. Será ligada ao Corredor Industrial Delhi Bombaim (DMIC), uma área industrial de 1.500 quilômetros de comprimento e 300 quilômetros de largura, com nove zonas megaindustriais, uma linha de transporte de alta velocidade, três portos marítimos e seis aeroportos, uma via rápida com seis faixas sem interseção e uma central de energia de 4.000 MW. Proposto pelo McKinsey Global Institute, o DMIC é um empreendimento conjunto entre os governos da Índia e do Japão, e suas respectivas empresas parceiras. De acordo com o website do DMIC, cerca de 180 milhões de pessoas serão "afetadas" pelo projeto, mas não diz como serão afetadas. Prevê a construção de várias novas cidades e estima que a população da região venha a crescer dos atuais 231 milhões para 314 milhões em 2019. Isso é daqui a cinco anos. Quando foi a última vez que um governo tirano ou ditador realizou uma remoção de população de milhões de pessoas? Pode, realmente, ser um processo pacífico? Neste caso, o exército indiano pode precisar de uma campanha de recrutamento de modo a não ser apanhado de surpresa quando lhe for ordenado implantar-se por toda a Índia. Em preparação para seu papel na Índia Central, publicou sua doutrina atualizada em Operações Psicológicas Militares, que delimita "o processo planejado de disseminação da mensagem para um público-alvo selecionado, para promover temas particulares que resultem em atitudes e comportamentos desejados que afetam a realização dos objetivos políticos e militares do país." Este processo de "gestão da percepção", dizia a doutrina, seria conduzido "usando a mídia disponível para os serviços". Contudo, o exército é experiente o bastante para saber que a força coerciva por si só não pode realizar ou gerir a reestruturação social na escala prevista pelos planeadores da Índia. A guerra contra os pobres é uma coisa, mas para o resto de nós – a classe média, os trabalhadores de colarinho branco, os intelectuais, "formadores de opinião" – tem de ser "a gestão da percepção". E para isso, devemos voltar nossa atenção para a arte requintada de Filantropia Empresarial. Recentemente, os principais conglomerados de mineração têm abraçado as artes/filme, instalações de arte e a corrida pelos festivais literários que substituíram a obsessão dos anos 1990 por concursos de beleza. Vedanta, atualmente explorando o coração das terras da antiga tribo Dongria Kondh, patrocina uma competição de filmes "Criando Felicidade" para jovens estudantes de cinema, a quem incumbiram fazer filmes sobre o desenvolvimento sustentável. O slogan da Vedanta é "Exploração Mineira Feliz". Ademais, o Grupo Jindal edita uma revista de arte contemporânea e oferece apoio a alguns dos grandes artistas da Índia (os quais, naturalmente, trabalham com aço inoxidável). Essar foi o patrocinador principal do Tehelka Newsweek Think Fest que prometia "debates sobre o índice elevado de octano" pelos melhores intelectuais de todo o mundo, entre estes, grandes escritores, ativistas e até mesmo o arquiteto Frank Gehry (tudo isto em Goa, onde ativistas e jornalistas descobriram enormes escândalos de mineração ilegal, e a parte da Essar na guerra em curso em Bastar estava emergindo). Tata Steel e Rio Tinto (que tem um historial sórdido por si próprios) estavam entre os líderes patrocinadores do Festival Literário de Jaipur (nome Latin: Darshan Singh Construction Jaipur Literary Festival) anunciado pelos conhecedores da matéria como "o maior espetáculo literário no mundo". Counselage, "gestor de marca estratégica" da Tata, patrocinou a tenda para a imprensa no festival. Muitos dos melhores e mais brilhantes escritores do mundo reuniram-se em Jaipur para discutir o amor, a literatura, a política e a poesia sufi. Alguns tentaram defender o direito de Salman Rushdie à liberdade de expressão mediante leitura do seu livro proscrito, Os Versos Satânicos. Em cada fotografia do jornal e programa de TV, o logotipo da Tata Steel (e do seu slogan – Valores mais fortes que o aço) aparecia atrás deles, um benigno, benevolente anfitrião. Os inimigos da liberdade de expressão foram os motins muçulmanos supostamente criminosos, que, segundo disseram os organizadores do festival, poderiam ter prejudicado até os estudantes que estavam lá (somos testemunhas de quão impotentes o governo indiano e a polícia podem ser quando se trata de muçulmanos). Sim, o seminário islâmico fundamentalista Darul Uloom Deobandi protestou contra Rushdie ter sido convidado para o festival. Sim, alguns islâmicos reuniram-se no local do festival para protestar e, ousadamente, o governo não moveu nem uma palha para proteger o local, isso porque todo o episódio teve tanto a ver com a democracia, banco de votos (votebanks) e as eleições de Uttar Pradesh como fez com o fundamentalismo islâmico. Mas a luta pela liberdade de expressão contra o fundamentalismo islâmico fez com que isto aparecesse na imprensa mundial e é bom que tal tenha acontecido, no entanto, quase não havia relatos sobre o papel dos patrocinadores do festival na guerra nas florestas, os corpos se acumulando e as prisões lotadas. Ou sobre a Lei para a Prevenção das Atividades Ilegais e da Lei Especial de Segurança Pública de Chhattisgarh, que fazem com que mesmo pensar num acto antigoverno uma ofensa reconhecida. Ou sobre a audiência pública obrigatória para a fábrica da Tata Steel em Lohandiguda, na qual a população local queixou-se, e que ocorreu a centenas de quilômetros de distância em Jagdalpur, no complexo de escritórios do chefe administrativo do distrito, com um público contratado de cinquenta pessoas, sob proteção armada. Onde estava, então, a tal liberdade de expressão? Ninguém mencionou Kalinganagar, ou que a jornalistas, acadêmicos e cineastas que trabalham em assuntos impopulares para o governo indiano – como o papel secreto que desempenhou no genocídio de Tamil, na guerra no Sri Lanka, ou as sepulturas não identificadas recentemente descobertas na Caxemira – estava sendo negado o visto indiano ou eram deportados diretamente do aeroporto. No entanto, qual de nós pecadores atiraria a primeira pedra? Não eu, que vive fora das regalias de editoras das empresas. Todos nós assistimos ao Tata Sky, navegamos na internet com Tata Photon, subimos em táxis Tata, hospedamo-nos em Hotéis Tata, saboreamos o nosso chá Tata em porcelana Tata, mexendo com colheres de chá feitas de Tata Steel. Nós compramos livros Tata nas livrarias Tata. Hum Tata ka namak khate hain. Estamos sob cerco. Se a marreta de pureza moral é ser o critério para arremesso de pedras, então, as únicas pessoas que se qualificam são as que já foram silenciadas. Aqueles que vivem fora do sistema: os bandidos nas florestas ou aqueles cujos protestos não são cobertos pela imprensa, ou o bem comportado sem teto, os quais vão de tribunal em tribunal, dando testemunho, dando depoimentos. Mas o Litfest deu-nos o nosso momento Aha! Oprah veio. Ela disse que amou a Índia e que viria novamente e novamente. Isso nos deixou orgulhosos. Esta é apenas a paródia final da arte requintada. Embora a Tata tenha estado envolvida com filantropia corporativa por quase cem anos, doando bolsas de estudo e gerindo algumas excelentes instituições de ensino e hospitais, só recentemente é que as empresas indianas foram convidadas para o Star Chamber, Camera stellata, o mundo iluminado do governo corporativo global, mortal para os seus adversários, mas de forma tão engenhosa que mal se sabe que existe. O que se segue neste ensaio pode parecer, para alguns, uma crítica um pouco dura, contudo, na tradição de honrar os adversários, poderia ser lido como um reconhecimento da visão, flexibilidade, sofisticação e determinação inabalável daqueles que dedicaram suas vidas a manter o mundo seguro para o capitalismo. Sua história fascinante, que desapareceu da memória contemporânea, começou nos EUA no início do século 20, quando, equipada legalmente com fundações dotadas, a filantropia corporativa começou a substituir a atividade missionária como um caminho aberto do capitalismo (e do imperialismo) e patrulha do sistema de manutenção. Entre as primeiras fundações a serem criadas nos Estados Unidos estavam a Carnegie Corporation, doada em 1911 com lucros da Companhia de Aço Carnegie (Carnegie Steel Company) e a Fundação Rockefeller (Rockefeller Foundation), doada em 1914 pelo J.D. Rockefeller, fundador da Standard Oil Company. Os Tatas e Ambanis do seu tempo. Algumas das instituições financiadas, apoiadas com capital inicial ou pela Fundação Rockefeller são a ONU, a CIA, o Conselho de Relações Exteriores, o Museu mais fabuloso de Arte Moderna de Nova York, e, é claro, o Centro Rockefeller, em Nova York (onde o mural de Diego Riviera teve de ser retirado da parede, pois maliciosamente retratava os capitalistas réprobos e um Lênin valente. A liberdade de expressão estava de folga). J.D. Rockefeller foi o primeiro bilionário da América e o homem mais rico do mundo. Ele era um abolicionista, um apoiador de Abraham Lincoln e um abstêmio. Conforme acreditava, seu dinheiro foi-lhe dado por Deus, o que deve ter sido bom para ele. Pablo Neruda, em um dos seus primeiros poemas intitulado Standard Oil Company, assim se expressa:
Os seus obesos imperadores vivem em Nova Iorque, são polidos e meigos, assassinos sorridentes que compram seda, nylon, charutos, tiranetes e ditadores Compram países, povos, mares, polícias, deputados, de longínquas comarcas onde os pobres guardam o seu trigo como os avaros guardam o ouro: a Standard Oil desperta-os veste-lhes uniformes, designa-lhes qual é o seu irmão ou inimigo e o paraguaio faz a sua guerra e o boliviano desfalece com a sua metralhadora na selva Um presidente assassinado por uma gota de petróleo, uma hipoteca de milhões de hectares, um fuzilamento rápido pela manhã mortal de luz, petrificada, um novo campo de presos subversivos, na Patagônia, uma traição, um tiroteio durante um patrulhamento, uma mudança subtil de ministros na capital, um rumor como uma maré de azeite e logo a debandada, e verás como brilham, sobre as nuvens, sobre os mares, sobre a tua casa, as letras da Standard Oil iluminando os seus domínios.
Quando as fundações dotadas pelas corporações surgiram nos EUA, houve intenso debate sobre sua proveniência, a legalidade e a falta de prestação de contas. Segundo pessoas sugeriram, se as empresas têm tanto excedente de dinheiro, deveriam aumentar o salário dos seus trabalhadores (houve quem fizesse essas sugestões ultrajantes naqueles dias, mesmo nos Estados Unidos). A ideia dessas fundações, tão comum hoje, era de fato um salto da criatividade dos negócios. Entidades com isenção de impostos, com grandes recursos e uma quase licença ilimitada – totalmente inexplicável, totalmente não transparente – qual é a melhor forma de transformar a riqueza econômica em capital político, social e cultural, de transformar riqueza em poder? Qual é a melhor forma de usurários empregarem uma porcentagem mínima dos seus lucros para governar o mundo? De que outra forma Bill Gates, que reconhecidamente sabe uma ou duas coisas sobre computadores, encontrar-se-ia a desenhar políticas de educação, saúde e agricultura, não apenas para o governo dos EUA, mas para os governos de todo o mundo? Ao longo dos anos, enquanto se testemunhava algumas das atividades boas das fundações (gerindo bibliotecas públicas, erradicando doenças), a conexão direta entre as empresas e as fundações doadoras começou a se confundir. De repente desapareceu por completo. Agora, até mesmo aqueles que se consideram de esquerda não são tímidos para aceitar sua generosidade. Por volta de 1920, o capitalismo dos EUA havia começado a olhar para o exterior, por matéria-prima e mercados além-mar. As fundações começaram a formular a ideia de governança corporativa global. Em 1924, as fundações Rockefeller e Carnegie criaram em conjunto o que é hoje o grupo mais poderoso de pressão de política externa no mundo, o Conselho de Relações Exteriores (CFR), que mais tarde veio, também, a ser financiado pela Fundação Ford. Por volta de 1947, a recém-criada CIA foi apoiada pelo CFR e trabalha em estreita colaboração com o CFR. Ao longo dos anos, a associação do CFR incluiu 22 secretários de Estado dos EUA. Havia cinco membros do CFR no comitê da direção de 1943 que planeou a ONU, e uma doação de 8,5 milhões de dólares de J.D. Rockefeller comprou o terreno onde está assentada a sede da Organização em Nova York. Todos os onze presidentes do Banco Mundial desde 1946 – homens que se apresentaram como missionários dos pobres – são membros do CFR (a exceção foi George Woods, o qual era um administrador da Fundação Rockefeller e vice-presidente do Chase-Manhattan Bank). E m Bretton Woods, o Banco Mundial e o FMI decidiram que o dólar dos EUA fosse a moeda de reserva mundial, e que, no intuito de aumentar a entrada do capital global, isto seria necessário para universalizar e padronizar as práticas de negócios em um mercado livre. É para esse fim que eles gastam muito dinheiro na promoção da boa governança (desde que controlem as rédeas), o conceito de Estado de Direito (desde que tenham uma palavra a dizer ao se fazer as leis) e centenas de programas anticorrupção (para agilizar o sistema que eles criaram). Duas das mais discutíveis organizações no mundo exigindo transparência e prestação de contas dos governos dos países mais pobres. Como o Banco Mundial tem mais ou menos dirigido as políticas econômicas dos países do Terceiro Mundo, coagindo e abrindo os mercados de país em país para as finanças globais, seria possível dizer que a filantropia corporativa acabou por ser o negócio mais visionário de todos os tempos. Fundações doadas por empresas administram, comercializam e canalizam o seu poder e colocam suas peças de xadrez no tabuleiro, por meio de um sistema de clubes de elite e grupos de reflexão, cujos membros se sobrepõem e entram e saem pelas portas giratórias. Ao contrário das várias teorias de conspiração em circulação, particularmente entre grupos de esquerda, não há nada secreto, satânico, ou preferência pelo franco-maçom sobre este programa. Não é muito diferente da forma como empresas usam outras empresas de fachada e contas no exterior para transferir e administrar seu dinheiro, exceto que a moeda é poder, não o dinheiro. O equivalente transnacional do CFR é a Comissão Trilateral, criada em 1973 por David Rockefeller, o antigo assessor de Segurança Nacional dos EUA Zbigniew Brzezinski (membro fundador do Mujahideen afegão, antepassado dos Talibãs), o Chase-Manhattan Bank e algumas outras eminências privadas. Seu objetivo era formar um vínculo de amizade duradouro e de cooperação entre as elites da América do Norte, Europa e Japão. Ela tornou-se uma comissão penta-lateral, uma vez que inclui membros de China e Índia (Tarun Das da CII; N.R. Narayanamurthy, antigo diretor executivo da Infosys; Jamsheyd N. Godrej, diretor da Godrej; Jamshed J. Irani, diretor da Tata Sons, e Gautam Thapar, oficial chefe do executivo do Grupo Avantha). O Instituto Aspen é um clube internacional das elites locais, empresários, burocratas, políticos, com franquias em vários países. Tarun Das é o presidente do Instituto na Índia. Gautam Thapar é presidente do conselho. Vários oficiais superiores do McKinsey Global Institute (proponente do corredor Industrial Delhi Bombaim) são membros do CFR, da Comissão Trilateral e do Instituto Aspen. A Fundação Ford (faz contraste liberal com a Fundação Rockefeller mais conservadora, embora as duas trabalhem juntas constantemente) foi instituída em 1936. Apesar de ser muitas vezes subestimada, a Ford tem uma ideologia muito clara e bem definida e funciona em conjunto com o Departamento de Estado dos EUA. Seu projeto de aprofundamento da democracia e da boa governança é uma parte muito importante do sistema de Bretton Woods de padronizar a prática de negócios e promover a eficiência no mercado livre. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando os comunistas substituíram os fascistas como inimigo número um do governo dos EUA, eram necessários novos tipos de instituições para lidar com a Guerra Fria. A Ford financiou a RAND (Organização para Investigação e Desenvolvimento), um grupo de base militar que começou com a investigação de armas para os serviços de defesa dos EUA. Em 1952, para impedir "o esforço persistente comunista para penetrar e perturbar as nações livres", criou-se o Fundo para a República, transformado depois no Centro para o Estudo das Instituições Democráticas, cuja missão consistia em travar a Guerra Fria de forma inteligente sem excessos macarthistas. É através desta lente que temos de ver o trabalho que a Fundação Ford está a fazer com os milhões de dólares que investiu na Índia – o financiamento de artistas, cineastas e ativistas, sua generosa doação de cursos universitários e bolsas de estudo. As "metas para o futuro da humanidade" publicadas pela Fundação Ford incluem intervenções em bases de movimentos políticos local e internacionalmente. Nos EUA forneceu milhões em doações e empréstimos para apoiar o Credit Union Movement (Movimento União de Crédito) fundado pelo dono da loja de departamentos, Edward Filene, em 1919. Filene acreditava na criação de uma sociedade consumista em massa de bens de consumo dando aos trabalhadores o acesso ao crédito a preços cômodos – uma ideia radical na época. Na verdade, apenas a metade de uma ideia radical, porque a outra metade do que Filene acreditava era a distribuição mais equitativa do rendimento nacional. Capitalistas apoderaram-se da primeira metade da sugestão de Filene, e desembolsando empréstimos "acessíveis" de dezenas de milhões de dólares para as pessoas que trabalham, tornaram a classe trabalhadora dos EUA em pessoas constantemente endividadas, esforçando-se por recuperar o atraso nos seus estilos de vida. Anos depois, essa ideia se expandiu para o interior pobre de Bangladesh, quando Mohammed Yunus e o Grameen Bannk levaram microcrédito a camponeses famintos com consequências desastrosas. Empresas de microfinanças na Índia são responsáveis por centenas de suicídios, 200 pessoas em Andhra Pradesh, só em 2010. Um diário nacional publicou recentemente uma notícia de suicídio de uma menina de 18 anos de idade, que foi forçada a entregar suas últimas 150 rúpias, suas mensalidades escolares, diante da intimidação de funcionários da empresa de microfinanças. A notícia dizia: "Trabalhe duro e ganhe dinheiro. Não tome empréstimos". Há um monte de dinheiro na pobreza, e alguns prêmios Nobel também. Na década de 1950, as Fundações Rockefeller e Ford, financiando várias ONGs e instituições de ensino internacionais, começaram a funcionar como semi-extensões do governo dos EUA, que na época estava derrubando governos democraticamente eleitos na América Latina, no Irão e na Indonésia (foi também por este período que entraram na Índia, não alinhados, mas inclinados claramente para a União Soviética). A Fundação Ford criou um curso de economia no estilo dos EUA na Universidade da Indonésia. Estudantes indonésios da elite treinados em contrainsurgência por oficiais do exército dos Estados Unidos desempenharam um papel crucial no golpe de 1965 na Indonésia, apoiado pela CIA, que levou o general Suharto ao poder, o qual reembolsou seus mentores matando centenas de milhares de rebeldes comunistas. Oito anos depois, jovens estudantes chilenos, que vieram a ser conhecidos como os Chicago Boys, foram levados para os EUA para serem treinados em economia neoliberal por Milton Friedman, na Universidade de Chicago (doada por J. D. Rockefeller), em preparação para o golpe de 1973 apoiado pela CIA, que matou Salvador Allende e trouxe o general Pinochet e um grupo de esquadrões da morte, desaparecimentos e terror que duraram dezessete anos (a morte de Allende foi por ser um socialista democraticamente eleito e nacionalizar as minas do Chile). Em 1957, a Fundação Rockefeller estabeleceu o Prêmio Ramon Magsaysay para líderes comunitários na Ásia. Foi instituído depois da morte de Ramon Magsaysay, presidente das Filipinas e um aliado crucial na campanha dos EUA contra o comunismo no Sudeste Asiático. Em 2000, a Fundação Ford criou o Prêmio de Liderança Emergente Ramon Magsaysay. O Magsaysay é considerado um prêmio de prestígio entre os artistas, ativistas e trabalhadores comunitários na Índia. M. S. Subbulakshmi e Satyajit Ray ganharam esse prêmio, assim como fizeram Jayaprakash Narayan e um dos melhores jornalistas da Índia, P. Sainath. Mas eles fizeram mais para o Prêmio Magsaysay do que este fez por eles. Em geral, tornaram-se árbitros gentis do tipo de ativismo que é "aceitável" e o que não é. Curiosamente, o movimento anticorrupção de Anna Hazare no último verão foi liderado por três vencedores do Prêmio Magsaysay, Anna Hazare, Arvind Kejriwal e Kiran Bedi. Enquanto uma das muitas ONGs de Arvind Kejriwal é generosamente financiada pela Fundação Ford, a ONG de Kiran Bedi é financiada pela Coca-Cola e Lehman Brothers. Embora Anna Hazare autodenomine-se um Gandhi, a lei que ele invocou, o Jan Lokpal Bill, foi anti-Gandhi, elitista e perigosa. A campanha permanente da mídia associada proclamou-o como sendo a voz do "povo". Ao contrário do movimento Occupy Wall Street, nos EUA, o de Hazare não se pronunciou contra a privatização, o poder associativo ou "reformas" econômicas. Ao contrário, os seus principais apoiadores de mídia afastaram com sucesso os holofotes dos grandes escândalos de corrupção associativa (onde estavam também expostos jornalistas de alto nível) e usou os maus tratos públicos dos políticos para pedir a redução de poderes discricionários do governo, para mais reformas, mais privatizações (em 2008, Anna Hazare recebeu um prêmio do Banco Mundial por excelente serviço público). Este Banco divulgou um comunicado de Washington dizendo que o movimento se "encaixou" na sua política. C omo todos os bons imperialistas, o "filantropoides" atribuiram-se a tarefa de criar e treinar um esquema internacional segundo o qual o capitalismo, e, por extensão, a hegemonia dos Estados Unidos, favorecia seu próprio interesse. E que iriam, portanto, ajudar a administrar o Governo do Global Corporate na forma como as elites nativas sempre serviram o colonialismo. Assim começou a incursão dos fundamentos para a educação e artes, que se tornaria sua terceira esfera de influência, depois da política econômica externa e interna. Eles passaram (e continuam) a gastar milhões de dólares em instituições acadêmicas e pedagógicas. Joan Roelofs no seu maravilhoso livro Fundações e Políticas Públicas: A Máscara do Pluralismo (Foundations and Public Policy: The Mask of Pluralism) descreve como fundações reformaram as velhas ideias de como ensinar ciência política e moldaram as disciplinas de estudos "internacionais" e de "área". Isso ofereceu à inteligência dos EUA e aos serviços de segurança um conjunto de conhecimentos em línguas estrangeiras e cultura exemplares. A CIA e o Departamento de Estado dos EUA continuam a trabalhar com os alunos e professores em universidades deste país, levantando sérias questões sobre a ética académica. A colecta de informação para controlar os governantes é fundamental para qualquer poder dominante. Como a resistência à aquisição de terras e às novas políticas econômicas se espalha por toda a Índia à sombra de uma guerra aberta na Índia Central, como técnica de contenção, o governo deu início a um programa biométrico maciço, talvez um dos projetos mais ambiciosos e caros de colecta de informação no mundo, o Número Único de Identificação (UID/NUI). Embora as pessoas não tenham água potável ou instalações sanitárias, ou alimentos ou dinheiro, elas irão ter cartões eleitorais e números UID/NUI. É uma coincidência que o projeto UID/NUI dirigido por Nandan Nilekani, ex-CEO da Infosys, ostensivamente destinado a "prestar serviços aos pobres", vai injetar enormes quantidades de dinheiro numa indústria de TI (Tecnologia de Informação) pouco controlada? (Conforme indica uma estimativa conservadora, o orçamento do UID/NUI excede as despesas públicas anuais do governo indiano para a educação). Para "digitalizar" um país com uma vasta população, em grande parte ilegítima e "ilegível", pessoas que são na sua maioria moradores de favelas, vendedores ambulantes, adivasis sem cadastro de terra, serão criminalizadas, transformadas de ilegítimas em ilegais. A ideia é conseguir uma versão digital da Enclosure of the Commons e colocar enormes poderes nas mãos de uma polícia de estado cada vez mais truculenta. A obsessão tecnocrática de Nilekani por colecta de dados é consistente com a obsessão de Bill Gates por bancos de dados digitais, "objetivos numéricos", "tabelas de indicadores de progresso". Como se a causa da fome no mundo fosse a falta de informação, e não o colonialismo, a dívida e a política orientadas para o lucro e a política corporativa. Fundações empresariais dotadas por corporações são as maiores patrocinadoras das ciências sociais e artes, oferecendo cursos e bolsas de estudo em "estudos de desenvolvimento", "estudos de comunidade", "estudos culturais", "ciências do comportamento" e "direitos humanos". Como as universidades norte-americanas abriram suas portas a estudantes internacionais, centenas de milhares de estudantes, filhos das elites do Terceiro Mundo, aderiram. Àqueles que não podiam pagar as taxas foram-lhes concedidas bolsas. Hoje, em países como a Índia e o Paquistão, não há praticamente uma família entre as classes médias altas que não tenha um filho que estudou nos EUA. A partir das suas fileiras vieram bons estudiosos e acadêmicos, mas também os primeiros-ministros, ministros das Finanças, economistas, advogados de empresas, banqueiros e burocratas que ajudaram a abrir as economias dos seus países às empresas globais. Estudiosos de teoria económica e ciência política na versão favorável às Fundações foram recompensados com bolsas, fundos de pesquisa, subvenções, doações e empregos. Aqueles com uma visão desfavorável às Fundações viram-se sem financiamento, marginalizados e confinados, e seus cursos interrompidos. Gradualmente, uma imaginação especial, um pretexto superficial de tolerância e multiculturalismo (que se transforma em racismo, nacionalismo fanático, chauvinismo étnico ou islamofobia belicista a qualquer momento) na base de uma única ideologia econômica abrangente, muito pouco plural, começou a dominar o discurso. Fê-lo de tal forma que deixou de ser percebido como uma ideologia. Tornou-se a posição padrão, a maneira natural de ser. Infiltrou a normalidade, colonizou a vulgaridade, e o desafio começou a parecer tão absurdo ou esotérico como a própria realidade desafiadora. A partir daqui foi um passo fácil e rápido para o "não há alternativa". É só agora, graças ao movimento Occupy, que uma outra linguagem tem aparecido nas ruas e campus dos EUA. Para ver os alunos com cartazes que dizem "Luta de classes" ou "Não nos importamos que seja rico, mas nos importamos em que compre o nosso governo", dadas as adversidades, é quase uma revolução em si mesma. U m século depois do seu início, a filantropia empresarial é tão parte das nossas vidas como a Coca-Cola. Existem hoje milhões de organizações sem fins lucrativos, muitas delas ligadas por um labirinto financeiro bizantino às fundações maiores. Entre si, o setor "independente" tem ativos no valor de quase 450 mil milhões de dólares. A maior delas é a Fundação Bill Gates (21 mil milhões de dólares), seguida pela Lilly Endowment (16 mil milhões) e pela Fundação Ford (15 mil milhões). Como o FMI impôs o Ajustamento Estrutural, e obrigou governos a cortar despesas públicas em saúde, educação, assistência a crianças, desenvolvimento, as ONGs entraram em cena. A privatização de tudo também significou a ONG-nização de tudo. Como empregos e meios de subsistência desapareceram, as ONGs tornaram-se uma importante fonte de emprego, mesmo para aqueles que veem aquilo que são. E certamente nem todas são más. Dos milhões de ONGs, algumas fazem um trabalho notável. Mas seria caricato pintá-las todas com o mesmo pincel. No entanto, as ONGs dotadas por fundações são um meio de financiamento global para a compra de movimentos de resistência, literalmente como sócios compram ações de empresas, e em seguida tentam controlá-las a partir de dentro. Elas situam-se como os nós do sistema nervoso central, os caminhos ao longo dos quais fluem as finanças globais. Elas funcionam como transmissores, receptores, amortecedores, um alerta para cada impulso, cuidadosas para não irritar os governos dos seus países de acolhimento (A Fundação Ford exige das organizações que financia que assinem um compromisso com essa finalidade). Inadvertidamente (e às vezes advertidamente), elas servem como postos de escuta, seus relatórios, workshops e outros dados de alimentação de atividade missionária num sistema cada vez mais agressivo da vigilância do endurecimento dos Estados-membro. Quanto mais conturbada uma área for, maior será sua quantidade de ONGs. Maliciosamente, quando o governo ou setores da mídia desejam levar a cabo uma campanha de difamação contra um movimento genuíno de pessoas, como o Narmada Bachao Andolan, ou protesto contra o reator nuclear Koodankulam, acusam estes movimentos de serem ONGs que recebem "financiamento externo". Eles sabem muito bem que a obrigação da maioria das ONGs, em particular as bem financiadas, é promover o projeto de globalização empresarial, e não impedir isso. Munidas dos seus milhares de milhões, essas ONGs penetraram no mundo, transformando potenciais revolucionários em ativistas assalariados, financiando artistas, intelectuais e cineastas. Ao atraí-los gentilmente para fora do confronto radical, conduzem-nos em direção ao multiculturalismo, gênero, desenvolvimento comunitário, discurso expresso na linguagem da política de identidade e dos direitos humanos. Portanto, a transformação da ideia de justiça para a indústria dos direitos humanos tem sido um golpe conceptual no qual as ONGs e fundações desempenham um papel decisivo. Assim, o foco estreito dos direitos humanos permite uma análise baseada em atrocidades onde a imagem maior pode ser bloqueada e ambas as partes no conflito, digamos, por exemplo, os maoístas e o governo indiano, ou o exército de Israel e o Hamas, podem ser admoestados como Violadores dos Direitos Humanos. O roubo de terras por empresas de mineração ou a história da anexação de terras palestinas por parte do Estado de Israel tornam-se irrelevantes diante do discurso. Isto, no entanto, não é sugerir que os direitos humanos não importam. Eles importam, sim, mas não são um prisma suficiente através do qual se pode ver ou remotamente compreender as grandes injustiças do mundo onde vivemos. Um outro golpe conceitual tem a ver com o envolvimento das fundações com o movimento feminista. Por que é que a maioria das organizações feministas "oficiais" e organizações de mulheres na Índia mantém uma distância segura entre elas próprias e organizações como por exemplo a Krantikari Adivasi Mahila Sangathan (Associação Revolucionária de Mulheres de Adivasi) com 90 mil membros, que combate o patriarcado nas suas próprias comunidades e o deslocamento por empresas de mineração na floresta Dandakaranya? Por que é que a expropriação e expulsão de milhões de mulheres da terra que possuíam e trabalhavam não é vista como um problema feminista? A separação do movimento feminista liberal dos movimentos populares anti-imperialistas e anti-capitalistas de base não começou com o mau uso das fundações. Tudo começou com a incapacidade desses movimentos de se adaptarem e se acomodarem à rápida radicalização das mulheres ocorrida nos anos 1960 e 1970. As fundações mostraram-se geniais em reconhecer e se aproximar para apoiar e financiar a crescente inquietação das mulheres com a violência e o patriarcado nas sociedades tradicionais, bem como entre os líderes supostamente progressistas dos movimentos de esquerda. Num país como a Índia, a cisão também aconteceu ao longo da divisão rural-urbana. A maioria dos movimentos radicais, anti-capitalistas foi localizada no campo, onde, na maior parte das vezes, o patriarcado continuava a governar a vida da maioria das mulheres. As mulheres urbanas ativistas que se juntaram a esses movimentos (como o movimento Naxalita) tinham sido influenciadas e inspiradas pelo movimento feminista ocidental e suas próprias viagens para a libertação estavam muitas vezes em desacordo com o que os seus líderes masculinos consideravam seu dever: para se ajustar "às massas". Muitas mulheres ativistas não estavam dispostas a esperar mais tempo para a "revolução", a fim de acabar com a opressão diária e discriminação nas suas vidas, inclusive dos seus próprios companheiros. Elas queriam a igualdade de gênero como um direito absoluto, urgente e não negociável do processo revolucionário e não apenas uma promessa pós-revolução. As mulheres inteligentes, impacientes e desiludidas começaram a afastar-se e procurar outros meios de apoio e sustento. Como resultado, no final dos anos 1980, na época em que os mercados indianos foram abertos, o movimento feminista liberal num país como a Índia tornou-se excessivamente ONG-nizado. Muitas dessas ONGs têm feito um trabalho positivo sobre os direitos dos homossexuais, violência doméstica, AIDS e os direitos das trabalhadoras do sexo. Mas, significativamente, os movimentos feministas liberais não têm estado na vanguarda para desafiar as novas políticas econômicas, embora as mulheres tenham sido as mais afetadas. Ao manipular o desembolso dos fundos, as fundações têm em grande parte conseguido circunscrever o alcance do que a atividade "política" deve ser. As instruções de financiamento das ONGs agora prescrevem o que consideram como "problemas" das mulheres e o que não é. A ONG-nização do movimento das mulheres também fez do feminismo liberal ocidental (em virtude de ser a marca mais financiada) o porta-estandarte do que constitui o feminismo. Como de costume, os sinais da batalha foram jogados sobre o corpo das mulheres, retirando botox num lado e burcas noutro (E depois há aquelas que sofrem um duplo golpe, o botox e a burca). Quando, tal como aconteceu recentemente na França, é feita uma tentativa de coagir as mulheres a retirarem a burca em vez de criar uma situação na qual ela possa escolher o que deseja fazer, não se trata de libertá-la, mas, sim, de despojá-la. Isto torna-se um ato de humilhação e de imperialismo cultural. Não se trata de burca. Trata-se de coação. Forçar uma mulher a livrar-se da burca é tão ruim como coagi-la a aceitar o botox. Encarar o gênero, desta forma, despido do contexto social, político e econômico, torna-o uma questão de identidade, uma batalha de suporte e costumes. É o que permitiu ao governo dos EUA usar grupos feministas ocidentais como cobertura moral quando invadiu o Afeganistão em 2001. As mulheres afegãs estavam (e estão) em apuros com os Talibãs. Mas lançar bombas sobre elas não vai resolver seus problemas. No universo das ONGs, que evoluiu de uma linguagem estranha anódina própria, tudo tornou-se "matéria", um assunto particular, profissionalizado, de interesse especial. Neste âmbito, o desenvolvimento comunitário, liderança, direitos humanos, saúde, educação, direitos reprodutivos, AIDS, órfãos com AIDS têm sido hermeticamente marcados nos seus próprios espaços com seu elaborado e preciso crédito de financiamento. A pobreza também, a exemplo do feminismo, muitas vezes é vista como um problema de identidade. Como se os pobres não fossem obra da injustiça, mas uma tribo perdida que só se limitou a existir, e pode ser resgatada em pouco espaço de tempo por um sistema de alívio à injustiça (administrado pela ONG sobre um indivíduo, pessoa a pessoa), e cuja ressurreição a longo prazo virá de boa governança. Sob o regime do Capitalismo Empresarial Global é evidente. A pobreza na Índia, depois de um breve período no deserto, quando o país "brilhava", fez um retorno como uma identidade exótica nas artes, lideradas por filmes como Slumdog Millionaire . Essas histórias sobre os pobres, seu espírito incrível e resistência, não tem vilões, exceto os pequenos que dão tensão narrativa e cor local. Os autores destas obras são equivalentes aos do mundo contemporâneo dos primeiros antropólogos, louvados e honrados por trabalhar no "terreno", pelas suas viagens corajosas em terras estranhas. É raro ver o rico ser examinado dessa maneira. Depois de definir como dirigir governos, partidos políticos, eleições, tribunais, a mídia e a opinião liberal, houve mais um desafio para o estabelecimento neoliberal: Como lidar com a crescente inquietação, a ameaça do "poder do povo". Como domesticá-lo? Como transformar os manifestantes em animais de estimação? Como aspirar a fúria da população e redirecioná-la a becos sem saída? Aqui, também, as fundações e suas organizações aliadas têm uma história longa e célebre. Um exemplo revelador é seu papel no desarmamento e desradicalização do movimento dos Direitos Civis dos Negros nos EUA na década de 1960 e a bem-sucedida transformação do Poder Negro em Capitalismo Negro. Em consonância com os ideais de J. D. Rockefeller, a Fundação Rockefeller tinha trabalhado em estreita colaboração com Martin Luther King Sr (pai de Martin Luther King Jr). Mas sua influência diminuiu com a ascensão das organizações mais combativas, o Comitê de Coordenação Contra a Violência aos Estudantes (SNCC) e os Panteras Negras (Black Panthers). As fundações Ford e Rockefeller avançaram. Em 1970, doaram 15 milhões de dólares para "monitorar" organizações dos negros, dando às pessoas subsídios, associações, bolsas de estudo, programas de capacitação profissional para capitais de financiamento para as empresas de propriedade de negros. Contudo, a repressão, brigas internas e a armadilha dourada do financiamento levaram à atrofia gradual das organizações negras radicais. Martin Luther King Jr fez as ligações proibidas entre o capitalismo, o imperialismo, o racismo e a Guerra do Vietnã. Como resultado, depois de ser assassinado, até sua memória se tornou uma ameaça tóxica à ordem pública. As fundações e empresas trabalharam arduamente para remodelar seu legado a fim de que se ajustasse a um formato amigável para o mercado. O Centro Martin Luther King Jr para a Mudança Social não Violenta, com uma concessão operacional de 2 milhões de dólares, foi criado pela Ford Motor Company, General Motors, Mobil, Western Electric, Procter & Gamble, US Steel e Monsanto, entre outros. O Centro mantém a Biblioteca de King e arquivos do Movimento dos Direitos Civis. Entre os muitos programas de gestão do King Center há projetos que trabalham em estreita colaboração com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, Capelães do Conselho das Forças Armadas e outros. Ademais, "copatrocinou uma série de palestras de Martin Luther King Jr, chamada 'O sistema de livre iniciativa: um agente para mudança social de não violência'." Amém. Um golpe semelhante foi executado na luta antiapartheid na África do Sul. Em 1978, a Fundação Rockefeller organizou uma Comissão de Estudos sobre Política dos EUA para a África Austral. O relatório alertou para a crescente influência da União Soviética sobre o Congresso Nacional Africano (ANC) e disse que os interesses estratégicos e empresariais norte-americanos (ou seja, o acesso aos minerais da África do Sul) seriam melhor servidos se houvesse partilha genuína do poder político por todas as raças. As fundações começaram a apoiar o ANC. O ANC a seguir virou-se para organizações mais radicais, como o movimento da Consciência Negra de Steve Biko e mais ou menos eliminou-as. Quando Nelson Mandela assumiu o cargo de primeiro presidente negro da África do Sul, foi canonizado como um santo vivo, não só porque era um combatente da liberdade que passou 27 anos na prisão, mas também porque acedera completamente ao Consenso de Washington. O socialismo desapareceu da agenda do ANC. A grande "transição pacífica" da África do Sul, tão elogiada e louvada, não significava reforma agrária, nem exigências de indenização, nem nacionalização das minas da África do Sul. Ao invés disso houve privatização e ajustamento estrutural. Mandela concedeu a mais alta condecoração civil da África do Sul, a Ordem da Boa Esperança, ao seu antigo apoiante e amigo general Suharto, o assassino de comunistas na Indonésia. Hoje, na África do Sul, uma ninhada de ex-radicais e sindicalistas que conduzem Mercedes governa o país. Mas isso é mais do que suficiente para perpetuar a ilusão da Libertação Negra (Black Liberation). A ascensão do Poder Negro (Black Power) nos EUA foi um momento de inspiração para o surgimento de um movimento progressivo radical dos Dalit na Índia, com organizações como os Panteras de Dalit (Dalit Panthers) espelhando a política militante dos Panteras Negras (Black Panthers). Mas também o Poder Dalit, não exatamente da mesma forma, foi fraturado e desativado e, com muita ajuda de organizações da direita hindu e da Fundação Ford, está a caminho de se transformar em Capitalismo Dalit. "Dalit Inc pronta a mostrar que os negócios podem superar a casta", disse o Indian Express em dezembro de 2013. Prosseguiu a citar um mentor da Câmara de Comércio e Indústria indiano da Dalit (DICCI). Ele disse ainda "conseguir que o primeiro-ministro vá a uma reunião da Dalit não é difícil na nossa sociedade. Mas para os empresários da Dalit, tirar uma fotografia com a Tata e Godrej durante o almoço e lanche é uma aspiração, e prova do que alcançaram". Dada a situação na Índia moderna, seria ingênuo e reacionário dizer que os empreendedores de Dalit não deviam ter um lugar à mesa de honra. Mas se esta é a aspiração, o quadro ideológico da política de Dalit, seria uma grande pena. E é pouco provável que ajude o milhão de dalits que ainda ganha a vida respigando no lixo – carregando fezes humanas sobre as suas cabeças. Jovens académicos Dalit que aceitam doações da Fundação Ford não podem ser julgados muito severamente. Quem mais lhes oferece uma oportunidade de sair da fossa do sistema de castas indiano? A vergonha, assim como uma grande parte da culpa por essa sucessão de eventos também cabe ao movimento comunista da Índia cujos líderes continuam a ser predominantemente a casta superior. Durante anos, tentou-se colocar a ideia de casta em análise de classe marxista. Falhou-se totalmente na teoria, bem como na prática. A divergência entre a comunidade Dalit e a esquerda começou com uma briga entre o líder visionário Dalit, Dr. Bhimrao Ambedkar, e SA Dange, sindicalista e membro fundador do Partido Comunista da Índia. A desilusão do Dr. Ambedkar com o Partido Comunista iniciou-se com a greve dos trabalhadores têxteis em Bombaim em 1928, quando percebeu que, apesar de toda a retórica sobre a solidariedade da classe operária, o partido não considerou condenável que os "intocáveis" fossem mantidos fora do departamento de tecelagem (e qualificados só para o mal pago departamento de fiação) porque o trabalho envolvia o uso de saliva nos fios, que outras castas consideravam "poluente". Conforme percebeu Ambedkar, numa sociedade onde os livros sagrados hindus institucionalizam a impunidade e a desigualdade, a batalha pelos "intocáveis", pelos seus direitos sociais e cívicos, era demasiado urgente para esperar a prometida revolução comunista. Assim, o fosso entre o ambedkarites e a esquerda trouxe um elevado custo para ambos. Ele fez com que a grande maioria da população de Dalit, a espinha dorsal da classe trabalhadora indiana, colocasse suas esperanças de libertação e dignidade no constitucionalismo, no capitalismo e nos partidos políticos, como o BSP, que praticam uma importante marca estagnante de política da identidade. Nos Estados Unidos, como já vimos, fundações empresariais dotadas por corporações geraram a cultura de ONGs. Na Índia, a filantropia empresarial direcionada começou a sério na década de 1990, a era das novas políticas econômicas. A condição de membro da Star Chamber não custa barato. O Grupo Tata doou 50 milhões de dólares para aquela instituição carente, a Harvard Business School, e outros 50 milhões de dólares para a Universidade de Cornell. Nandan Nilekani da Infosys e sua esposa doaram 5 milhões de dólares como uma oferta inicial para a Iniciativa da Índia na Yale. Agora, o Centro de Humanidades Harvard é o Centro de Humanidades da Mahindra depois de ter recebido sua maior doação de 10 milhões de dólares do Anand Mahindra do Grupo Mahindra. No país, o Grupo Jindal, com uma grande participação na mineração, metais e energia, administra a Escola de Direito de Jindal Global e, em breve, irá abrir a Escola Governamental de Jindal e Políticas Públicas. Enquanto a Fundação Ford dirige uma escola de Direito no Congo, a Fundação New India, instituída pela Nandan Nilekani e financiada pelas receitas da Infosys, dá prêmios e bolsas de estudo para cientistas sociais. Já a Fundação Sitaram Jindal, suportada pela Jindal Aluminium, anunciou cinco prêmios em dinheiro a serem atribuídos aos que trabalham para o desenvolvimento rural, redução da pobreza, educação ambiental e elevação moral. A The Reliance Group's Observer Research Foundation (ORF), atualmente mantida por Mukesh Ambani, é projetada nos moldes da Fundação Rockefeller. Conta com agentes de inteligência reformados, analistas estratégicos, políticos (que fingem estar uns contra os outros no Parlamento), jornalistas e políticos como seus "companheiros" de pesquisa e consultores. Os objetivos da ORF parecem bastante simples: "Ajudar a desenvolver um consenso em favor das reformas econômicas." E para moldar e influenciar a opinião pública, criando, "opções políticas alternativas viáveis em áreas tão diferentes como a geração de emprego nos distritos menos desenvolvidos e estratégias de tempo real para combater ameaças nucleares, biológicas e químicas". Inicialmente fiquei intrigada com a preocupação com a guerra "nuclear, biológica e química" nos objetivos definidos da ORF. Mas muito menos quando na longa lista dos seus "parceiros institucionais" encontrei os nomes de Raytheon e Lockheed Martin, dois dos principais fabricantes de armas do mundo. Em 2007, Raytheon anunciou que toda a sua atenção estava voltada para a Índia. Será que pelo menos parte dos 32 mil milhões de dólares do orçamento de defesa da Índia serão gastos em armas, mísseis guiados, aeronaves, navios de guerra e equipamentos de vigilância feitos pela Raytheon e Lockheed Martin? Será que precisamos de armas para lutar contra as guerras? Ou será que precisamos de guerras para criar um mercado para as armas? Afinal de contas, as economias da Europa, EUA e Israel dependem grandemente da sua indústria de armas. É a única coisa para a qual eles não subcontrataram a China. Na nova Guerra Fria entre EUA e China, a Índia prepara-se para desempenhar o papel do Paquistão como um aliado dos EUA na Guerra Fria com a Rússia (E neja o que aconteceu ao Paquistão). Muitos desses comentaristas e analistas "estratégicos" que estão a publicitar as hostilidades entre a Índia e a China, irá se ver, podem ser rastreados direta ou indiretamente aos grupos de reflexão e fundações indo-americanos. Ser um "parceiro estratégico" dos EUA não significa que os chefes de Estado fazem ligações telefônicas amigáveis uns com os outros de vez em quando. Isso significa colaboração (interferência) em todos os níveis. Isso significa acomodação das Forças Especiais dos EUA em solo indiano (um comandante do Pentágono confirmou recentemente isso à BBC). Significa partilha de inteligência, alteração de políticas, agricultura e energia, abrindo os setores de saúde e educação ao investimento global. Significa abertura a retalho. Significa uma parceria desigual na qual a Índia se mantém próxima de um abraço de urso e cumpre as ordens de um parceiro que irá descartá-la no momento em que se recusar a obedecer. N a lista dos "parceiros institucionais" da ORF, também se encontra a RAND Corporation, a Fundação Ford, o Banco Mundial, a Brookings Institution, cuja missão declarada é fornecer recomendações práticas e inovadoras que promovam três objetivos gerais: fortalecer a democracia americana, promover o bem-estar econômico e social, segurança e oportunidade de todos os americanos, e garantir um sistema internacional mais aberto, seguro, próspero e cooperativo. Encontra-se ainda a Rosa Luxemburg Foundation da Alemanha (Pobre Rosa, que morreu por causa do comunismo, para ter o seu nome numa lista como esta)! Embora o capitalismo pretenda basear-se na competição, os que estão no topo da cadeia alimentar também se têm mostrado capazes de adotar a inclusão e a solidariedade. Os grandes capitalistas ocidentais têm feito negócios com fascistas, socialistas, déspotas e ditadores militares. Eles podem se adaptar e inovar constantemente. Eles possuem capacidade de raciocínio rápido e imensa esperteza tática. Mas apesar de se terem alimentado com sucesso por meio de reformas econômicas, apesar de terem guerras travadas e países militarmente ocupados, a fim de colocar no lugar as "democracias" de mercado livre, o capitalismo atravessa uma crise cuja gravidade não se revelou ainda por completo. Marx disse: "Portanto, o que a burguesia produz, acima de tudo, são os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis." O proletariado, como Marx viu, tem estado sob ataque contínuo. Fábricas foram fechadas, empregos desapareceram, sindicatos foram dissolvidos. Ao longo dos anos, o proletariado tem sido colocado numa posição onde uns lutam contra os outros em todos os sentidos possíveis. Na Índia são hindus contra muçulmanos, hindus contra cristãos, dalit contra adivasi, casta contra casta, região contra região. E, no entanto, em todo o mundo, há resistência. Na China, há inúmeras greves e revoltas. Na Índia, as pessoas mais pobres do planeta têm-se revoltado para travar algumas das empresas mais ricas nos seus caminhos. O capitalismo está em crise. O Gotejamento fracassou. Agora o Jorro Ascendente também está com perturbações. Como referido, o colapso financeiro internacional está a aproximar-se. Na Índia, a taxa de crescimento caiu para 6,9%. O investimento estrangeiro retrai-se. As principais corporações internacionais sentam-se sobre enormes acumulações de dinheiro, mas não sabem onde investir, como terminará a crise financeira. Trata-se de um enorme rombo estrutural do cilindro compressor do capital global. Os "coveiros" reis do capitalismo podem acabar por ser os seus próprios cardeais delirantes, que transformaram a ideologia em fé. Apesar do seu brilhantismo estratégico, eles parecem ter dificuldade em apreender um simples fato: o capitalismo está destruindo o planeta. Os dois truques antigos que usaram para superar as crises passadas – guerra e compras – simplesmente não funcionarão. Permaneci longo tempo frente a Antilhas, a ver o por do sol. Imaginava que a torre fosse tão profunda quanto alta. Que houvesse uma planta trepadeira de 27 andares de altura, serpenteando em torno debaixo do solo, sugando avidamente o sustento da terra, transformando-a em fumaça e ouro. Por que os Ambanis escolheram chamar seu prédio de Antilhas? Antilhas é o nome de um conjunto de ilhas míticas, cuja história remonta a uma lenda ibérica do século VIII. Quando os muçulmanos conquistaram a Espanha, seis bispos cristãos visigóticos e seus paroquianos embarcaram em navios e fugiram. Depois de alguns dias, ou talvez semanas no mar, chegaram às ilhas de Antilhas, onde decidiram se estabelecer e criar uma nova civilização. Então, eles queimaram seus barcos para cortar permanentemente relações com sua pátria dominada por bárbaros. Ao chamar suas torres de Antilhas, será que os Ambanis esperam romper suas relações com a pobreza e a miséria da sua pátria e criar uma nova civilização? Será este o ato final do movimento separatista de maior êxito na Índia? A secessão das classes média e alta para o espaço sideral? Quando a noite caiu sobre Bombaim, guardas em camisas de linho, com rádios de comunicação, apareceram do lado de fora dos portões proibidos de Antilhas. As luzes brilhavam, talvez para espantar os fantasmas. Os vizinhos queixam-se de que as luzes brilhantes de Antilhas roubaram a noite. Talvez seja tempo de recuperarmos a noite.
por Arundhati Roy, escritora indiana. Publicado no Resistir.info
Nota dos editores: nem todas as posições expressas neste texto condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.